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Documentário vai contar história de travestis indígenas

Filme abordará questões de gênero e auto pertencimento nas aldeias; Agência Amazônia Real entrevistou cineasta responsável pelo projeto.

Por Maria Cecília Costa* – Agência Amazônia Real
29/06/2018

Manaus (AM) – É como cabocla que se identifica a cineasta e jornalista paraense, nascida em Santarém, Flávia Abtibol. Sua “embrionária filmografia”, como ela mesma descreve, é tomada por temas que compõem o modo de vida amazônico: a mulher, o rio, os indígenas, os rituais e as línguas. Moradora de Manaus desde 2008, quando veio para cursar o mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Flávia tem hoje sua própria produtora, a Tamba-Tajá Criações.

Filme será produzido nas aldeias dos índios Tikuna. Foto: Bárbara Umbra

O próximo projeto da cineasta, “Nïïma”, abordará histórias das travestis indígenas, traçando referências com a cultura pop, como do reality show RuPaul’s Drag Race, o concurso de drag queens mais famoso do mundo e idealizado por Ru Paul. O documentário de Flávia abordará questões de gênero e auto pertencimento nas aldeias. O filme, ainda em estágio de desenvolvimento do roteiro, foi selecionado para financiamento do Itaú Cultural Rumos 2017-2018.

“Nïïma é a história de índios da etnia Tikuna moradores da tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Bolívia, que ousam desafiar a família, o Exército e a Igreja para exercer seus desejos e suas identidades de gênero. Durante dois meses do ano (junho e julho), eles animam as festividades religiosas locais através de espetáculos de canto e dança. Nos outros dez meses, são subjugados pela família e pela comunidade”, diz ela, em um trecho do projeto do Rumos.

Flávia Abtibol é jornalista graduada pela Universidade da Amazônia (Unama), no Pará, com especialização em Jornalismo e Divulgação Científica pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ela fez diversos cursos relacionados ao cinema no Instituto de Artes do Pará (IAP). Já trabalhou como correspondente pelas emissoras de televisões: Canal Futura e SBT e ORM (Rede Globo), ambas em Belém; e como produtora-executiva na TV Acrítica, em Manaus, e em produtoras de cinema manauaras. É roteirista premiada pelo Amazonas Film Festival e Concurso de Roteiros Rucker Vieira (Fundação Joaquim Nabuco) por “Strip Solidão” e “O Céu dos Índios”, respectivamente.

A cineasta é também produtora, roteirista e diretora nos filmes “Strip Solidão” (2013), “Dom Kimura” (2014) e em “O Céu dos Índios” (2017), atualmente em finalização. Além desses, participou de “A Terra Negra dos Kawa” (2018), de Sérgio Andrade, “Zana” (2018), de Augusto Gomes, e da série de animação “Lana” (2018), com a Rio Tarumã Filmes, e é showrunner da série televisiva I Know Mommy, que está na fase de tratamento. Seus filmes já foram exibidos em festivais de Minas Pará, São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Goiás e Toronto (Canadá).  Leia a entrevista a seguir:

Amazônia Real – Como você se interessou pelo audiovisual?
Flávia Abtibol – Primeiro, pela paixão por ver filmes, e depois pelo hábito de escrever, que logo passou de contos a roteiros, durante a faculdade. Aos poucos fui me interessando por outras áreas, como direção, produção executiva e buscando capacitação. E no meio dessa lógica geminiana, uma prioridade: entender mais sobre linguagem e narrativa cinematográficas, de produção de sentido, emoção, conteúdo e forma… Não trair as histórias.

Amazônia Real – Sua dissertação de mestrado foi sobre o ‘cinema de barranco’ do paraense Líbero Luxardo (1908-1980). Para você, como o cinema pode criar identidade de um povo?
Flávia – Acho que a identidade de um povo é que alimenta o cinema. São os tipos, os hábitos, costumes, manifestações culturais de um povo que possibilitam a um bom observador a construção de histórias cativantes, pelo menos os que os valorizam. Luxardo, apesar de paulista, foi um apaixonado por Belém e pela Ilha do Marajó. E apesar de ter sido um ‘coxinha’, pra usar um termo atual, fez quatro obras muito importantes pra filmografia do Estado, pois são verdadeiras enciclopédias de ruas, edificações, tipos, lugares pitorescos, do cancioneiro, lendas e mitos amazônicos. Do ponto de vista estético, passariam longe de Berlim e Cannes, mas do ponto de vista histórico, representam a memória de uma época e de uma sociedade. Acho que a arte imita a vida.

Amazônia Real – Para a formulação de roteiros, em quais elementos de uma história você costuma se inspirar?
Flávia – Comigo, sempre nascem de duas formas. Às vezes é por uma situação contextual e às vezes por uma persona. Dificilmente as duas coisas nascem juntas, quem me dera. Também acontece de escrever um roteiro e achar muito ruim. Então ele fica guardado por anos, até que uma situação no presente dá o sentido certo pra história e o roteiro se emancipa. Tem sido assim.

Amazônia Real – Além de “Strip Solidão”, uma ficção, você também produziu o curta documental “Dom Kimura”. Como foi a receptividade do público para essas obras?
Flávia – “Strip Solidão” foi meu primeiro filme de ficção. Nasceu durante o mestrado e se complementou com as conversas que estreitei com marítimos em Manaus quase dois anos depois. É uma história mais pesada, mais experimental, teve excelente recepção do público durante sua estreia no Amazonas Film Festival e na Mostra de Tiradentes, onde participou da mostra foco. Mas é um filme mais experimental, diferente de “Dom Kimura”, um documentário que versou com a técnica da animação em stopmotion e com o humor, com montagem mais linear, atraindo o interesse e os risos de públicos diversos, de crianças a idosos. Foram duas experiências bem diferentes.    

Amazônia Real – Como tem sido seu esforço para levar os filmes de impacto social ao público num estado em que salas de cinema só existem na capital?   
Flávia – Para quem não tem o direito ao lazer, qualquer ocasião em que possa usufruir de arte é significativo. Na ocasião de “Dom Kimura”, filmado no Mercado Adolpho Lisboa (no centro de Manaus), decidi fazer uma mostra de cinema gratuita dentro do mercado para o público que circula no local e, principalmente, para os feirantes e estivadores. A cantora Djuena Tikuna, que compõe a trilha sonora do “Strip Solidão”, fez um show no mercado logo após a exibição do filme e houve debate com os transeuntes. Foi uma experiência que já estou programando repetir, de tão especial que foi! Também idealizei a Mostra Audiovisual Imaginários Flutuantes, que exibiu filmes de cunho socioambiental em barcos de linha de Manaus a Coari (município do interior do Amazonas) em 2017. Foi uma primeira experiência com muitas surpresas boas, relatos de amazônidas que nunca tinham ido ao cinema e que puderam ver e debater filmes com a gente. Se formos à Tabatinga, pretendemos fazer uma nova edição da mostra, e compartilhar novos filmes com os passageiros e proporcionar uma atividade cultural a quem viaja de barco pela região.

Amazônia Real – Quais são as dificuldades que o cineasta enfrenta em fazer filmes em Manaus?
Flávia – Fazer filmes é uma atividade cara. Não é como ser escritor, que você depende apenas de sua criatividade, caneta e papel. Fazer cinema é equipe, equipamentos e recursos de produção. Por isso, acredito que a maior dificuldade dos realizadores audiovisuais de Manaus é ter recursos para que todos os envolvidos na produção possam ser remunerados pelo seu trabalho e garantir que estas produções sejam cada vez mais profissionais e competitivas. Também falta capacitação contínua, cursos como os que a AIC oferece, mas aqui em Manaus.

Foto: Arquivo pessoal/Flávia Abtibol

Amazônia Real – Como foi sua reação ao saber que ganhou o prêmio de parceria com o Itaú Cultural para fazer o filme “Nïïma”?
Flávia – Fiquei muito surpresa! Foram mais de 12 mil inscritos e duvidava de uma aprovação, mesmo sabendo da potência de minha proposta. Até durante a leitura do e-mail me avisando da seleção, só entendi que tinha sido aprovada quando li pela segunda vez (risos). E mesmo sendo um processo bem inicial de um filme (pois nosso projeto é apenas de desenvolvimento cinematográfico), fiquei muito feliz com a seleção! Pois trata-se de um grande desafio profissional e como pessoa.

Amazônia Real – A parceria com o Itaú Cultural será usada para quais etapas do filme? E qual o valor do prêmio?
Flávia – O valor ainda não foi definido, pois ainda estamos em processo de contratação. A parceria será usada para a etapa de Desenvolvimento, incluindo pesquisa e escrita do roteiro.

Amazônia Real – Por que você quis contar a história de “Nïïma”?
Flávia – “Nïïma” não é uma história óbvia e estereotipada sobre travestis indígenas. É uma história sobre auto pertencimento e liberdade de olhar no espelho, sobre um rivermovie com artistas queer num envolvente autorretrato… Também contempla um processo mais experimental de desenvolvimento de roteiro, tendo as Nïïma como co-roteiristas desse docudrama que traz uma discussão premente sobre gênero e sexualidade na cultura indígena, face à cultura Drag Pop de RuPaul. Dando vazão a essas discussões, os indígenas têm usado as redes sociais para manifestar suas identidades de gênero e comunicar essa decisão para além de suas aldeias. As postagens são intensas e demonstram que há a vontade do diálogo, há o questionamento, e também a busca por uma identificação performativa. Penso que o cinema pode ser o instrumento para que essas histórias sejam contadas e possam inspirar a sociedade por mais igualdade e respeito às nossas identidades, sejam elas quais forem.

Amazônia Real – Como vai ser o acesso à aldeia? Vai precisar de autorização do cacique e da Funai?
Flávia – Em todas as minhas experiências com documentário, sempre saí do filme com muito mais na bagagem do que cheguei, com experiências absurdas e, sobretudo, novos parceiros. Documentarista têm dessas manias, de ficar junto, vivenciar o personagem. Gosto de acordar, tomar café, almoçar, conversar, andar pela comunidade e sentir o universo do lugar. Foi uma das primeiras coisas que aprendi, ainda na universidade, durante a gravação de uma entrevista com o cineasta Chico Carneiro, realizador paraense de vários documentários etnográficos, que me ensinou a importância da intimidade e do acaso. Desde então – e lá se vão 13 anos – não perco a chance de ficar íntima, de rir junto, tomar banho de rio e tudo o mais. Então, o acesso à aldeia será dessa forma, com muito respeito à comunidade, valorizando os saberes indígenas e, obviamente, seguindo todos os procedimentos legais e morais, que incluem a expressa autorização do cacique e também da Funai.

Amazônia Real – O que você pôde perceber na percepção indígena sobre a questão de gênero?
Flávia – Com base nas leituras de pesquisas acadêmicas e nos relatos de indígenas travestis nas redes sociais, pude perceber que não há – entre eles – um discurso formado sobre a questão de gênero, sobre sexualidade. Percebo que há um grande sentimento de busca, de auto pertencimento, que se intensificou com o acesso deles à internet, na cidade de Tabatinga, onde puderam acessar figuras como a drag queen RuPaul, as cantoras Beyoncé, Rihanna… E se identificar com o formato dos cabelos, roupas, maquiagem e demais elementos da cultura LGBT.

Amazônia Real – Existe muito preconceito e racismo nas aldeias?
Flávia – Uma das propostas do projeto é entender melhor a relação da comunidade heteronormativa com as travestis, e isso inclui o preconceito. Nas aldeias que tive o privilégio de conhecer, não presenciei nenhum caso explícito de preconceito, racismo ou violência. Mas há muitos relatos, como os nessa matéria da Agência Pública, onde os indígenas falam de situações de agressão e punições por serem homossexuais. O interessante disso tudo é que os jovens decidiram falar oficialmente sobre o assunto numa mesa-redonda e já criaram uma rede de contato entre eles, em aldeias de diferentes partes do país. Há uma fala. E há o interesse em ouvir o que esses jovens têm a dizer.

Amazônia Real – A visão estereotipada que a sociedade tem do indígena o distancia de discussões contemporâneas, como a de gênero?
Flávia – Acho que não o distancia das discussões em si, pois os povos indígenas são muito atuantes e responsáveis em suas falas, porém, o insere em desvantagem junto à elite classe média branca, maior detentora dos meios de produção. Da mesma forma, com a comunidade negra. Acredito que a nossa luta seja por potencializar essas vozes. Com seus vários tons, tradicionais ou contemporâneos, mostrando uma cultura indígena pulsante, num permanente diálogo do hoje com a tradição. “Nïïma” se volta para essa discussão contemporânea sobre gênero e sexualidade, trazendo tudo pra canoa da etnicidade.

Amazônia Real – Em “Strip Solidão” você traça paralelos entre as guerreiras amazonas e as prostitutas de Manaus. Para “Nïïma” você também pensou em algum paralelo com lendas amazônicas?
Flávia – Não, muito pelo contrário. Nïïma versa com a cultura Pop. A narrativa evoca o próprio processo de autoafirmação das travestis, que se fortaleceu na internet, nas redes sociais e na cultura das celebridades virtuais. Busco uma forma de contar para cada filme. Sem fórmulas.

Amazônia Real – Em “Nïïma” você pretende misturar elementos ficcionais e documentais?
Flávia – Sim. A proposta de “Nïïma” é ser um docudrama, em tom alegórico, daí a necessidade de um bom processo de pesquisa e desenvolvimento de roteiro.

Amazônia Real – Como será sua mobilização para que todos na aldeia vejam “Nïïma”?
Flávia – Pretendo decidir em conjunto com a comunidade! É assim que gosto de fazer. Mas ainda vai demorar algum tempo. Ainda estamos na fase de desenvolvimento. Com sorte – e isso inclui uma matemática incrível – o filme estaria pronto no final de 2019. É tempo suficiente para ajustar a sessão.


*Maria Cecília Costa participa do Projeto de Treinamento em Jornalismo Independente e Investigativo da Amazônia Real. É estudante do 7º. Período do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).