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Como o Pará se tornou território dos massacres no campo

Chacina de Pau D’Arco, a maior desde Eldorado dos Carajás, completa um ano sem desfecho.

Por Maria Teresa Cruz – Ponte Jornalismo
24/05/2018

Nesta quinta-feira (24/5), faz exatamente um ano que 10 trabalhadores rurais foram assassinados por um grupo de policiais civis e militares na Fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no Pará. Pelo menos 15 policiais tiveram prisão preventiva decretada após dois suspeitos do crime fazerem delação premiada, o que aconteceu em outubro do ano passado. Advogado dos dois, Rivelino Zarpellon, conhecido militante dos direitos humanos, passou a sofrer ameaças de morte desde então que se intensificaram neste mês. Os mandantes do crime ainda não foram identificados. 

Foto: Andrés Pasquis

A chacina de Pau D’Arco foi a maior de 2017 no Brasil – seguida pelo massacre em Mato Grosso, que deixou 9 mortos – e na história recente do campo só perde para Eldorado dos Carajás, quando 19 pessoas foram assassinadas em 1996. De acordo com levantamento recente da CPT (Comissão Pastoral da Terra), 70 pessoas foram mortas em conflitos de terra somente em 2017, o maior número desde 2003. Desse total, 22 aconteceram no Pará, saldo que coloca o estado no topo dos locais mais violentos para viver no campo.

Para entender as dinâmicas que fizeram com que o sul e sudeste do Pará se tornassem uma região de tensão permanente é preciso uma viagem na história do Brasil: voltar à década de 1960, alguns anos antes do golpe militar que duraria até 1985. Foi justamente nesse período que o governo federal, que ignorava a existência de povos indígenas e de posseiros no território, passou a rifar grandes extensões de terra a empresas dos mais variados ramos. Tudo isso coincidia com vultosos investimentos na construção de rodovias, um dos resultados mais evidentes do “50 anos em 5” de Juscelino Kubitschek.

“A corrida por terra em cidades como Conceição do Araguaia, Redenção, Santana, Santa Maria das Barreiras começa a partir da abertura da construção da rodovia Belém-Brasília. Quando se instaura o governo da ditadura militar, essa dinâmica aumenta. Antes desse período, a gente já vê incentivos fiscais do governo para empresas, mas depois do golpe isso se amplia. Há um plano de ‘um certo desenvolvimento’ para a região da Amazônia. E como o governo pensava fazer isso? A partir da grande propriedade de terra”, explica o historiador e professor da Universidade Estadual do Pará Airton dos Reis Pereira. 

Surge nesse contexto a SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) e, em 1966, o Banco da Amazônia, voltados a incentivos para criação de gado. “De mais de mil projetos que a SUDAM aprovou na década de 70 e meados dos anos 80, quase 700 eram pra criar boi”, pontua Pereira. Não demorou muito para bancos (Bradesco e Bamerindus), montadoras de automóveis (como a Volkswagen), empresas de fertilizantes (Manah) investissem em terras. Ao mesmo tempo, acontece gradativamente a ocupação de áreas próximas de rios de ondas migratórias de longa data que, com o fim dos garimpos, também se intensifica.

“São trabalhadores de Minas Gerais, Goiás, Bahia, Espirito Santo, que vão aos poucos ocupando, começando a produzir, vão vivendo, contudo, sem ter qualquer documento que comprove que aquele pedaço de chão é deles. Com a chegada dessas empresas, esses trabalhadores passaram a ser retirados do território. Aquela história de que o dono era quem estava com o papel na mão”, explica o historiador. Algumas remoções eram amparadas por ordens judiciais. No entanto, as distâncias entre as cidades do Pará passaram a ser um empecilho para que se aguardasse a decisão de um juiz. “Eles [os grandes proprietários] vão contar com dois tipos de dinâmicas: a polícia, que poderia agir com ou sem ordem judicial, na porrada mesmo, ou os pistoleiros”, explica Airton dos Reis Pereira.

Para o especialista, o Estado tem responsabilidade na construção desse território em permanente conflito na medida em que desenvolveu políticas locais que acirraram essas disputas, ao mesmo tempo em que fechou os olhos para a necessidade urgente de realizar a reforma agrária. “A imprensa brasileira, os grandes proprietários de terra, uma classe de políticos, eles imputaram à reforma agrária uma atividade de esquerda, comunista, subversiva. O resultado foi que a reforma não foi pauta em nenhum governo. Nem do Lula, nem da Dilma, muito menos agora com Temer”, afirma, estendendo críticas ao Incra. “São mais de 514 projetos na região, mais de 70 mil famílias em assentamento, mas eu não conheço um caso que o Instituto tivesse se antecipado aos trabalhadores e criado o assentamento. O Incra tem agido a partir do conflito”, diz.

‘Não é guerra, é massacre’
No início do mês, um grupo de pistoleiros invadiu um acampamento de dez famílias de trabalhadores sem-terra em São João do Araguaia, próximo de Marabá. Encapuzados em duas caminhonetes com pistolas, revólveres e escopetas, chegaram às margens do Rio Araguaia, onde elas estavam acampadas. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, adultos e até bebês foram vítimas de tortura.

“Não é novidade prender, agredir. Há casos de mulheres que foram espancadas, crianças que foram penduradas pelo cabelo em uma trave, mulheres que tiveram que comer bituca de cigarro, por exemplo, engolir cigarro aceso, homens obrigados a comer esterco…”, alerta o professor Airton. Não muito longe dali, está a cidade de Marabá, conhecida pela intensa presença de comunidades quilombolas e por ser bastante militarizada: são três bases do exército para uma população urbana de pouco mais de 186 mil habitantes, sendo que cerca de 47 mil que vivem na zona rural, como mostrou reportagem da Ponte publicada em 2016.

No dia 28 de março, o padre José Amaro Lopes foi preso em Anapu sob acusações que vão de extorsão até abuso sexual. Grande amigo da missionária Dorothy Stang, morta na mesma região em 2005, o padre é integrante da CPT, que saiu em sua defesa, chamou de difamação o que está sendo feito contra o pároco e está fazendo campanha pedindo a libertação dele.

De acordo com o levantamento da CPT, em 32 anos aconteceram 1.438 casos de conflito de terra em todo o Brasil, onde foram assassinadas 1.904 vítimas, sendo 702 no Pará. Com relação aos massacres – ataques em que há 3 ou mais mortos – entre 1985 e 2017, foram contabilizados 46 pela Comissão, resultando em 220 mortes. Desse montante, 37 aconteceram na chamada região da Amazônia, que engloba Pará, Tocantins, Amapá, Rondônia e Mato Grosso, deixando 180 vítimas. “E ainda falando nesses números, se você pegar as 37 chacinas ocorridas nesse período, 26 aconteceram no Pará. Dessas, 20 na nossa região”, ponta Pereira.

O historiador e professor da UEPA, Airton dos Reis Pereira aponta que todos esses episódios se somam um ao outro com o passar das décadas para que se entenda que a violência não é novidade no território e teve participação do Estado em sua construção. “Uma das peças da engrenagem que sustenta a pistolagem está no Estado, por exemplo. De forma direta, com agentes do Estado que muitas vezes tem relação com pistoleiros e pela impunidade. E quem gera impunidade? o Estado”, explica.

“Por que o pistoleiro que matou o Zé Claudio e a Dona Maria [casal extrativista Maria do Espírito Santo e José Cláudio Ribeiro assassinados em 2011 em Nova Ipixuna, sudeste do Pará] fugiu da prisão? Como o pistoleiro que matou o Expedito Ribeiro de Souza conseguiu escapar de uma penitenciária de segurança máxima? São perguntas que precisam ser respondidas”, provoca.

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