PMs condenados relatam ‘satisfação em matar’, aponta estudo
Pesquisa
da Fundação Getúlio Vargas traçou perfil de vítimas de ações policiais entre
2013 e 2016: homem, jovem, negro e periférico.
Por Arthur
Stabile – Ponte Jornalismo
23/05/2018
Homem, negro, com até 29 anos de idade. Esta é a
principal vítima da polícia de São Paulo em mortes decorrentes de intervenção
policial, os chamados autos de resistência, termo aposentado em alguns estados e objeto de projeto de
lei que prevê alteração no Código de Processo Penal (CPP) para extinção
definitiva da expressão. Um estudo de
doutorado da FGV (Fundação Getúlio Vargas) traçou o perfil dos mortos pela
polícia segundo dados oficiais entre 2013 e 2016.
Foto: Joseh Silva/RBA |
Os boletins de ocorrência das ações policiais que
resultam em morte de civis mostram que 99% dos casos envolvem homens e
menos de 1%, mulheres. Quanto à raça, morreram 62,1% negros frente a 33,9% brancos.
Já o recorte da idade das vítimas aponta que 34,6% tinham entre 20 e 29 anos.
Somados com os 28,4% de 10 a 19 anos, o total de jovens equivalem a 63% dos
mortos pela polícia.
Os números reforçam pesquisas da área realizados nos
últimos anos, entre eles os apresentados em estudo divulgado
neste mês com a participação do Movimento Mães de Maio em parceria com a Unesp
e Universidade de Oxford sobre o perfil das vítimas dos Crimes de Maio de 2006,
quando mais de 500 civis foram mortos na resposta do Estado no enfrentamento ao
PCC (Primeiro Comando da Capital).
As polícias de São Paulo mataram 943 pessoas somente ao
longo de 2017, o ano com maior letalidade policial desde 1995, considerado
período histórico de levantamento da SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de
São Paulo). Comparando as mortes causadas por policiais em 2001 com 2016, há um
crescimento de 41,5%, segundo o estudo – de 605 para 856. Aumento na contramão
dos homicídios dolosos, que caíram 64,9% no estado, de 12.475 para 4.377.
Adolescentes
“É um percentual muito significativo de adolescentes, com
17 anos ou menos e destoa, por exemplo, do perfil das vítimas de homicídio do
estado. Fica evidente como a interação com os adolescentes, às vezes crianças,
é bem mais violenta do que entre os adultos”, explica Samira Bueno, doutoranda
da FGV e diretora-executiva do FBSP e responsável pelo estudo, à Ponte.
“Além da idade, serem predominantemente homens e negros, eles residem em cerca
de 20 municípios do estado. Ou seja, a letalidade é bastante concentrada e, em
tese, mais simples de controlar. A questão que fica é: por que não controlar?”,
questiona.
O coronel da reserva da PM de SP, Adilson Paes de Souza,
considera que este estudo reforça um perfil já traçado anteriormente, como em
pesquisas realizadas por órgãos como as Nações Unidas. “Não é segredo para
ninguém que o Brasil tem um mito da democracia racial. Não existe. Existe, sim,
um racismo histórico e estrutural cuja uma de suas formas de demonstração é o
perfil destes mortos”, argumenta.
Também ficou definido na análise o perfil dos policiais
assassinos: um praça, branco ou negro, normalmente desde a década de 1990 na
corporação e membro de tropas de elite da PM (Rota, Gate, Choque e Força
Tática). Nas ocorrências, os PMs eram 80% praças (soldados, cabos, sargentos e
subtenentes) e 20% oficiais (tenentes, capitães, majores e coronéis), 50%
brancos e 50% negros, 58% entraram na corporação na década de 1990 e 75%
atuaram em tropas de elite.
“Ao mesmo tempo em que esses policiais encarcerados veem
nos mortos de suas ações a representação social do mal, o alto percentual de
adolescentes entre as vítimas desacredita essa hipótese”, sustenta a pesquisadora
Samira, no estudo. “A premissa é sempre de que a vítima da ação policial
poderia vir a ser um grande criminoso, embora não necessariamente ela estivesse
cometendo qualquer tipo de delito no momento do homicídio policial”, prossegue.
Vício
de matar
A pesquisadora entrevistou 16 policiais militares
condenados por homicídio e presos no Presídio Milita Romão Gomes para tentar
entender o que os levou a matarem pessoas. Todos foram condenados por homicídio
doloso, seja por feminicídio ou envolvimento com chacinas. A conclusão é de que
através dos próprios parceiros e superiores, não oficialmente pela instituição,
o policial é levado a se colocar em uma guerra. Nesta lógica, quem mata faz um
bem para a sociedade.
“O curioso é que praticamente todos, com exceção de um,
tinham uma relação muito frequente com o universo morte. Independente do motivo
que os levou para o Romão, eles tinham se envolvido em várias resistências. Ou
seja, a morte era um elemento central do cotidiano de trabalho e praticamente
todos vinham de grupamentos especializados, tático móvel ou choque”, explica
Samira.
No documento, relatos dos PMs mostram como era imposta a
eles uma mentalidade de viverem em guerra. “Quando o cara entra [na PM] vive
num mundo fictício que se transforma num palco de guerra. Induzem ele a pensar
que está na guerra e que isso é legítimo. Mas quem faz isso não é a
instituição, mas algumas das pessoas que a representam”, sustenta um dos PMs,
durante as conversas para elaboração da análise.
Ditadura
militar
Segundo a análise, esta tese da guerra tem início no
século XX, passando a ser uma doutrina reforçada durante a ditadura militar
(1964 a 1985) e reformada pela “hiper militarização da polícia”. É apontada
“forte relação” da Rota com este pensamento, premiações dadas por mortes e o
apelido dado aos policias matadores: Billy ou Bilão.
“É a tese do combate ao inimigo, um discurso que vem da
ditadura e é trazida pelo país com a doutrina segurança nacional, que embasou o
golpe militar e sustentou a ditadura e seus atos de repressão. A ideia do
“inimigo da nação a ser combatido” é um discurso que persiste”, explica o
coronel Adilson. “É importante falar da desmilitarização, que significa
arrancar essa tese da vida da nação, esse viés da guerra. O nosso sistema de
segurança pública, na essência, é o mesmo da ditadura. Não houve
redemocratização neste sentido”, prossegue.
Os próprios policiais tinham consciência da quebra da
lei, mas seguiam matando. “Eu sabia que era errado, tinha convicção disso,
mas também sabia que ia prender e depois ia ser solto. Quando você trabalha na
cidade grande é difícil encontrar de novo, mas no interior você sabe tudo sobre
aquela pessoa. Na minha visão, eu estava fazendo o certo eliminando o inimigo e
protegendo as pessoas de bem. População quer que você faça isso, mas te
crucifica quando você faz”, aponta outro dos presos à pesquisadora, este ex-PM
por conta do crime cometido, evidenciando uma descrença dos policiais quanto à
Justiça.
Sem considerar os juízes com credibilidade para por na
cadeia quem eles levavam para os tribunais, os policiais optaram pela justiça
com as próprias mãos, como revela outro dos condenados. Ele ainda evidencia a
existência em alguns homens do que chama de “vício de matar”.
“Para nós, policiais, você sente satisfação, sente mais
satisfação do que quando você prende. Para alguns policiais vira um vício
matar; quando você não consegue matar, você sente como se o seu serviço não
tivesse sido feito a contento. Você sente que pode solucionar os problemas da
população, você quer a qualquer custo resolver”, diz outro a Samira, conforme
relatado, citando “conivência de poderes” para as mortes.
“Naquela época [anos 1980], era institucionalizada a
morte de meliantes. Havia conivência de todos os poderes. Se houve ou não
ocorrência, não interessava. O que importava era o resultado fim. O jargão
usado na época era ‘deixa a polícia trabalhar’. Quem morria não importava”,
explica à ela o PM.
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