'Aplicar a Constituição, hoje, é um ato revolucionário', diz jurista
Para
Lenio Streck, pós-doutor em Direito, discurso punitivista traz retrocesso; em
entrevista, ele relata preocupação com fatos recentes.
Por Glauco
Faria – Rede Brasil Atual (RBA)
14/08/2018
Lenio Streck é professor de Direito Constitucional. Foto: Lucio Bernardo Junior/Câmara dos Deputados |
"Preocupa-me que decisões fundamentadas a favor da liberdade sejam censuradas. E decisões mal fundamentadas – e existem milhares – que punam sejam consideradas como boas ou adequadas." A avaliação é do professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito Lenio Streck e diz respeito à pena de censura imposta pelo órgão especial do TJ-SP ao juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, na última quarta-feira (8).
O juiz foi alvo de uma representação, assinada por 23
promotores públicos, pedindo abertura de um procedimento disciplinar para
apurar sua atuação. O documento, encaminhada pelo corregedor geral do
Ministério Público paulista ao Tribunal de Justiça de São Paulo
(TJ-SP), sustentava que o magistrado agia "movido por ideologia
contrária ao Sistema Penal vigente e favorável ao desencarceramento e absolvições".
"Estamos em franco retrocesso. Os juízes só serão
bem avaliados, vingando essa condenação, se forem punitivistas. Só que o
punitivismo não está na Constituição Federal. Ao contrário: a nossa
Constituição é garantista da cepa", aponta Streck. Para ele, a decisão
deve ser reformada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou no Supremo Tribunal
Federal (STF). "Caso contrário, alguns ministros do STF terão contra si as
mesmas acusações".
Na sexta-feira (10), a Associação Juízes para a
Democracia (AJD), junto com outras entidades, emitiu uma nota pública
repudiando a pena de censura. Segundo o documento, a decisão do
TJ-SP "viola o próprio Estado Democrático de Direito, fragilizado, em
primeiro lugar, por ter um juiz punido por controlar, com rigor, a atividade
punitiva do Estado Administração".
Em julho, a Ong Conectas divulgou um estudo abordando como o controle interno
do Judiciário influenciava a autonomia dos juízes em suas decisões e citava
como emblemático da fragilização da independência funcional dos magistrados um
episódio envolvendo o juiz Roberto Corcioli.
Em junho de 2013, ele foi afastado do cargo antes do fim
do período da sua designação, por meio de uma notificação informal,
enviada por e-mail pelo corregedor geral de Justiça à época, desembargador
José Renato Nalini. A irregularidade estaria na cessação da
designação antes do seu término, já que existe um período mínimo em que
juízes são inamovíveis.
A suspeita é que o afastamento estaria relacionado a uma
representação feita por 17 promotores de justiça perante a Corregedoria um mês
antes, cuja fundamentação era de que “[…] as decisões proferidas [pelo juiz
Corcioli nos plantões judiciais] têm viabilizado a soltura maciça de indivíduos
cujo encarceramento é imprescindível.”
Confira
abaixo a íntegra da entrevista com Lenio Streck sobre o caso Corcioli:
Como
o senhor vê a decisão do TJ-SP de aplicar uma pena de censura ao juiz Roberto
Corcioli em função de uma representação feita por 23 promotores?
Lenio
Streck – O juiz foi condenado por crime de hermenêutica. Em
1893, o juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima também foi vítima disso. Rui
Barbosa defendeu Lima no STF alegando essa tese e foi vencedor. Lima inaugurou
o controle difuso de constitucionalidade no Brasil. Disse que um dispositivo de
uma lei gaúcha, editada sob comando do positivista Julio de Castilhos, era
nula, inconstitucional. Foi um escândalo, à época. Lima foi garantista antes de
todos. Mas, tem coisa mais antiga: Sir Edward Coke, no início dos anos 1600,
enfrentou o absolutismo dos Stuart. Ele era juiz de um pequeno tribunal.
Concedeu um "mandado de segurança" para o médico Bonahn, impedido de
clinicar. A tese: a ordem de proibição violava o common law. Coke anulou
várias leis e prerrogativas reais. E, em pleno absolutismo, não foi condenado
como foi o doutor Corcioli.
Estamos mais de 400 anos atrasados em relação à
Inglaterra e mais de 100 anos em relação ao STF dos anos 90 do século XIX. No
Brasil, aplicar a Constituição Federal estritamente virou um ato subversivo.
Aplicar a CF, hoje, é um ato revolucionário. Cumprir as garantias
constitucionais como constam na CF, cumprir os princípios de garantias, virou
algo perigoso. Por isso, o doutor Corcioli deve estar se sentido como o doutor
Mendonça Lima. Chamemos Sir Edward Coke. Ele bem defenderia o doutor Corcioli.
Casos
como esse evidenciam formas de controle interno que acabam influenciando a atuação
profissional de juízes em prol de uma postura punitivista?
Quando o juiz Sérgio Moro divulgou – aí, sim,
contra a lei e a Constituição Federal – as conversas de Dilma e Lula e depois pediu desculpas,
o Judiciário não considerou que o juiz paranaense estivesse fazendo algo
errado. Interessante os pesos e medidas do Judiciário e do próprio Ministério
Público. Quando eu fui procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, apliquei a
CF estritamente. Fui garantista ao extremo, juntamente com os desembargadores
Amilton Bueno de Carvalho e Aramis Nassif, para falar apenas destes. Quando o
STJ dizia que a presença de advogado no interrogatório era desnecessária, nos
anulávamos todos os processos nos quais não havia advogado. Pareceres meus. Em
São Paulo, eu seria condenado. E os desembargadores gaúchos também.
E o que dizer da reincidência, que considerávamos
inconstitucional? E da pena abaixo do mínimo, que aplicávamos todos os dias? E
aplicávamos a lei da sonegação fiscal nos casos de furto sem prejuízo. Tudo com
base na CF. Quer algo mais correto que aplicar o princípio da insignificância?
Não aplicá-lo é que é inconstitucional. E assim por diante. Fui o primeiro a
não aplicar a letra da lei 4611, que tratava do processo judicialiforme, em
outubro de 1988. Por quê? Porque a lei 4611 era inconstitucional.
De
que forma o senhor vê a proximidade de membros do Ministério Público e da
magistratura no sentido de buscar mais punições, esse caso ilustra esse tipo de
conduta?
Para mim, e já disse isso tantas vezes, o Ministério
Público deve ser isento e não um órgão perseguidor. Ele deve cuidar da vítima,
da sociedade e do réu. Aliás, o Estatuto de Roma, tão citado na Lava Jato, diz
que o acusador deve investigar também a favor da defesa. E o Código de Processo
Penal da Alemanha também. Lamento que o TRF4 tenha dito – e isso transitou em
julgado sem protestos do MPF – que o Ministério Público não necessita ser
isento. Basta ver o item 9 do acordão que condenou o ex-presidente Lula.
Que
implicações essa decisão pode ter para magistrados garantistas?
Enormes. Incomensuráveis. O CNJ e o STF hão de corrigir
isso. Caso contrário, alguns ministros do STF terão contra si as mesmas
acusações. Hoje, quando um ministro do STF sustenta a insignificância ou
concede habeas corpus mesmo contra a "colegialidade", fosse em São
Paulo, redundaria em pena de censura ao Ministro. Pensemos bem nisso. Estamos
em franco retrocesso. Os juízes só serão bem avaliados, vingando essa
condenação, se forem punitivistas. Só que o punitivismo não está na
Constituição Federal. Ao contrário: a nossa Constituição é garantista da cepa.
Pode-se
fazer um paralelo entre este procedimento contra Corcioli com o mesmo tipo de
motivação que levou o desembargador Favreto ao CNJ?
Escrevi sobre o caso do desembargador Favreto no Conjur. Disse eu: é
incrível como o Judiciário é contraditório. Há milhares de acórdãos que
sustentam que o juiz decide com livre convencimento. Veja: eu sempre sustentei
que o juiz não tem livre convencimento. E digo isso por dezenas de razões que
dizem respeito à democracia. Uma delas é a de que não posso ficar à mercê do
subjetivismo judicial. Mas, veja bem: se o Judiciário insiste que o juiz tem
livre convencimento, como negar isso a Favreto e Corcioli?
De novo: não acho que nenhum dos dois e nem os ministros
que concedem HC contra a colegialidade ou que reconhecem a insignificância
estejam decidindo conforme o livre convencimento. Eles estão, claramente, ao
lado da Constituição. Posso demonstrar facilmente que a CF abriga a
insignificância e mostra que HC é um remédio heroico que não se submete a
maiorias eventuais. Habeas é sempre um corpo que é levado, por vezes já
putrefato, para os braços da Justiça. Isso vem desde os anos 1200, de novo, da
Inglaterra de Coke. Pena abaixo do mínimo? Há dezenas de autores que sustentam
essa possibilidade.
Enfim, uma tese jurídica, se tem a Constituição como
parâmetro, é lícita. Uma lei só é aplicável se estiver em conformidade com a
CF. Caso contrário, a lei é nula, irrita, nenhuma. E o juiz pode deixar de
aplicar uma lei em seis hipóteses, conforme explico em vários livros meus.
Ferrajoli, que foi juiz e dos bons, fosse juiz hoje em
São Paulo teria contra si dezenas de representações. Afinal, ele disse uma
coisa muito simples: a moral e a política devem ser filtradas pelo Direito, e
não o contrário. E Direito é, primeiro, Constituição, depois, a lei.
Numa palavra: preocupa-me que decisões fundamentadas a
favor da liberdade sejam censuradas. E decisões mal fundamentadas – e existem
milhares – que punam sejam consideradas como boas ou adequadas. Pergunto: o
desembargador do TJ de São Paulo que, em sede de HC, decretou a preventiva de uma pessoa, teve representação
contra si?
Escrevi sobre isso, à época, no Conjur. Nada. Quedaram-se
todos silentes. Por quê? Porque punia. Prendia. O que fizemos com o Direito no
Brasil? Essa resposta deve ser dada pela comunidade jurídica. Que parece estar
amortecida. Na verdade, parcela considerável da comunidade jurídica foi
mimetizada pelo discurso punitivista.
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