Agrotóxicos: população indígena do Mato Grosso do Sul é a 3ª mais contaminada do país
A
intoxicação acontece por causa da expansão dos cultivos do agronegócio, que
ficam no entorno ou sobrepostas às terras indígenas.
Por Ana Mendes e Cristina Ávila, especial para a Amazônia Real
Por Ana Mendes e Cristina Ávila, especial para a Amazônia Real
18/01/2018
Com apenas 18 dias de nascido, o bebê Norisleo Paim Mendes e sua mãe, Maria Joana Paim, do povo Guarani Kaiowá, foram contaminados por agrotóxico pulverizado na aldeia Tey’ijusu pelo tratorista de uma fazenda, em 2014.
A área da fazenda está sobreposta à Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1, em Caarapó, no Mato Grosso do Sul,
que ainda não foi demarcada pelo governo federal.
Em julho do ano passado, a agência Amazônia Real visitou a aldeia Tey´ijusu. O pai do bebê, Kunumi
Verã, contou que, na ocasião em que a criança e a esposa foram contaminadas por
agrotóxicos, procurou o tratorista, mas ele o recebeu com arma em punho.
“Eu ia perguntar por que ele passou veneno em cima. Foram
contaminadas nove pessoas naquele dia. Ele puxou uma arma pra mim. Quando ele
puxou, nós também atacamos. Fomos de flecha. Eu furei o tanque [do trator]. Eu
não matei vida, não passei veneno em cima de ninguém. Eu só estou lutando
pelo nosso direito, pela comunidade. Por furar esse tanque eu estou sendo
perseguido”, disse Kunumi Verã, que está sendo processado por ter furado o
tanque de combustível do trator da fazenda.
Liderança Kunumi Verã da Terra Indígena Dourados
Amambaipeguá 1 em julho de 2017
(Foto: Ana Mendes/Amazônia Real)
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A pesquisa, que será lançada em novembro, aponta que 12 índios
foram contaminados por agrotóxicos em Mato Grosso do Sul entre 2007 e 2014. Conforme o estudo de Bombardi, o estado com o maior número de casos de contaminação por agrotóxicos na população indígena brasileira é Santa Catarina, com 27
registros, seguido do Paraná, com 17. Em quarto lugar vem Minas Gerais (7),
Espírito Santo (4) e Bahia (1).
Reprodução |
A intoxicação dos índios por agrotóxico acontece por causa da
expansão dos cultivos do agronegócio em lavouras de soja, milho e
cana-de-açúcar das fazendas, que ficam no entorno ou sobrepostas às terras
indígenas.
As nascentes são contaminadas por agrotóxicos na terra Dourados Amambaipeguá 1 (Foto: Ana Mendes/Amazônia Real) |
Nascentes de rios e córregos, que abastecem as aldeias, são
contaminados pela pulverização – terrestre ou aérea – de defensivos agrícolas, pesticidas e outros produtos usados no combate a pragas nas plantações.
Há casos em que pilotos de aeronaves fazem voos rasantes e
borrifam, de forma criminosa, o veneno nas habitações e roças dos indígenas, conforme indicam as investigações feitas pelo Ministério
Público Federal (MPF-MS).
Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) de 2010, em Mato Grosso do Sul há uma população de 73.295
indígenas. Eles são das etnias Guarani Kaiowá, Guarani Mbya, Guarani Ñhandeva,
Terena, Kadiwéu, Guató, Ofayé, Kinikinau e Atikum.
Na pesquisa, Larissa Bombardi analisou 343 notificações de
contaminação por agrotóxico em crianças e jovens indígenas em Mato Grosso do
Sul.
Foto: Ana Mendes/Amazônia Real |
“Quando concluí a pesquisa fiquei muito impressionada porque, de 20 a 25% dos casos [analisados], eram de crianças e jovens de até 19 anos. Bebê intoxicado dá o tom. A ponta do iceberg é [a faixa de idade] de zero a 12 meses. Eles não se movem sozinhos. Isso dá a ideia da vulnerabilidade da população”, disse a cientista, que é autora de diversos livros e artigos sobre o tema agrotóxicos.
A pesquisa, que é resultado dos pós-doutorados de Larissa
Bombardi na Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, e na
Universidade de Strathclyde, na Escócia, diz que os casos analisados foram por
intoxicação aguda, ou seja, quando a pessoa passa mal e recorre a uma unidade
de saúde. Na pesquisa não foram incluídos casos crônicos.
“É muito assustador.
Os pesquisadores costumam dizer que as intoxicações agudas são a ponta do
iceberg. Atrás disso têm câncer, problemas neurológicos, má formação fetal e
outras sequelas”, explica a professora Larissa Bombardi.
Ela diz que as intoxicações por agrotóxicos são evidentes nas
aldeias indígenas, mas praticamente estão fora das estatísticas oficiais do
governo. Existem apenas estimativas. “A Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] e o
Ministério de Saúde calculam que para cada caso notificado [no Brasil] há
outros 50 não informados. A gente tem por volta de 2% de notificações. Os
números são escandalosos”, afirma a cientista.
A pesquisa analisou casos de contaminação por agrotóxico
disponibilizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e
pelo Ministério da Saúde (Sistema Nacional de Agravos de Notificação – SINAN) até o ano de 2014. “Depois
disso a Anvisa tirou as informações do ar. Desde 2015 não conseguimos mais
acessar as informações”, revelou a professora da USP.
Vídeo conta relatos de Guarani Kaiowá
A
reportagem da Amazônia Real visitou a Terra Indígena Dourados
Amambaipeguá 1, em Caarapó, no Mato Grosso do Sul, em julho do ano passado.
Em entrevista, os índios Guarani Kaiowá denunciam a contaminação por
agrotóxicos das nascentes e das roças.
Veja
o videorreportagem com os depoimentos inéditos dos Guarani Kaiowá:
O estado do Mato Grosso do Sul lidera, com São Paulo, Goiás e
Mato Grosso, as médias do Brasil em uso de agrotóxicos. São 12 a 16 quilos por
hectare. Na União Europeia (UE), por exemplo, são de dois a três quilos por
hectare, segundo os estudos de Larissa Bombardi.
A pesquisadora constatou que dos 85 agrotóxicos de uso
autorizado nas lavouras de cana-de-açúcar no Brasil, 25 são proibidos pela
União Europeia, que baniu ainda 32 produtos usados nas plantações de milho e
outros 35 nas de soja que continuam nos campos brasileiros.
O
que dizem as leis?
A lei federal 7.802 de 1989, conhecida como Lei dos Agrotóxicos,
não estabelece limites mínimos de distância para a pulverização terrestre em
áreas de possíveis habitações. Mas estabelece infração, com pena de
reclusão de 2 a 4 anos, quando a aplicação prejudica a saúde do homem, dos
animais e do meio ambiente.
Os estados deveriam, e alguns o fazem, elaborar as suas próprias
normas. No Mato Grosso, a distância mínima é de 90 metros. Já no Mato Grosso do
Sul não há resolução sobre a pulverização de agrotóxicos.
Já dispersão aérea é regulada pela Instrução Normativa 02 de 03
de janeiro de 2008. O limite exigido é de uma distância de “quinhentos metros
de povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para
abastecimento de população”, conforme o artigo 10 da norma.
Quando há infração, a instrução determina a realização de
uma perícia que indique quais foram as condições da pulverização, se ela estava
de acordo com os manuais de aplicação, com as condições locais e se era
possível o piloto da aeronave prever, por exemplo, se haveria algum tipo de
intoxicação ou danos.
Para este ano está prevista a construção de um laboratório de
monitoramento de resíduos de agrotóxicos em águas superficiais nas bacias
hidrográficas dos rios Ivinhema, Dourados e Amambai, no Mato Grosso do Sul. O
projeto é coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa e Agropecuária
(Embrapa) e conta com a cooperação técnica da Prefeitura de Dourados e dos
Ministérios Públicos Federal (MPF), do Trabalho (MPT) e do Estado (MPE).
Em nota publicada em seu site, a Embrapa diz que no laboratório
serão investigadas as “condutas e atividades que causam efetivamente o dano
ambiental e prejuízo à saúde da população sul-mato-grossense.”
A agência Amazônia Real procurou
o coordenador técnico do programa da Embrapa, Rômulo Penna Scorza
Júnior, através da assessoria de imprensa, mas ele não quis responder as
perguntas enviadas por e-mail sobre quais tarefas o laboratório vai desempenhar
sobre a contaminação de agrotóxicos na população indígena no estado.
MPF
investiga casos de ataques
No Ministério Público Federal em Dourados (MS), um dos municípios de
maior registro de violência contra povos indígenas no
país, há quatro ações investigando ataques de pulverização de agrotóxicos
às aldeias, entre elas, dos Guarani Kaiowá. Suas terras enfrentam um conflito
agrário histórico devido à não demarcação do território pela Fundação Nacional
do Índio (Funai).
O
procurador Marco Antônio Delfino explicou à reportagem da Amazônia Real que avalia os
casos de ataques por agrotóxicos como um “processo de desumanização”. “Está
muito claro”, reforça. “Se
no local onde houvesse aquela comunidade tivesse uma casa de sei lá de quem,
uma vila bonitinha, o cara não ia fazer isso. Se houvesse uma casa de fazenda
ali e tal, com três andares, piscina, o cara não ia fazer”, disse o procurador.
Marco Antônio contou como foi a
reação de um acusado de pulverizar aldeias Guarani Kaiowá, ao ser indagado em
audiências na Justiça:
Acusado: “Ah não doutor, o que eu fiz foi tratos
culturais”.
Procurador:
“Mas em cima de uma comunidade?”
Acusado: “Não, eles estavam lá. Eles estavam no meio da soja.”
Cimi diz que é arma química
A pulverização criminosa de agrotóxico em territórios indígenas
é denunciada desde os anos 1970 pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi),
entidade ligada à CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), da Igreja
Católica.
O missionário da entidade no Mato Grosso do Sul, Flávio Vicente
Machado, disse que o agrotóxico é uma arma química utilizada para agredir
fisicamente os grupos que vivem às margens das monoculturas.
“São constantes as queixas de que os venenos são usados,
inclusive, como arma contra as comunidades indígenas. Preocupamo-nos com o
aumento dos casos de câncer na população indígena”, afirmou Vicente Machado.
Acompanhada por uma equipe do Cimi, a Amazônia Real visitou a aldeia Laranjeira Ñhanderu, no município de
Rio Brilhante. No local, os missionários encontraram um bebê, de seis
meses, doente. Ele estava com quatro dias com diarreia e vômito depois que os
funcionários de um fazendeiro, de uma propriedade contígua à aldeia, dispersaram
veneno enquanto os índios Guarani Kaiowá dormiam.
A mãe do menino, que não quis se identificar por medo de
represálias dos fazendeiros, disse que o bebê estava emagrecendo e perdendo o
apetite. “Quando o veneno passou em cima de minha casa, então, eu fui para
debaixo da coberta. Mas eu sentia mesmo assim o cheiro do veneno. Acho que
começou a passar meia noite e parou às duas horas. Aí ele [o bebê] acordou às
três horas e estava forte mesmo aquele veneno. E ele tá assim agora, perdendo
peso e tá com vômito. Só fica dormindo, dormindo, por causa disso mesmo, porque
tá doente agora”, conta ela.
Procurado pela reportagem da Amazônia Real para
falar sobre o tratamento de indígenas contaminados por veneno, o
médico Zelik Trajber, que faz parte da equipe volante do Polo Base de
Dourados do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei-MS), disse que há 16
anos atende periodicamente a aldeia Laranjeira Ñhanderu, no município de
Brilhante.
Ele disse que, quando os pacientes apresentam sintomas de enjoo,
dor de cabeça ou diarreia, as prescrições são soro, analgésico e antieméticos.
Contou que os sintomas deveriam ser melhor investigados; entretanto, conta que
amostras de sangue não têm onde ser avaliadas:
“Não tem onde, nem como. Nem pra avaliar se o quadro é
mensurável, fazer uma demonstração que isso aí foi devido a agrotóxico. Eu só
posso registrar o que ela [a pessoa doente] me apresenta. Está vomitando,
tem diarreia, está com dor de cabeça, tosse, quadro respiratório”, disse
Trajber.
O médico do Dsei, órgão ligado ao Ministério da Saúde, disse que
não tem como comprovar que os sintomas são de contaminação por agrotóxico.
“Não tenho nenhum elemento para comprovar que isso aí foi devido
a isso. Ao mesmo tempo não adianta eu ideologicamente começar a jogar
‘intoxicação por agrotóxico’ se eu não tenho como provar. Quem vai ser
questionado sou eu em termos legais. Então eu posso descrever ‘atendi a uma
criança com diarreia. Atendi uma criança com dor de cabeça.’ Agora eu não tenho
como ideologicamente carimbar. Isso eu não posso fazer,” afirmou Zelik Trajber.
Violência em alta
Além de serem atingidos pela pulverização de agrotóxico, os
indígenas do Mato Grosso do Sul sofrem diversas agressões, segundo o “Relatório
Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2016”, lançado este
mês pelo Cimi.
Conforme o relatório, 118 índios foram assassinados no país em
2016. No mesmo ano, 106 indígenas se suicidaram e 735 crianças, menores de
cinco anos, morreram por causas diversas.
O Mato Grosso do Sul se destacou nas estatísticas com o registro
de 18 índios assassinados, 30 suicídios e 30 crianças mortas, sendo que a
maioria por falta de assistência médica e desnutrição grave.
Reportagem publicada originalmente em 26/10/2017, por Amazônia Real.
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