Auxílio-moradia recebido por Moro e Bretas supera salário de 92% dos brasileiros
Magistrados da Operação Lava Jato ganham o benefício mesmo já tendo imóveis nas cidades onde trabalham.
Por
Rafael Tatemoto – Brasil de Fato
03/02/2018
Dois casos envolvendo integrantes da operação Lava Jato
trouxeram à tona a questão do auxílio-moradia a magistrados: o de Sérgio Moro,
de Curitiba, e o de Marcelo Bretas, lotado no Rio de Janeiro. O valor máximo do
benefício é de R$ 4.377,73, número que supera o salário de 92% da população
brasileira, tendo como referência o ano de 2018.
Os dois rebateram as críticas, mas a verba complementar é
cada vez mais questionada. O Brasil de Fato conversou com dois especialistas
ligados à Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDH), rede que tem como um
de seus eixos a questão da democratização do Judiciário.
As falas foram unânimes no sentido de classificar o
auxílio-moradia como um privilégio injustificável. Rafael Custódio, da ONG
Conectas, entende que a disparidade social brasileira deve ser levada em conta
neste debate.
Desvio
“O Brasil é um país notoriamente desigual. Dentro dessa
desigualdade, há um déficit habitacional histórico. O auxílio-moradia se trata
de desvio de dinheiro público, que poderia estar sendo aplicado em política
habitacional, mas a casta judicial resolve pegar um quinhão do orçamento
público para o próprio benefício”, diz.
Estima-se que 17 mil magistrados sejam beneficiados com o
auxílio. Em um único mês, o Estado brasileiro gastou mais de R$ 60 milhões com
estes complementos. Somados a outros auxílios — como saúde e alimentação — o
volume ultrapassou a casa dos R$ 105 milhões. O levantamento é da
revista Veja.
O auxílio-moradia foi estendido a todos magistrados por
uma decisão liminar do ministro do Supremo Tirbunal Federal Luiz Fux, em 2014.
A filha de Fux, que recebe o auxílio, tem dois apartamentos no Rio de Janeiro.
Maria Eugênia Trombini, advogada da organização Terra de
Direitos e pesquisadora do Poder Judiciário, destaca a capacidade de
organização corporativa dos magistrados, derivada da posição que ocupam na
estrutura de Estado.
"Esses servidores são organizados, e muito bem
organizados. Eles são articulados e estão em espaços de poder. Em posições
qualificadas que permitem interlocução com o poder Executivo e Legislativo. As
pautas [deles] têm muito mais permeabilidade e êxito do que as outras
categorias de servidores”, ressalta.
Ela acrescenta ainda que “se a agenda do governo é de
corte orçamentários, o professor de uma escola pública municipal não tem o
mesmo poder e a mesma possibilidade de agência de uma categoria como a dos
magistrados”.
Questionamentos
Marcelo Bretas teve sua conduta questionada por receber o
auxílio em conjunto com a esposa, que também é juíza. A resolução 199 do
Conselho Nacional de Justiça veda o recebimento do benefício quando o cônjuge
já o recebe. Nas redes sociais, Bretas afirmou que reivindicou a verba
complementar por considerá-la “um direito”.
Custódio não hesita em considerar a postura como defesa
de algo indevido e contraditório com a noção de cidadania. “Para além desses
personagens, eles são reflexo disso, que é essa mentalidade do Judiciário
brasileiro de se considerarem de fato uma verdadeira casta política, econômica
e social e não terem vergonha disso.
O Judiciário é historicamente formado, pensado e composto
pela elite. É uma elite que usa de seu lugar de privilégio para gerir dinheiro
público sem nenhum tipo de constrangimento”, diz. “É um conceito que não se
encaixa em um Estado Democrático de Direito”, complementa.
Moro, por sua vez, recebe o auxílio mesmo tendo imóvel
próprio em Curitiba. “Embora discutível, compensa a falta de reajuste dos
vencimentos desde 1º de janeiro de 2015 e que, pela lei, deveriam ser
anualmente reajustados”, disse o magistrado.
Teto
“É o próprio juiz protagonista do debate político
nacional confessando que o auxílio não é para uso de moradia, mas sim para
burlar os limites salariais de uma carreira”, rebate Custódio, que se refere ao
teto constitucional para salários públicos, equivalente ao salário de ministro
do STF e na casa dos R$ 33 mil.
Com os adicionais, que não são contabilizados como
salário, 71% dos magistrados do país recebem acima do limite. “O Judiciário que
se beneficia de uma imoralidade é o próprio julgador e é ele que vai definir se
a imoralidade que ele pratica é de fato imoralidade. O Supremo Tribunal Federal
também tem sua parte de culpa porque foi omisso durante todos esses anos”,
afirma Custódio, ressaltando o tempo passado desde a decisão de Fux.
Após quatro anos, a questão do auxílio-moradia deve ir ao
plenário do STF em março deste ano. Trombini afirma que o modelo decisório para
o tema é questionável. “Nós temos integrantes de uma categoria decidindo a
respeito de uma remuneração da mesma categoria que eles integram. Isso
escancara as relações que estão caracterizadas dentro do Judiciário. É uma
decisão sobre privilégios atribuídos a si próprios”, critica.
Além de questionável, o modelo decisório deve ser
analisado sobre outra óptica, defende a advogada: “Aqui no Brasil há o hábito
de acreditar que os juízes são aplicadores virtuosos da lei. Nos Estados
Unidos, já se abandonou essa perspectiva e há análises realistas, pautadas pelo
fato de que os juízes são pessoas ordinárias. Como as pessoas comuns decidem,
eles também decidem”.
Romper
o ciclo
A pesquisadora defende ainda que, para romper esse ciclo,
são necessárias ações em duas frentes. A primeira é a modificação dos meios de
acesso à carreira, garantindo que o Judiciário seja mais representativo e,
portanto, próximo da realidade social. Para tanto, seriam necessárias ações
afirmativas nas provas de seleção e métodos que garantam a promoção de mulheres
na magistratura.
O outro eixo desse processo democratizante é o controle
social externo do Judiciário, já que o próprio funcionamento do CNJ tem
mostrado seus limites. “Se houvesse maior possibilidade de participação e
controle social, a gente poderia discutir e construir uma nova agenda de justiça.
Enquanto não temos isso, os espaços continuam muito pouco
permeáveis e distantes da realidade social”, diz Trombini. A reportagem enviou questionamentos à Associação dos
Magistrados Brasileiros, mas não obteve retorno até o momento.
No debate público, as entidades da categoria, além da
defesa do auxílio-moradia generalizado, também demandam a aprovação no
Congresso de uma Emenda Constitucional que criaria remuneração adicional por
tempo de serviço.
Edição:
Vanessa Martina Silva - Brasil de Fato
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