O impacto dos algoritmos do Facebook e Google na democracia
Em entrevista na Casa Pública, especialistas analisaram ainda a influência desses conglomerados na política e no jornalismo.
A conversa foi na Casa Pública, no Rio de Janeiro, e contou com Marco Aurélio Canônico, da Folha de São Paulo, Eugênio Bucci, colunista da revista Época, Joana Varon, diretora da Coding Rights, e Ivana Bentes, pesquisadora da UFRJ. A condução da entrevista foi de Natalia Viana, codiretora da Pública.
Por Agência Pública
25/05/2018
A conversa foi na Casa Pública, no Rio de Janeiro, e contou com Marco Aurélio Canônico, da Folha de São Paulo, Eugênio Bucci, colunista da revista Época, Joana Varon, diretora da Coding Rights, e Ivana Bentes, pesquisadora da UFRJ. A condução da entrevista foi de Natalia Viana, codiretora da Pública.
Foto: Markus Spiske/Unsplash |
Natalia
Viana – O Eugênio Bucci me falava há pouco que decidiu nunca entrar no
Facebook. Por que, Eugênio, você nunca quis entrar no Facebook?
Eugênio
Bucci – Por um motivo político, que discuto abertamente,
inclusive com as pessoas do Facebook. Considero o pacto que o Facebook nos
propõe um pacto desleal. No Facebook, o usuário, que se acredita o beneficiário
dos serviços, é o operário, a matéria-prima e a mercadoria. É um nível de
acumulação e de produção de valor em uma escala que a gente não conhecia na
história do capitalismo. Quando uma pessoa conta as suas histórias mais íntimas
e as histórias que mais a mobilizam emocionalmente, afetivamente, ela está
inserindo dados e mais dados em um sistema que vai transformar aquilo em valor
econômico. A matéria-prima vem da biografia de cada pessoa. Quem digita,
fotografa, edita e abastece também é essa mesma pessoa, e o que vai ser vendido
é essa história e essa biografia, e a gama de desejos, as demandas que ela
traz. Algumas pessoas falavam: “Como você pode dar aula em uma faculdade de
comunicação se você não tem Facebook?”. Eu posso estudar, se for o caso, mas
não preciso ter. É um pacto desleal, é um monopólio global, que atravessa
fronteiras nacionais e que, para servir à democracia, terá que negociar com a
democracia.
Natalia
Viana – Abrimos com uma crítica forte ao Facebook, mas será que outras
empresas, que também têm no seu modelo de negócios a venda de dados, como o
Google, não são a mesma coisa?
Ivana
Bentes – Eu ia perguntar se o Eugênio parou de ver televisão
também porque a televisão vende audiência. Em menor escala, enfim, todos os
grupos de comunicação trabalham de certa maneira com esse público. É claro que
a dimensão do Facebook é distinta, mas queria lembrar, só para a gente também
não demonizar o Facebook, o fato de não ter transparência nos algoritmos, no
que aparece no meu feed de notícias. Não me parece que o Facebook seria uma novidade
tão grande dentro das contradições do capitalismo e desses modelos, em relação
a esse assujeitamento, que a gente
vai encontrar em todos os muitos outros modelos de negócio de comunicação. Por
isso, perguntei se você parou de ver TV também.
Natalia
Viana – Em 2010, 2011, o Facebook, as plataformas ajudaram vários movimentos a
se comunicar. Movimentos de rua, movimentos de ocupação. Naquele determinado
momento, estar na internet, estar nessas plataformas, representava a liberdade,
representava um mundo novo, representava a democratização da comunicação. De lá
para cá, o que mudou? Por que hoje em dia a internet virou uma grande ameaça à
democracia, sendo que menos de dez anos atrás ela era a grande salvadora da
democracia?
Ivana
Bentes – Eu acho que o que mudou foi justamente o uso, e aí,
sim, um uso absolutamente assimétrico. Basta a gente ver o escândalo da venda
dos dados, o uso dos dados para construir opinião pública artificial, o uso de
robôs. Ou seja, uma série de usos que colocam em risco a democracia como a
gente pensa. Você acha que a opinião pública está sendo construída de uma forma
“espontânea”, e ela está sendo produzida, como o caso do “Queer Museu”, a gente
viu as análises da FGV com 10% de robôs reproduzindo os tuítes e mensagens. Ou
seja, a construção da opinião pública usando o aplicativo como o Voxer, como o
MBL fez, automatizando discursos de ódio, massificando e difundindo mensagens
de ódio, discursos absolutamente assujeitantes que colocam em risco essa
ecologia da diversidade. A meu ver, isso realmente entrou em um outro patamar.
Natalia
Viana – Só lembrando o que foi a questão do Voxer. O Voxer era um aplicativo
usado pelo MBL em que os seus usuários permitiam que o MBL publicasse nos seus
perfis em nome deles. Ou seja, aparecia um post que era escrito por um
profissional do MBL como se eu tivesse publicado. Então, ele poderia escrever o
discurso que fosse, calunioso, de ódio etc., sem passar pela aprovação do
próprio usuário e do próprio perfil.
Marco
Aurélio Canônico – Acho que mudou a escala, certamente. Eu
concordo com o Eugênio: o grande duopólio da internet, Facebook e Google, vive
de pegar as informações que a gente dá. Tem uma frase célebre sobre isso: “Se
você não está pagando, você não é o cliente, você é o produto que eles estão
vendendo”. A gente foi entrando nesse processo cada vez mais e abrindo mão de
mais informação pessoal. Com isso, as pessoas também foram ganhando mais
consciência. Hoje você entra no site e consegue ver tudo o que o Google tem de
você, todos os passos que você deu. Eles foram se tornando cada vez melhores
nisso, e a tendência é aumentar. Eles estão lançando assistentes pessoais, por
exemplo, o Google tem, a Apple tem, o Facebook por acaso não tem. Eu me lembro
de que, em 2010 ou antes, eram comuns reportagens do tipo você levantar tudo o
que você podia dizer de uma pessoa só com o que estava na internet. E a pessoa
não se dava conta. Acho que essas foram as principais mudanças.
Joana
Varon – Concordo com todo mundo, acho que a gente não está
discordando totalmente. Tem esses dois lados, tanto do Facebook quanto de
outras redes sociais, de teoricamente aumentar o alcance de conteúdos que você
produzia antes. Mas, olhando a história da internet, também a gente sofreu, a
gente começou movimentos de direitos digitais pensando em Creative Commons, acesso ao conhecimento, a internet como essa
potência para a gente poder encontrar tudo, e era um movimento feliz. Teve
aquele filme Remix Manifesto, que a gente tinha o Ministério da Cultura aqui
bombando com o Gil, com Pontos de Cultura. Cultura digital era a palavra. E aí
Snowden, vigilância, depressão, distopia. E agora? A internet é a ferramenta da
vigilância e da manipulação de mentes.
Da esq. p/ dir.: Natalia Viana, Joana Varon, Marco Aurélio Canônico, Ivana Bentes e Eugênio Bucci. Foto: Agência Pública |
Natalia
Viana – Você marca o escândalo do Snowden como um momento em que mudou essa
visão?
Joana
Varon – Acho que um pouco sim, porque deixou bastante clara a
conexão das empresas, do capitalismo e da vigilância. Mais gente começou a
falar mais de privacidade, desenvolvedores mesmo, ali no nível da arquitetura
da rede. A internet foi criada para conectar, as páginas antes eram HTTP, não
tinha criptografia nem nas páginas, agora tem tudo HTTPS. Esse “S” é o cadeado
e é uma mudança no nível do código que faz com que o trânsito seja
criptografado. Então, as pessoas começaram, no nível dos protocolos, a pensar
em segurança e privacidade e a debater mais. “O que essa manipulação de dados
pode trazer?” Era claro que isso estava sendo usado para marketing direcionado,
publicidade direcionada para venda de produtos. A Cambridge Analytica deixou claro que isso também é usado para fins
políticos. A gente tem hoje esses monopólios, e concordo que a gente vive um
colonialismo digital pelo poder dessas grandes plataformas, que foram criadas
com a lógica do Vale do Silício, com a lógica do homem branco puritano
americano.
O Facebook foi criado dentro de Harvard para fazer
ranking das meninas mais bonitas, e foi daí que surgiu essa plataforma.
Concordo que a gente tem esse momento e esse problema que essas plataformas são
um monopólio. E, por outro lado, a gente tem que buscar alternativas de
plataformas que têm, no seu desenvolvimento, na sua concepção, outros valores e
outras tropicalidades.
Natalia
Viana – Eu entendo que tenha uma corrente que diz “vamos buscar outras
plataformas”. Por outro lado, essas plataformas estão aí: o Facebook tem 2
bilhões de usuários. Dá para conter o Facebook? O mundo caminha para conter não
só o Facebook como o Google? Caminha-se para uma regulação dessas empresas? O
que vai acontecer?
Eugênio
Bucci – Acho que existe a pauta desse debate. É interessante,
talvez você saiba mais disso, o que vem acontecendo na União Europeia, porque
pode parecer difícil de visualizar, para nós, o que eu vou dizer agora.
Facebook e um pouco o Google – “um pouco” porque há diferenças – são grandes
negócios supranacionais, eles são globais, se estruturam como monopólios que
detêm os seus mercados através e por cima das fronteiras nacionais. O que isso
significa? Uma legislação nacional não dá conta de abraçar esse objeto e regulá-lo.
Não dá conta de proteger direitos.
A contradição que essa situação do Facebook nos coloca é
uma contradição entre o poder do capital em um grau nunca alcançado e a
privacidade individual. Privacidade é necessária para a constituição do
sujeito, não há subjetividade se não houver privacidade. Nós aprendemos a
pensar a proteção da privacidade contra o Estado. Nós temos hoje um grau de
invasão dessa privacidade, promovido por uma indústria e por uma tecnologia,
que passa por cima das proteções individuais. Porque a legislação nacional não
consegue encarar esse objeto e não consegue regulá-lo. Se a legislação nacional
não consegue, o que pode fazer frente a isso? Em parte, entidades como a União
Europeia ou, em parte, acordos multilaterais. A democracia pautou esse debate,
ele vem ficando mais forte, mas depende de acordos internacionais para se fazer
acontecer, e acredito que poderá acontecer. Eu queria fazer uma comparação
rápida, se a Natalia me permitir. Mas o que houve com a televisão e com o
rádio? O rádio, a televisão, quando aparecem… por exemplo, na Europa, a
televisão era um meio de comunicação de empresas públicas. A maior parte dos
canais da França, Inglaterra, Reino Unido, Alemanha, Espanha, Portugal, Itália
em parte, Suíça, eram emissoras públicas, que não faziam comércio. Não faziam
comércio com os dados. Nos Estados Unidos, a televisão é muito forte, mas ela
nasce fortemente regulada pela FCC, que é a Comissão Federal da Comunicação. E,
também nos Estados Unidos, surgem emissoras de TV públicas. Elas estão em
sintonia com as exigências da democracia. Por quê? Porque estão tratadas,
regulamentadas, organizadas. Por que há três redes de televisão nos Estado
Unidos? Porque foi uma determinação legal. Isso, estou falando dos anos 1950,
1960.
O que acontece hoje com esses conglomerados gigantescos,
cujos valores se aproximam de US$ 1 trilhão? Agora mesmo estava comentando:
talvez no próximo período, a Apple, que é hardware, mas também é software, se
aproxime do valor de US$ 1 trilhão. Esses conglomerados passam à margem de
qualquer legislação. Então, a democracia está percebendo isso, mas ainda não
dispõe dos instrumentos para regular e para enfrentar esse objeto.
Joana
Varon – O que acontece também é que o modelo de negócio do
Facebook e do Google caminha em paralelo com a agenda internacional americana.
Então, mesmo nos fóruns internacionais, a posição dos Estados Unidos para
qualquer regulação mais ampla que pegue essas plataformas vai estar alinhada
com a visão dessas empresas; inclusive, representantes dessas empresas vão nas
delegações americanas da ONU e botam mesmo o que elas querem. A União Europeia
pode fazer frente, sim, e eu acho que depois do escândalo da Cambridge os
Estados Unidos vão ter uma pressão para ter uma Lei de Privacidade mais forte.
O Brasil não tem uma Lei de Privacidade até hoje, uma Lei de Proteção de Dados.
E uma lei assim é importante, mesmo que as empresas sejam de fora, para que a
gente tenha alguma capacidade de jurisprudência.
Ivana
Bentes – Acho que a gente tem que incluir nessa discussão da
segurança os dados dos governos. Porque, primeiro, a venda de dados não começou
com a internet. A gente sabe hoje que a Serasa tem todos os nossos dados. Os
cartões de crédito sabem tudo o que nós consumimos. Vocês acham que esses dados
não são passados para lugar nenhum? Os bancos de e-mails, o telemarketing que
invade o seu celular, que a gente recebe telefonema sábado, domingo, vendendo
coisas. De onde vem esse acesso? Não foi nem do Google nem do Facebook. Acho
que a gente tem que ampliar essa discussão. De novo, há muito tempo eu deixei
de ser nacionalista, acho que tem lutas que são globais e que atravessam de
maneira transversal. Então, a questão da segurança de dados, a questão da
governança, inclusive, dessas plataformas, a meu ver, está para além da
discussão “eles” e “nós”, porque efetivamente esse tipo de ação acontece
cotidianamente pelos governos. Vocês têm confiança com os nossos dados
recolhidos pelo IBGE? Fico imaginando agora, nesse governo bastante complicado,
o que é possível fazer, inclusive eleitoralmente, com esses dados. Esses dados
sempre foram usados. De forma política, nas políticas públicas.
É muito recente a questão da transparência, a lei de
transparência de dados, do acesso aos dados do Estado, mas o Estado sempre teve
acesso absoluto aos nossos dados. Então, acho que há uma inconsciência da
sociedade em relação à questão da segurança dos seus dados. A carteira de identidade
agora digitalizada, ou seja, uma quantidade gigantesca de dados em uma mesma
plataforma. Então, toda e qualquer plataforma, independente de Google,
Facebook, governo, que concentra nossos dados, dados privados, dados de
dívidas, econômicas, de vacina, é absolutamente problemática.
Natalia
Viana – O escândalo dessa técnica ter chegado à política é realmente tão
grande? Ou será que o escândalo já acontecia e só porque não tinha tocado no
establishment americano não era discutido? De fato, fake news é a grande ameaça à democracia ou há um pouco de histeria
nessa discussão?
Marco
Aurélio Canônico – Entendo seu ponto, são duas coisas
distintas. Acho difícil a gente calibrar ainda o quanto um é mais problemático
que o outro. Que as fake news são
problemáticas, não há dúvida disso, e que o uso político de dados, de likes… a partir do like você consegue traçar o perfil e consegue direcionar a
propaganda política. Mas não sei se a gente tem como fazer essa métrica agora.
Ivana
Bentes – As notícias falsas sempre existiram, as notícias
falsas no âmbito eleitoral também são uma tradição no Brasil. Aquela famosa
capa da Veja um dia antes da eleição, o boato no WhatsApp dizendo que o doleiro
foi envenenado… suspenderam o Bolsa Família. Enfim, uma quantidade gigantesca
de informações que já circulam, ou seja, a produção de fake news no Brasil tem uma tradição sólida, larga, e
principalmente nesse âmbito eleitoral, com a participação das grandes
corporações, mídias em maior ou menor escala. O que acho complicado é a gente
só conectar fake news com a rede.
Exatamente esse lugar onde todos produzem, eu produzo. Nós temos mídias
alternativas. Então, acho que começou a se construir um discurso, me parece,
muito problemático: “Notícias seguras somos nós, as mídias corporativas,
profissionais, e o jornalismo profissional; as fake news vêm do resto”, ou seja, da sociedade, das outras mídias,
dos outros portais. A gente tem que tomar muito cuidado com isso.
Fiquei muito feliz quando, por exemplo, a Globo e o
Fantástico entraram no combate às fake
news contra a Marielle. Foi o primeiro momento no Brasil em que nós tivemos
uma mídia corporativa que entrou pesado desqualificando aqueles memes que a
articulavam com o tráfico, e foi muito importante essa associação rede, mídias
corporativas. Mas sempre, ao final das notícias, vinha este sermão: “Consumam
apenas as nossas notícias, que são as mais verdadeiras e as mais legítimas”.
Não é isso. E aí eu volto à potência do Facebook. O problema não é a potência
de automação. E acho que as outras mídias e o cidadão devem ter o poder de
massificar, de difundir e de automatizar, tal qual as corporações, a sua
produção de notícia, de informação e a sua disputa de mundos, inclusive com os
robôs. Podemos pensar em “robô-cidadão”, um robô que difunde mensagens de
direitos humanos contra o ódio. Ou seja, o problema, de novo a meu ver, não
está na tecnologia, mas no uso e na governança que a gente faz dessa
tecnologia. Nesse sentido, eu sou superfã de todas as automações, até do Voxer
usado para o bem.
Natalia
Viana – Marco Aurélio, queria que você falasse se a Folha realmente se vê com
essa distinção entre o jornalismo e as redes. E queria que você contasse como
foi essa decisão da Folha de sair do Facebook.
Marco
Aurélio Canônico – Antes disso, eu ia perguntar para a Ivana,
e nem ia perguntar como provocação nem pegadinha, é realmente uma curiosidade:
você acha que a definição do que é fake news está clara hoje para o público em
geral? Porque eu acho que isso vem sendo deturpado. Por exemplo, o Trump fala
muito de fake news para se referir às notícias com as quais ele não concorda,
que são contra ele.
Natalia
Viana – Vamos fazer um teste: o que é fake
news para você?
Marco
Aurélio Canônico – Fake
news é uma notícia claramente fabricada, uma notícia que nem tenta ser
jornalística. É uma fabricação pura e simples. Acho que há notícias que contêm
erros – nós erramos, jornalistas erram –, e uma notícia errada – a Folha erra
todo dia, como os demais veículos de imprensa – não é fake news. O fato de que a notícia está errada é uma outra coisa.
Você errou em uma informação, você pode errar em uma informação. Isso não é o
que define fake news. O fato de uma
notícia ser contrária ao seu ponto de vista, de estar defendendo um ponto de
vista do qual você discorda, também não é o que é fake news. Você pode ter uma entrevista com um candidato que
defende um determinado ponto de vista ou defende determinada posição política.
E acho que começou a se generalizar o conceito de fake news que é basicamente “fake
news é o que eu não gosto”. Eu não concordo. Então, a minha dúvida na
verdade é esta: vocês acham que esse conceito do que é fake news está bem compreendido, que hoje a gente fala, entende o
que é fake news?
Natalia
Viana – Tem uma pesquisadora americana, a Claire
Wardle, que diz que esse conceito não deve ser usado; a União Europeia
também diz que não deve ser usado. Porque na verdade existem muitos tipos de
desinformação. Voltando à pergunta: você percebe ou você vê que a Folha tem uma
visão de que há um lugar do jornalismo?
Marco
Aurélio Canônico – Claramente. Vocês devem saber, a Folha
contratou a Lupa para, inclusive, fazer fact-checking.
Então, a questão do fact-checking e
da conferência, isso é uma outra coisa. Evidentemente, há uma série de regras
do fazer jornalístico, ele comporta uma série de regras, é uma técnica. Há toda
uma maneira de você fazer uma apuração jornalística. Nós somos pautados por uma
constituição, no caso o Manual de redação da Folha.
Para dar um exemplo do que eu quero dizer da questão
Folha/Facebook. A Folha tem 5,9 milhões de seguidores no Facebook. Disso, a
maior parte da audiência da Folha ainda é orgânica, ou seja, não são as pessoas
que acessavam na página da Folha, mas são as pessoas que postavam os links e as
reportagens da Folha.
A maior audiência que era direcionada para a Folha sempre
foi uma audiência orgânica, nunca foi audiência da própria página. Dos 5,9
milhões de seguidores que a página tinha, isso gerava 2%, 3% de audiência. Por
que isso? Porque o Facebook tem o algoritmo dele, que você nunca sabe para onde
vai, mas que você sabe claramente que está reduzindo o peso das notícias
jornalísticas. Isso a gente já vem sentindo desde 2015. Foi em 2015 que teve
uma primeira mudança de algoritmo, e de lá para cá a gente já veio sentindo a
queda de audiência de notícias jornalísticas da Folha no Facebook. E,
paralelamente, a Folha fez essa métrica, estava escrito na reportagem: quando o
jornal anunciou a saída do Facebook, a Folha anunciou que fez essa medida.
De outubro a janeiro, a quantidade de interações com
páginas de fake news subiu 62%,
enquanto a quantidade de interações com páginas de veículos de imprensa caiu
17%. Então, é um problema que já vinha se desenhando. E foi nesse cenário que a
Folha decidiu se desligar do Facebook.
Natalia
Viana – Desde a decisão da Folha, o que mudou? Mudou alguma coisa na audiência
que chega na Folha?
Marco
Aurélio Canônico – A audiência diminuiu, mas não
significativamente por conta disso que eu disse. A audiência já vinha
diminuindo, e a maior parte da nossa audiência é orgânica, continua sendo
orgânica, não é desses 5,9 milhões de seguidores que a Folha tem lá na sua
página. Quando a Folha tomou essa decisão, um dado que eu posso dar é: o
Facebook já era a quarta fonte de audiência online para o jornal. Muito
distante das três primeiras. Então, a decisão é multifacetada. Ela tem pelo
menos três aspectos principais: tem esse aspecto de “bom, já não é um bom
negócio para a gente, a gente não está tendo mais a audiência que a gente tinha
porque eles alteraram o algoritmo deles”; tem uma posição política, digamos
assim, do jornal, que entendeu que o Facebook passou a ser um lugar que não
valorizava o bom jornalismo com a mudança de algoritmo. E há incontáveis
declarações do Mark Zuckerberg nesse sentido. Ele foi muito questionado pelos
jornalistas do mundo inteiro.
E, por fim, não sei o quanto vocês conhecem do Facebook,
mas eles lançaram há uns dois anos o Instant
Articles, que é uma ferramenta para carregar mais rápido os textos. Em
geral, quem é usuário nem se dá conta disso. Isso é uma coisa que os
jornalistas conhecem mais, mas o usuário nem vê. A maior parte dos textos
jornalísticos que você vê no Facebook, quando eles carregam rápido, é porque
estão dentro do Instant Articles. É
uma ferramenta que o Facebook criou e a que a imprensa brasileira aderiu como
um todo – a Folha foi a única que não aderiu – para acelerar o carregamento.
Isso evidentemente dá mais audiência, a página fica mais limpa, mais clean,
carrega mais rápido. E isso faz muita diferença na audiência das matérias
jornalísticas online.
A Folha não aderiu, e aí, de novo, é uma diferença básica
do princípio que o jornal tem, da estratégia digital do jornal, que é: a Folha
acredita no pay wall, a Folha
acredita que o jornalismo só vai se sustentar na internet com assinantes, com
gente pagando. A publicidade não cobre o suficiente do fazer jornalístico, até
porque a publicidade está largamente dominada pelo Google e pelo Facebook.
Então, a Folha é um jornal que tem pay wall. E o Instant Articles não permite pay
wall, ele é aberto, é de graça. O que aconteceu paralelamente? Vocês devem
lembrar: o Google lançou uma ferramenta semelhante, o AMP, e a Folha está lá,
porque lá ele permite o pay wall.
Natalia
Viana – Pelo que você mesmo falou, o impacto da decisão do Facebook para a
Folha não foi tão grande. O impacto para a Folha não foi tão grande também
porque a Folha não saiu do Facebook, a Folha não deixou de colocar, por
exemplo, botões de compartilhamento do Facebook nas suas matérias. A decisão da
Folha foi muito mais política, foi um anúncio que é uma discussão que a Folha
já faz há muito tempo. Nisso, eu queria voltar um pouco à questão que a Ivana
trouxe, que é: também a Folha tem pautado muito a questão do jornalismo
profissional, ou do bom jornalismo. Ou seja, “essa plataforma não prioriza o
bom jornalismo”. Queria que você deixasse mais claro o que é que você vê. E
você também falou que “quem faz jornalismo não tem tanto impacto”, mas queria
lembrar, por exemplo, que Mídia Ninja em 2013 teve um impacto gigantesco.
Marco
Aurélio Canônico – Não é impacto, é alcance. O alcance varia.
Jornalismo ainda continua sendo uma coisa muito cara de fazer. Me parece um
tanto um mito – e é a minha opinião pessoal, não é a do jornal – essa coisa de
que é óbvio que ficou mais fácil, mais acessível e você consegue divulgar, você
não precisa imprimir ou ir para a frente de uma televisão. Qualquer um pode
fundar um grupo etc. Mas fazer jornalismo, principalmente jornalismo de âmbito
nacional, é uma coisa extremamente cara. Quem são os grupos que estão cobrindo
os grandes temas? O que aconteceu foi muita gente cobrindo nicho, cobrindo
coisas locais, coisas pontuais, que é o que dá para fazer com uma equipe de
cinco, dez pessoas. Porque para você ficar viajando, mandando gente para o
exterior, mandando gente para rodar o país etc. é caro. É caro fazer jornalismo
de qualidade.
Ivana
Bentes – Então, você está falando que bom jornalismo é poder
econômico, né? De certa maneira também.
Marco
Aurélio Canônico – Não, é possível fazer bom jornalismo em um
escopo menor, que é economicamente mais viável. Por exemplo, a Folha é um
jornal de ambição nacional, mas não tenho dúvidas de que um jornal de “n”
cidadezinhas do interior, ou mesmo da capital, um jornal do Belém cobre o Belém
melhor do que a Folha cobre. Se você tem ambições maiores, você não consegue
sustentar isso se você não se banca. Ninguém achou a fórmula para se bancar. A
gente tem exemplos de gente que está fazendo por assinatura etc., mas o escopo,
de novo… Tem muitos bons exemplos de jornalismo sendo feitos em um escopo
menor, gente que não cobre cultura, mas cobre Justiça, gente que cobre
política, mas não cobre esporte, ou que cobre esporte, mas não cobre outras
coisas. O que os grandes veículos de mídia fazem é uma tentativa de você ter um
cenário muito mais amplo. É uma cobertura muito mais complexa e muito mais cara
nesse sentido, mas a qualidade não está associada necessariamente e diretamente
ao poderio econômico.
Ivana
Bentes – Claro que, obviamente, fazer bom jornalismo é caro. A
gente tem as formas de financiamento das mídias pequenas, tem novos modelos,
inclusive, de financiamento, agências, a Pública, o crowdfunding, o próprio usuário financiando, a Ninja etc. Mas,
óbvio, a gente lutou durante muito tempo, e perdemos essa batalha da
democratização das verbas publicitárias. O governo hoje sustenta as corporações
de mídia em partes. As verbas publicitárias milionárias do governo vão para as
grandes corporações. Então, a democratização das verbas publicitárias que vão
para a grande mídia hoje faria florescer uma quantidade gigantesca de outras
mídias. Então, isso é concentração de poder, sim, e essa capacidade de
investigação e de bom jornalismo tem, sim, relação com poder econômico. Isso,
para mim, é muito claro. Essa democratização das verbas publicitárias é uma
discussão que a gente faz.
Eu sou diretora da Escola de Comunicação, sempre fui
contra a exigência de diploma para você exercer jornalismo. Jornalismo é
importante demais para ficar na mão dos jornalistas. Então, essa disseminação,
essa ruidocracia – na verdade, a gente nunca teve uma velocidade tão grande de
desmentidos, de correção de notícias feita por usuários. A gente descobriu que,
em vez dos cinco críticos d’O Globo ou da Folha de S.Paulo, tinha mil com igual
capacidade de repertório, de análise. Achávamos que a Barbara Heliodora, no Rio
de Janeiro, era a única capaz de falar de teatro. Descobrimos que tinha mil
Barbaras Heliodoras.
Mariana
Simões – Voltando para o algoritmo. No início do Facebook, tinha pessoas
elegendo quais eram as matérias que iriam aparecer no news feed, até que o robô pudesse transformar aquilo em uma coisa
automatizada. Como a gente pode responsabilizar o impacto que esse tipo de
modelo de negócio tem na política e na sociedade?
Joana
Varon – Hoje a gente vive a lógica do like. Like, share, like,
share. E isso é um jeito de consumir pessoas, fatos da vida e interação
social que virou padronizado porque um dia veio uma plataforma, te colocou isso
na frente, e aí virou a sociedade do like.
Não sei muito bem como é ser criança e adolescente crescendo com isso
quantificado. E o modelo do jornalismo foi indo para essa lógica, que foram
essas plataformas que colocaram, que é do clickbait.
Então você vai pensar como publicar as coisas para ganhar mais like também. Em cima disso, cada um está
ali na sua bolha, no seu filtro-bolha que a própria plataforma criou, e, no
caso do Facebook, vai experimentando com isso. Já fizeram um estudo testando se
eles conseguiam mudar o humor dos usuários. Eu não gosto dessa palavra
“usuário” porque é uma palavra do Vale do Silício, mostrando justamente que o
que eles querem com as plataformas, com os produtos deles, é viciar as pessoas.
Pegaram dados dos cidadãos que estão ali e foram vendo se você está deprimido,
se você coloca notícias mais assim, se você consegue mudar o humor da pessoa ou
não. Eles fizeram esse estudo há uns anos, velado, ninguém sabia que estava
sendo cobaia. Já mostra essa intenção de testar como funciona a mente humana na
relação com a interface que eles colocam. E aí o que tem por trás disso? Todo
esse debate da transparência dos algoritmos, que é um debate difícil porque,
por um lado, eles vão falar “mas é um segredo industrial porque todo mundo quer
hackear o nosso algoritmo para aparecer mais”. E isso com o Google também, e
vários outros. Mas, por outro, você não sabe mais por que você está consumindo,
a sua dieta de notícias aparece ali, você não sabe por quê.
De novo, eu não acho que o Facebook e essas plataformas
têm solução, e temos que ir para outras coisas com outras lógicas e outras
formas de interação que não é like ou
share, mudar essa dinâmica. Mas
queria dar uma hackeada e perguntar para o Marco Aurélio: a Folha optou por
tirar o perfil, mas a Folha continua lá porque todo mundo publica a Folha lá e
tem o botãozinho do Facebook. Mas essa mudança o Facebook fez para priorizar
“interações significativas” – eles usaram um termo assim. Interações
significativas é a sua prima postando um neném, e não a Pública postando sobre
intervenção militar no Rio de Janeiro, então vamos priorizar o neném, os gatinhos,
que aí, quem sabe, as pessoas vão estar com menos ódio e vão voltar a gostar do
Facebook. Acho que isso é que está por trás da cabeça do Mark.
Natalia
Viana – Se a algoritmização da sociedade é uma ameaça à democracia, o que nós
devemos fazer?
Eugênio
Bucci – Vamos dizer que os algoritmos atuam na distribuição de
mensagens políticas. Atuam aí. Isso nós já sabemos. Atuam no estabelecimento de
barreiras, impondo um impedimento de acesso de um determinado grupo a uma
determinada informação que está do lado de lá, tudo isso matematicamente. O
algoritmo, então, é o eleitor? O algoritmo vai votar? O algoritmo vai
substituir o cidadão? É evidente que esse tipo de discussão carece de uma
checagem objetiva, com métodos próprios e que possam estabelecer um critério
mínimo não do que é verdade ou do que é “a” verdade, mas que possam estabelecer
parâmetros de verificação de fatos. Hoje está acontecendo uma reunião aqui que
tem “x” pessoas, que começou tal hora e terminou tal hora, em que foi falado
isso e aquilo, esse tipo de verificação. Nesse sentido, a combinação da
presença do algoritmo, que favorece o isolamento de certas opiniões, com a
ausência de métodos de checagem universalmente acessíveis, essa combinação
corrói, sim senhor, sim senhora, as chances da democracia.
Joana
Varon – Acho que a gente está aqui porque também ama a
tecnologia, usa, se apropria, se empodera com tecnologia. Na Coding Rights, a gente tem um projeto
que chama “o Chupadados”, em que a gente traz histórias em que problematiza
essa coleta massiva e a formação de perfis por dados, e como isso pode levar à
segregação. Mas, também, ter uma visão de algoritmos, de inteligência
artificial que seja só distópica, acho que é triste. Mas o que a gente tem que
pensar? Os algoritmos são processos matemáticos, mas são concebidos por
humanos. Então, se você for me perguntar “qual é o algoritmo da Joana de
manhã?”, ah, vai vir meu gato, vai bater no meu nariz, eu vou acordar, ou vai
tocar o despertador e eu vou tomar café e tomar banho. Se eu pegar o meu
algoritmo e passar para você e você tiver alergia a gato, você já morreu com o
meu algoritmo de manhã, porque o gato vai espalhar na sua cara. Então, a gente
tem que pensar que os algoritmos vêm com valores, que é o caso do Facebook. O
algoritmo foi concebido e os valores que estão embutidos ali não são apenas
valores matemáticos, mas são valores éticos, humanos, desumanos…
Então, a resposta da pergunta da Natalia não é uma
resposta imediata, não dá para conectar “algoritmos vão acabar com a
democracia”. Eles podem ajudar a democracia, depende de que valores você vai
embutir aí.
Marco
Aurélio Canônico – Você não acha que isso vai ficar cada vez
mais sofisticado? Porque hoje as fake
news são muito primárias. É uma coisa que basicamente com bom senso e educação
você consegue discernir. Isso vai chegar a um nível em que você não vai
conseguir discernir realmente o que é real, e a coisa vai começar a ficar
perigosa.
Joana
Varon – Em defesa dos algoritmos, da matemática, da ciência, a
gente pode pensar algoritmos para limpar o lixo, depende da finalidade. Se for
pensar algoritmo para enganar as pessoas, que isso aqui é falso ou verdadeiro,
pode fazer também. Mas é o que eu estou falando: não é essa ferramenta e essa
tecnologia em si o problema. É a intenção.
Eugênio
Bucci – A questão aqui não é o algoritmo ou não. Tem gente que
diz, como você acabou de dizer, que os algoritmos estão na natureza, são
sequências de decisões. Mas você falou “o meu algoritmo de manhã”, com seu gato
e tudo.
Joana
Varon – Sou eu com as minhas decisões que se repetem. Que não
estão na natureza, estão na minha cabeça.
Eugênio
Bucci – Isso, são decisões que você toma. Mas tem gente que
diz que os organismos vivos são algoritmos. É uma discussão que não vem ao
caso. Mas o que eu queria lembrar é uma coisa que tem tudo a ver com a nossa
discussão de hoje. Não se trata do algoritmo bom ou mau, trata-se antes de um
algoritmo completamente fechado. Esse é que é o problema. Você precisa
acreditar em alguém que está dizendo que ele vai ser empregado para o bem. Mas
nós não sabemos o que é o bem na cabeça dessa pessoa, e o algoritmo não é
transparente, ele é código completamente fechado. Então, este é o problema da
democracia: nós não temos acesso às regras matemáticas que estão determinando o
fluxo das mensagens e das informações. Então, nós não podemos discuti-las. Essa
é que é a questão. Porque é claro que um algoritmo pode ser empregado para
apressar diagnóstico em uma doença crônica em uma determinada sociedade, ele
pode limpar o lixo, melhorar o trânsito, aumentar o tráfego aéreo em eficiência
e tudo mais. Mas, em todos esses casos, a sociedade democrática precisa
entender como ele está sendo feito. Então, o algoritmo tem um dono, e o que
isso quer dizer? Que os nossos movimentos informacionais estão governados por
leis que nós não dominamos e que nós somos submetidos a elas. Essa é que é a
questão.