O agro não é pop
Bancada ruralista se articula para aprovar projeto de lei que pretende
liberar o uso de mais agrotóxicos no Brasil.
O atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, é autor do projeto. Foto: Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) |
Por Vasconcelo
Quadros – Agência Pública
05/06/2018
A agenda na casa 19, do conjunto 8, na QL 10, do Setor de
Habitações Individuais Sul, em Brasília, está cheia de segunda a sexta. A
mansão, de arquitetura colonial, em tom amarronzado, fica às margens do lago
Paranoá. Por lá, passam o presidente Michel Temer, em eventos importantes, os
ministros da cúpula do governo, e políticos de quase todas as estirpes se
misturam a empresários nacionais e estrangeiros, representados ou acompanhados
por lobistas que surfam na onda do agronegócio.
O item principal deste maio de 2018 é a “Revisão da
Legislação de Agrotóxicos”, a bola da vez da bancada ruralista - os 228
deputados e 27 senadores de todos os partidos, com exceção de PT, PCdoB, PSOL e
Rede, que compõem a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). Depois de tomar as
rédeas da Funai, a meta é derrubar os limites impostos pela Constituição,
Código Florestal e outras leis sobre a instalação e expansão do agronegócio.
O tema do momento é a mudança radical na legislação dos
agrotóxicos instituída em 1989, sob o argumento de que, “desatualizada e
excessivamente burocrática”, precisa ser substituída por um novo marco legal.
Entre outras “atualizações”, o projeto propõe que seja retirado o alerta da
caveira e advertências de risco da embalagem dos agroquímicos – que passariam a
ser chamados de “produtos fitossanitários”.
O autor
O projeto tem como autor o maior produtor de soja do
mundo e atual ministro da Agricultura do Brasil, Blairo Maggi, a quem caberia
aplicar as novas medidas. Em 2002, Maggi assumiu uma cadeira do Senado como
suplente do ex-senador mato-grossense Jonas Pinheiro com a missão de mexer na
lei dos agrotóxicos.
Aprovado o projeto no Senado, voltou para suas fazendas,
de onde sairia para disputar e vencer a eleição para governador do Mato Grosso
no mesmo ano, dando início à trajetória política que o coloca como um dos
personagens mais fortes do agronegócio e do governo Temer. No mês passado,
Maggi foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por corrupção que
teria ocorrido no período em que era governador.
O projeto de Maggi – o PL 6.299/2002 – tramita em uma
Comissão Especial da Câmara, e a bancada ruralista trabalha para que seja
enviado brevemente ao plenário. Na batalha pela aprovação do substitutivo, com
relatoria do deputado paranaense Luiz Nishimori (PR-PR), também ruralista, o
deputado Alexandre Molon (PSB-RJ), opositor do projeto, chegou a flagrar um
desconhecido votando entre os deputados sob o olhar condescendente da deputada
Tereza Cristina (MS), presidente da Comissão e da Frente Parlamentar
Agropecuária.
Só depois de repreendida por Molon, que exigiu
providências em respeito ao decoro parlamentar, Tereza Cristina pediu que o
homem não se manifestasse. Ainda assim, o deputado gaúcho Covatti Filho (PP),
autor de um dos projetos apensados ao substitutivo, reagiu aos gritos em defesa
do desconhecido: “Aqui todos são deputados”, disse.
Diante dos protestos oposicionistas, que apontavam os
dedos para ele, o homem bateu em retirada, fazendo um gesto de deixa disso para
a presidente. Ninguém ficou sabendo quem era. O deputado Chico Alencar
(PSOL-RJ) arriscou um palpite. “Deve ser do bunker”, disse ele, referindo-se à
fama da mansão do Lago Sul, vista, até algum tempo atrás, como um local de
reuniões secretas, uma confraria em que só a irmandade ruralista ou seus
convidados entravam.
O
lobista
O homem que tentou votar como se fosse deputado é o
engenheiro agrônomo João Henrique Hummel Vieira, 56 anos, formado na UnB,
lobista e estrategista das ações rurais no Legislativo. Ele é o
diretor-executivo do Instituto Pensar Agropecuária, o IPA, entidade que controla,
nos bastidores, a poderosa bancada ruralista. João Henrique, como é chamado, se
tornou um requisitado consultor sobre a defesa dos interesses do agronegócio no
Congresso ou no governo.
É ele o homem que controla a mansão do Lago Sul que até o
início deste ano funcionava a 50 metros da nova sede da FPA, na casa 6, no
mesmo conjunto 8 da QL 10. Incomodados com a falta de privacidade para as
reuniões dos parlamentares, IPA e FPA mudaram-se para a casa 19, deixando no
espaço duas entidades coirmãs, Aprosoja e a Abrapa, e o Canal Rural, veículo
comprado do grupo gaúcho de comunicação RBS pela JBS, antes de Joesley e Wesley
Batista serem apanhados pela Lava Jato.
A mudança veio a calhar para a deputada Tereza Cristina,
que, fazendeira e presidente da FPA, não precisará dividir o mesmo espaço com
um veículo da JBS, com a qual briga nos tribunais do Mato Grosso do Sul por R$
4,5 milhões cobrados por Joesley por conta de investimentos, segundo ele não
honrados, num projeto de confinamento de bois na propriedade da parlamentar e
de seus familiares em Terenos.
Também ficou para trás um texto emoldurado, escrito pelo
jornalista Reinaldo Azevedo, com objetivo de demonstrar que, apesar de
representar o setor que mais pesa na balança comercial e detentor da maior participação
no PIB (quase 23,5% no ano passado), a bancada ruralista é tratada como a Geni
da política:
“Ruralistas costumam ser muito mal vistos por certos
setores minoritários e barulhentos. Apanham de todo mundo: das esquerdas, dos
verdes, dos índios, da imprensa, de atores e atrizes ‘progressistas’, de
fanáticos do aquecimento global, do Bono Vox, do Sting… Em suma: este é um dos
únicos países do mundo em que os que produzem riquezas são alvos da fúria dos
que produzem discursos”, escreveu Azevedo.
A moldura que ficava na parede da entrada principal do
antigo “bunker” não cabe na nova estratégia de comunicação do IPA e de seu
braço político, a FPA. O diretor João Henrique, que recebeu a Pública, não costuma dar entrevistas.
Chegou a pedir que a conversa fosse em off,
frisando que quem fala em nome da entidade é o presidente, mas acabou
concordando em gravar a entrevista (veja na íntegra em “Conversa com um Lobista”). Ele define o IPA como uma “central de inteligência, geradora de
conteúdo para deputados e senadores membros da FPA, destinada a “modernizar” a
legislação trabalhista rural, fundiária, tributária e indigenista “para
garantir a segurança jurídica necessária” para o agronegócio.
Pouco conhecido do público, o IPA norteia e define as
ações da bancada ruralista na defesa do agronegócio e na sustentação política
do governo Temer. Com personalidade jurídica de associação privada, está
vinculada a 40 entidades nacionais que representam os gigantes do agronegócio.
Além da bancada, os ruralistas conseguem formar um bloco
que ultrapassa 270 votos com a ajuda das chamadas bancadas da bíblia e da bala
– que, em contrapartida, obtêm votos dos ruralistas nos temas que interessam os
políticos evangélicos e/ou ligados à segurança. Vieram dessas bancadas, por exemplo,
os votos de que o presidente Michel Temer precisava para escapar de ser
investigado pela Justiça.
Maggi com Michel Temer e o deputado Nilson Leitão, presidente da FPA. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil |
Criado em 2011, o modelo de gestão do IPA tem como
vantagem a arrecadação financeira, baseada em contribuições de 40 entidades
ligadas ao agropecuário, driblando o principal obstáculo das frentes
parlamentares, que, por lei, não podem ter orçamento próprio. É esse o canal
para receber doações das multinacionais de sementes, insumos e agroquímicos,
embora oficialmente o IPA não aceite contribuições externas.
As
reuniões das terças-feiras
Além dos recursos financeiros, a força de sustentação do
IPA inclui a oferta de quadros técnicos e políticos para instruir deputados e
senadores, logística e estrutura física. Os deputados recebem a pauta,
“positiva ou negativa”, com informações e argumentos sobre o que deve ser
discutido no Congresso. As decisões são tomadas geralmente às terças-feiras em
reuniões com os parlamentares mais ativos, em número que varia de 40 a 50 com influência
sobre os demais.
Em conflito com entidades ambientalistas, fundiárias e de
direitos humanos, o IPA defende o uso de armas na defesa da propriedade privada
contra invasões e deixa claro que seus adversários principais são índios,
quilombolas, sem-terra e as ONGs internacionais, que, na opinião de João
Henrique, trabalham para inviabilizar a expansão do agronegócio a pedido dos
países europeus.
No campo político, o inimigo é quem defende os direitos
ambientais, o território dos povos originários e a reforma agrária – todos
protegidos pela Constituição –, vistos genericamente como “de esquerda”. Contra
eles, parecem estar dispostos a tudo, como mostram, por exemplo, os ataques aos
Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul ou à caravana do ex-presidente Lula no Rio
Grande do Sul, em uma área que já havia sido alvo de conflitos pela reforma
agrária.
Influência
parlamentar
As pretensões do IPA vão além do Congresso e do governo.
Seu objetivo é, também, estimular a influência parlamentar junto ao Judiciário
e às demais entidades da sociedade civil, como explica o cientista político
Gustavo José Carvalho de Sousa. “A força, a capacidade técnica e o trabalho do
IPA refletem o sucesso da FPA”, diz o pesquisador, que estudou em sua
monografia na UnB o papel efetivo do IPA/FPA nas disputas legislativas e
políticas. Um protagonismo que ainda não é de conhecimento público, de acordo
com Sousa. No ano passado, o setor movimentou R$ 30 bilhões, com isenções da
ordem de R$ 1 bilhão aos fabricantes.
Cientes da baixa aceitação da pauta ruralista nos meios
urbanos, o IPA e a FPA estão tentando mudar a imagem através de campanhas com
slogans como “Agro: a indústria-riqueza do Brasil”, financiada com ajuda de um
de seus parceiros, a JBS, dona da marca Maturatta-Friboi, que ficou dois anos
no ar na Rede Globo, também conhecida pelo slogan “Agro é pop, agro é tech”. Ainda assim, a mudança na lei dos
agrotóxicos não está sendo bem vista pela população. Uma enquete na Câmara dos
Deputados mostrava, no dia 4 de junho, que 88% dos quase 18 mil votantes
condenavam a mudança da lei.
Mais
veneno nas lavouras
Com uma taxa de consumo beirando 7 litros per capita/ano,
a maior do mundo, e uma lei que libera o uso de agrotóxicos no cultivo com
limites de 200 a 400 vezes maiores do que o permitido na Europa, os
agricultores querem mais veneno nas lavouras.
A proposta dos ruralistas, representada no substitutivo
do deputado Luiz Nishimori, tira a concessão e manutenção do registro dos
produtos das alçadas da Anvisa e do Ibama, que cuidam, respectivamente, dos
impactos na saúde humana e ambientais, para se transformar em prerrogativa
exclusiva do Ministério da Agricultura (Mapa). No território de Maggi, como
sabem os ruralistas, a tendência é priorizar mecanismos e ferramentas que
alavanquem o agronegócio.
Aos órgãos de saúde e meio ambiente caberia apenas o
papel de homologar laudos de avaliação de risco fornecidos pelo fabricante.
Produtos com substâncias cancerígenas, teratogênicas ou que possam provocar
distúrbios hormonais prejudiciais à formação de fetos poderiam ser registrados
e só seriam proibidos se oferecerem “risco inaceitável”, comprovado pelos
órgãos oficiais.
O substitutivo prevê ainda concessão de registro
temporário por decurso de prazo (quando o órgão público demora para decidir),
elimina a competência dos estados e do Distrito Federal para restringir a
distribuição, comercialização ou o uso, ressalvando que estes só podem proibir
se comprovarem cientificamente os riscos, uma inversão do ônus da prova,
atualmente sob responsabilidade dos fornecedores. Os municípios também
perderiam o poder de legislar sobre o uso de armazenamento dos venenos, o que
fazem atualmente em complemento às ações das instituições federais.
Anvisa, Ibama, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente,
e Fiocruz são os principais adversários do projeto, bombardeado também por
ONGs, pelo Instituto Nacional do Câncer, pela Fiocruz e outras 280 entidades,
além do Ministério Público Federal, que o qualificou como um “passeio”
inconstitucional. As entidades advertem que, se o uso exagerado de agrotóxicos
já produz danos comprovados, o quadro pode ficar ainda mais agudo diante da
possibilidade de aprovação do novo marco. Muitos produtos proibidos em outros
países, dizem as entidades, poderão ser consumidos largamente no Brasil.
Uma das advertências mais incisivas veio de uma Nota
Técnica assinada pela presidente do Ibama, Suely Araújo, e outros três
dirigentes do órgão. “O registro dos agrotóxicos, com participação efetiva dos
setores de saúde e meio ambiente, é o procedimento básico e inicial de controle
a ser exercido pelo poder público e sua manutenção e aperfeiçoamento se
justificam na medida em que seja, primordialmente, um procedimento que previa a
ocorrência de efeitos danosos ao ser humano, aos animais e ao meio ambiente”,
diz a nota.
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