Quilombolas se recusam a pagar taxa a fazendeiros
No Maranhão, comunidades
tradicionais resistem a práticas de exploração que derivam do período
escravocrata.
Por Solange Azevedo – Repórter Brasil
Por Solange Azevedo – Repórter Brasil
19/01/2018
Capatazes chegam com chicotes em punho para cobrar o
foro: uma espécie de imposto pago pelos quilombolas aos fazendeiros para poder
viver nas terras e plantar. Sem muita conversa, recolhem a maior e melhor parte
da produção da lavoura, fruto de meses de trabalho. Mandioca, milho, arroz,
maxixe, abóbora. Quando julgam que a colheita não foi suficientemente farta,
exigem dinheiro e confiscam tudo o que encontram. Carregam até pratos, panelas
e cavalos. Botam fogo em casa de farinha para retaliar. Ameaçam de expulsão e
morte quem se atreve a resistir. Deixam famílias inteiras para trás passando
fome.
Maria José Pinto de Souza, neta de Galberta, que foi escravizada e viveu no Quilombo Nazaré. Foto: Fernando Martinho |
Embora pareçam saídos de um livro de história do século
XIX, os relatos são de fatos recentes, e acontecem ainda hoje em quilombos do
Maranhão – comunidades formadas pelos descendentes de quem viveu a escravidão
naquela época.
Em comunidades da Baixada Maranhense, é comum fazendeiros
que se dizem donos das terras, muitas vezes sem ter nenhum documento de
comprovação, obrigarem os moradores a repartir o que cultivam. É um sistema que
se repete há décadas e, durante longo tempo, foi seguido sem questionamentos
pelos quilombolas.
Mas, à medida que eles foram tomando consciência de seus direitos, passaram a resistir e os conflitos se acirraram.“Houve um fenômeno esquisito no estado, as fazendas eram
vendidas com as pessoas dentro, como se fossem coisas”, pontua Sandra Araújo
dos Santos, advogada da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“Os negros não entendiam dessas questões de documentação,
então iam sendo submetidos ao que os novos donos queriam, como ao pagamento de
taxas absurdas”. Para muitas famílias, como as 150 que vivem no território onde
está localizado o Quilombo do Charco, em São Vicente Ferrer, abrir mão do que
produzem pode significar não ter o que colocar na própria mesa.
Mas a violência produzida pelo foro vai além da fome. O
quilombola Flaviano Pinto Neto pagou com a vida porque ousou desafiar esse
sistema. Foi executado com sete tiros na cabeça, em outubro de 2010. De acordo
com a polícia, ele tombou a mando do fazendeiro Manoel Gentil.
“Flaviano não aceitou que a exploração continuasse”, diz
Zilmar Mendes, presidente da Associação Quilombola do Charco. “Foi assassinado
porque libertou a nossa comunidade da escravidão”. Pelo menos cinco quilombolas
foram mortos no Maranhão depois dele, em decorrência de conflitos de terras. O
estado é um dos líderes em disputas fundiárias no país.
A perversa prática do foro, que persiste em dezenas de
quilombos no Maranhão, é uma herança do modo como foi aprovada a Lei Áurea. A
escravidão acabou oficialmente em 1888, mas não houve uma política de
distribuição de terras. Quem havia sido escravizado ficou vulnerável a novas
formas de aprisionamento mesmo dentro das áreas onde se estabeleceu como pessoa
livre.
As comunidades maranhenses, assim como de outras unidades
da federação, foram constituídas por trabalhadores escravizados que buscavam
liberdade ou recém-libertos, que se fixaram em áreas deixadas por fazendeiros
falidos pós-abolição, em terras sem destinação ou em lotes recebidos como
herança. Foram formando família. Mas, sem o amparo do Estado, a exploração
continuou.
A
comunidade que rompeu com o foro
Foi essa a história do Quilombo Nazaré, em Serrano do
Maranhão, onde os moradores conseguiram romper com o sistema do foro poucos
anos atrás. “O que a gente não pode fazer é se entregar”, salienta a professora
Joana Batista Santos, de 60 anos. Ana, como é conhecida, nasceu e foi criada em
Soledade, comunidade a 9 quilômetros dali.
Ela se mudou para Nazaré em 2000, para dar aula na única
escola do povoado, e viu que a situação de exploração não era diferente de
outros quilombos do estado. Mas, àquela altura, o marido dela, José Romão Reis
Reges, hoje com 60 anos, já estava envolvido com o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Cururupu, de onde se tornou presidente. E o fim do foro era uma das
bandeiras da entidade. “Para receber, o fazendeiro tinha que mostrar o recibo
de propriedade da terra”, alega Reges.
A resistência à taxa imposta por fazendeiros aumentou
quando os quilombolas começaram a despertar para os seus direitos. A presença
de Clemir Batista e Inaldo Serejo, da CPT, a partir de 2005, foi essencial
nesse processo tanto em Nazaré quanto em outras comunidades nas redondezas.
Eles “plantaram uma sementinha”, reconhece Gil Quilombola, de 37 anos, o filho
mais velho de dona Ana e seu Reges, uma das lideranças da região.
“Detectaram que Serrano era uma área com muitos conflitos
fundiários. Começaram a falar de quilombos, quilombolas, direitos e deveres. A
gente se assanhou”, brinca Gil. Nesse momento, surgiu na Baixada o Movimento
Quilombola do Maranhão (Moquibom), que passou a fazer reivindicações e se
estendeu por todo o estado. Seus integrantes já chegaram a acampar no Incra e a
fazer greve de fome, em busca de visibilidade para sua luta e reconhecimento
legal de seus territórios.
Nazaré está encravado a mais de 100 quilômetros da
capital, São Luís. Uma viagem de cerca de 6 horas que envolve travessia de
balsa, percurso em estrada de asfalto e de areia fofa. É uma das onze
comunidades quilombolas do território batizado de Mariano dos Campos, área cuja
extensão equivale à metade do Plano Piloto de Brasília e é reivindicada pelos
quilombolas em um processo que corre no Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra) desde 2011.
A demanda por regularização fundiária é grande na região.
Pelos cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 94%
da população de Serrano é quilombola. É a maior proporção do país.
Quando dona Ana chegou a Nazaré, em 2000, havia 5 ou 6
famílias. Hoje são mais de 30.
Foto: Fernando Martinho
|
O empresário Wellington Dias, que já se candidatou a
vereador e a prefeito pelo Partido Verde na cidade vizinha, Cururupu, é um dos
que afirmam ter comprado propriedades lá. Disse à Repórter Brasil ter
adquirido a primeira em 1982 do espólio do médico Cesário Coimbra. “É muito
fácil não estudar, não trabalhar, não fazer nada e querer se apropriar de
terras alheias”, critica.
Contrariando a autoidentificação da comunidade, o
reconhecimento da Fundação Cultural Palmares e do próprio Governo do Estado de
que a área é quilombola, tanto que há políticas públicas específicas para as
comunidades, Dias alega que Nazaré nunca foi um quilombo. “Isso é uma farsa”,
reclama. A reação dele mostra a dificuldade da comunidade em fazer valer o
artigo 68 da Constituição, que prevê a concessão definitiva de propriedade.
Direito que está ameaçado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239,
ajuizada pelo DEM no Supremo Tribunal Federal.
A demora do governo federal na regularização definitiva
das terras, a maioria já certificada como quilombola pela Fundação Cultural
Palmares, mantém os ânimos exaltados. “Antes negro deitava no chão pra fazer
ponte pra branco passar por cima. Hoje não deita mais porque negro já é
sabido”, frisa José Mário Silva Pinto, de 54 anos.
Ele conta que chegou a encontrar perto de sua casa um
fojo, vala profunda coberta por folhas usada por capitães-do-mato como
armadilha para capturar pessoas escravizadas que haviam fugido ou mantê-las
presas. “No inverno ficava tudo cheio de água. Tem fojo onde jogavam os negros
e eles não saíam mais porque tinha ponta de ferro”, lembra.
Pinto leva a vida como a maior parte dos habitantes de
Nazaré, em casa de taipa, e tira seu sustento da terra e do rio. Seu orgulho de
ser quilombola emergiu quando a CPT ajudou o povoado a exorcizar discursos como
o de que as religiões de matriz africana são “coisas do demônio” e de que
“negro não presta”. “Não desprezo a minha comunidade”, afirma ele. “Não tenho
intenção de sair daqui”.
No Quilombo, divindades católicas convivem com orixás,
caboclos e encantados. Tambores de mina e crioula ecoam nos festejos do
povoado. “O toque do tambor palpita no peito como se fosse o próprio coração, e
os quilombolas vão se encorajando pela força de seus ancestrais e da
espiritualidade”, diz Sandra, da CPT.
A primeira quilombola
Contam os mais antigos que o português Ramiro Pinto
chegou à Baixada Maranhense na primeira metade do século XIX. Teria seguido a
rota de pássaros e aberto uma estrada na mata imaginando que encontraria um rio
e que poderia fixar residência nas redondezas.
Nhô Ramiro, como era chamado, conseguiu o que buscava.
Colonizou uma boa porção de terras por lá e manteve o costume da época:
perpetuou seu sobrenome tanto nos herdeiros de sangue quanto nas pessoas que
escravizou – um sinal de que seriam todos de sua propriedade.
Parte do que se sabe hoje sobre a história da região foi
relatada por uma neta de Nhô Ramiro, Galberta, filha de um homem branco e de
uma mulher negra escravizada. Ela teria vivido lúcida até os 115 anos. “Minha
vó Galberta ainda era criança quando a princesa Isabel gritou a liberdade”,
lembra Pedrolina Pinto Castelhano, de 62 anos, se referindo à Lei Áurea. “A
família se espalhou quando acabou a escravidão. Muitos negros já tinham fugido
das fazendas naquele tempo, mas ela ficou. Cresceu no Quilombo Nazaré”.
Foto: Fernando Martinho
|
Galberta costumava reunir os netos em bancos de madeira
ou sentados no chão sobre folhas de piaçaba para contar o que sabia. Formava
uma grande roda de crianças. Todas com pratinhos de comida redondos de barro
produzidos por ela própria. Falava dos sacrifícios de viver numa sociedade
opressora. Repetia que os senhores de escravos das fazendas de lá se saudavam todas
as manhãs chacoalhando lenços brancos. “A mata não era alta como agora, era
tudo limpinho”, recorda Pedrolina. “Os negros sofriam demais. Minha vó não
fugiu porque era doente, nasceu corcunda. Fazia tudo que mandavam”.
Muita coisa mudou desde então, em especial quando os
quilombolas foram descobrindo seus direitos. Entre a instalação de um poço
artesiano e o rompimento com o sistema do foro, um local marcou o processo de
transformação da comunidade: a escola, que se tornou o centro de resistência do
Quilombo Nazaré. Saiba sobre esse processo aqui.
Este texto faz parte da reportagem especial da Repórter Brasil: "Quilombo: memória, presente e futuro".
Este texto faz parte da reportagem especial da Repórter Brasil: "Quilombo: memória, presente e futuro".
Nenhum comentário