Agrotóxicos seriam causa de puberdade precoce em bebês, aponta pesquisa
Meninas
de um ano que desenvolveram mamas moram em comunidades cercadas de plantações
no Ceará.
Um mês depois da morte de José Maria, a Câmara Municipal revogou a lei que proibia a pulverização na cidade. Hoje, entre as crianças com puberdade precoce, está a neta do líder comunitário.
Por Ana
Aranha – Repórter Brasil
22/06/18
A professora Antônia Lucí Silva Oliveira resistiu em
reconhecer que o corpo da filha não estava normal. Aos seis meses de idade, ela
começou a notar o crescimento das mamas da menina. Com 1 ano e 6 meses, quando
o desenvolvimento era “avançado e inegável” aos olhos da mãe, um ultrassom
diagnosticou telarca prematura, a primeira fase do desenvolvimento das mamas.
Uma das meninas que sofre de puberdade precoce desde bebê. Foto: Waleska Santiago |
“Para me acalmar, o médico disse que estava recebendo
muitos casos como o dela da nossa região”, lembra Lucí. O mesmo diagnóstico foi
dado a pelo menos outras duas meninas da mesma comunidade, Tomé, que tem cerca
de 2.500 habitantes, no município de Limoeiro do Norte, interior do Ceará. O
povoado fica na Chapada do Apodi, onde aviões e tratores pulverizam agrotóxicos
em plantações de banana, melão e outras frutas para exportação.
Além das meninas com puberdade precoce, a mesma
comunidade teve ainda oito registros de fetos com má formação congênita, casos
que foram relacionados à alta exposição dessas famílias aos agrotóxicos por
nova pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.
A relação foi feita após testes identificarem
ingredientes ativos para agrotóxicos no sangue e na urina das crianças e
familiares, assim como na água que chega às suas casas. Dos sete domicílios
visitados, em seis a água estava contaminada. Das 17 pessoas cujo sangue e
urina foram testados, 11 voltaram positivo para a presença de organoclorado,
tipo de inseticida cuja exposição contínua pode gerar graves lesões à saúde
humana.
“A gente já conhecia o problema na água, o teste
confirmou resultados anteriores na mesma região. Mas não esperávamos resultados
tão assustadores para sangue e urina”, afirma Ada Pontes Aguiar, médica
responsável pela pesquisa. “Há uma série de outros fatores que também podem
estar ligados a esses agravos, mas não restou dúvida de que os agrotóxicos têm
relação com esses casos de má formação e puberdade precoce”, afirma Aguiar, que
é professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cariri.
Um importante elemento que explica a contaminação é a
alta exposição dos familiares aos químicos. Todos os pais das crianças com
puberdade precoce ou má formação são trabalhadores rurais que entram em contato
com essas substâncias na lavoura. Nas entrevistas para a pesquisa, eles descrevem
“banhos de veneno”: quando estão aplicando agrotóxico no trator e o vento bate
na direção contrária, fazendo o líquido cair sobre o corpo do trabalhador.
O marido de Lucí foi afastado da função de pulverizador
depois de ter dores de cabeça, náusea, vômito e febre. “Mesmo depois de tomar
banho, seguindo todos os cuidados, a gente ainda sentia o cheiro do químico na
pele dele quando transpirava”.
Além do local de trabalho, todas as famílias pesquisadas
estão cotidianamente expostas aos químicos. Ao contrário da União Europeia, que
proibiu pulverização em 2009, o Brasil continua aplicando agrotóxicos por
avião. Em Tomé, é difícil encontrar quem nunca viu ou passou perto da rota
desses aviões. Lucí, que é professora, vê o avião indo e voltando da pulverização
da janela da sala de aula.
Mesmo depois da aplicação, o químico fica no ambiente.
Uma das mães das crianças pesquisadas relata que a família foi dormir na casa
de parentes por diversas vezes, pois não aguentavam o cheiro que o vento trazia
pela noite.
“A importância dessa pesquisa é mostrar como as pessoas
no campo estão altamente expostas a essas substâncias”, afirma o biólogo e
epidemiologista Fernando Ferreira Carneiro, que é pesquisador da Fio Cruz. “A
puberdade precoce já tinha aparecido associada a agrotóxicos em estudos no
exterior, sempre em regiões de grande uso”.
Nova
lei pode piorar intoxicações
Intoxicações como as que ocorrem na Chapada do Apodi
podem se agravar caso se aprove o Projeto de Lei 6.299, afirma Carneiro, que
coordena o Observatório de Saúde das Populações do Campo, ligado à Universidade
de Brasília. “As mudanças do PL vão facilitar o uso de agrotóxicos no Brasil,
quando essas comunidades rurais já estão expostas à tripla carga de exposição:
no trabalho, ambiental e a alimentar”.
Proposto em 2002 pelo então senador e hoje ministro da
agricultura Blairo Maggi, o projeto sofreu forte resistência quando nova
proposta foi apresentada esse ano. Foram mais de 20 manifestações da comunidade científica, entre elas o
Instituto Nacional do Câncer, a Fiocruz e a Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência.
Depois das reações, o relator Luiz Nishimori (PR-PR) submeteu novo texto com alterações. Segundo a sua
assessoria parlamentar, o deputado procurou contemplar as críticas que foram
feitas ao PL. Entre os pontos em que o deputado cedeu, está a nomenclatura. Ao
invés de “defensivos agrícolas”, o substitutivo propõe agora o termo
“pesticidas” no lugar de “agrotóxicos”.
Mas não houve alterações em um dos pontos mais sensíveis
para casos como o das crianças da Chapada do Apodi. A proposta é permitir uma
avaliação de risco para autorizar o uso controlado dos agrotóxicos mais
perigosos.
A lei brasileira hoje é parecida com a da União Europeia,
ela proíbe aprovação de novos agrotóxicos que sejam cancerígenos ou causem
desregulação endócrina, entre outros perigos à saúde humana. O novo projeto
proíbe substâncias de “risco inaceitável”, sem especificar quais seriam eles, e
fixa um método de controle que passa pela avaliação de risco.
Segundo esse sistema, as substâncias são autorizadas
desde que a quantidade utilizada nos alimentos fique dentro de um limite
considerado seguro para o consumo. “Esse método pressupõe que o agrotóxico será
aplicado dentro das condições perfeitas, com o trabalhador protegido por um uniforme
que mais parece uma roupa de astronauta”, afirma Carneiro. “Mas todo mundo sabe
que essa não é a realidade do campo no Brasil, e a pesquisa [sobre as crianças
da Chapada do Apodi] confirma isso”.
Entre os químicos citados pelos pais das crianças pesquisadas
está o acefato, ingrediente que provoca desregulação endócrina, que por sua vez
pode ser a causa da puberdade precoce. Proibido na União Europeia desde 2003,
foi o sexto ingrediente ativo mais utilizado no Brasil em 2016: 24 mil
toneladas vendidas em todos os estados.
Outro químico citado pelos entrevistados é o mais vendido
no Brasil, com 185 mil toneladas em 2016, o glifosato. Devido a novas
evidências científicas internacionais que indicam que este agrotóxico é capaz
de causar câncer, há um intenso debate na União Europeia sobre a proibição do
químico. Alguns países já começaram a limitar o consumo, com a meta de criar
alternativas.
“Observamos o movimento de restringir cada vez mais os
produtos perigosos na União Europeia, nos preocupa que nos Brasil vemos o
movimento oposto”, afirma Carla Bueno, engenheira agrônoma e integrante da
Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos. “Ao invés de fortalecer a proteção,
a gente está discutindo abrir os registros, facilitar a entrada de produtos
perigosos”.
Informação
e medo
Na comunidade de Tomé, são poucas as perspectivas de
melhora. “A gente não tem a quem recorrer. Mas, mesmo sem saber o que fazer,
que pelo menos a gente tenha o conhecimento”, diz Lucí, que agora acompanha as
pesquisas realizadas na região pela Universidade Federal do Ceará, dentro do
grupo Tramas, que realiza diversas pesquisas sobre a questão dos agrotóxicos na
região.
O movimento da comunidade contra os agrotóxicos cresceu
desde que uma importante liderança local foi assassinada. José Maria Filho,
conhecido como Zé Maria do Tomé, foi executado com 17 tiros em abril de 2010. O
crime ocorreu um mês depois da aprovação de uma lei municipal em Limoeiro do
Norte que proibia a pulverização aérea de agrotóxicos, mudança pela qual o
líder comunitário pressionou.
Entre os réus denunciados pelo Ministério Público
Estadual estão empresários do setor de cultivo de frutas da região. A denúncia
foi acolhida pela Justiça Estadual, que indicou o tribunal do júri, mas a
defesa recorreu e o caso ainda não foi julgado. O caso mobiliza movimentos
nacionais e internacionais e foi retratado no documentário Doce Veneno.
Um mês depois da morte de José Maria, a Câmara Municipal revogou a lei que proibia a pulverização na cidade. Hoje, entre as crianças com puberdade precoce, está a neta do líder comunitário.
A filha de José Maria, Marcia Xavier, acompanha com
preocupação o desenvolvimento da saúde da sua filha, hoje com 5 anos. “Eu não
tenho dúvidas de que os problemas dela vêm dos agrotóxicos” afirma. “Todo mundo
aqui sabe dos problemas que eles geram, mas não têm o que fazer para se
proteger”.
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→ Pesquisa revela relação de suicídios com consumo de agrotóxicos
→ O agro não é pop
→ Agrotóxicos: população indígena do MS é a 3ª
mais contaminada do país
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Texto publicado em 18 de junho de 2018 no site da Repórter Brasil e realizado com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo com fundos do Ministério
Federal para a Cooperação Econômica e de Desenvolvimento da Alemanha (BMZ).