Com controle da mídia, igrejas cristãs intensificam presença na esfera pública
Veículos de comunicação são utilizados como instrumentos para que entidades religiosas avancem na política institucional.
Articulador do "voto evangélico", Silas Malafaia compra horário na TV Bandeirantes para apresentar o programa "Vitória em Cristo". Foto: Lula Marques/Agência PT em Fotos Públicas |
Por Olívia
Bandeira – Le Monde Diplomatique Brasil
10/08/2018
Ao assumir a presidência da Câmara dos Deputados, em
2015, o deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ex-membro da igreja Sara
Nossa Terra e atual integrante da Assembleia de Deus Ministério Madureira,
afirmou que “aborto e regulação da mídia só serão votados passando por cima do meu cadáver”. A
frase diz muito sobre a forma como igrejas cristãs têm atuado no Brasil nas
últimas décadas.
Conquistando cada vez mais espaço nas mídias de massa e
assentos no Congresso Nacional, lideranças evangélicas e católicas atuam na
esfera pública em defesa de valores considerados por elas como cristãos, sob a
justificativa de que estariam agindo “em nome de Deus” e do direito de terem
seus interesses representados, em uma visão de democracia que a define mais
como um governo da maioria do que como um governo de todos.
O sistema de mídia brasileiro, que permite a concentração
da propriedade e da audiência nas mãos de poucos proprietários, também
beneficia os grupos religiosos. No texto “Igrejas cristãs no topo da audiência” mostramos que, dos cinquenta veículos de
comunicação de maior audiência no Brasil, nove são de propriedade de igrejas ou
de lideranças religiosas cristãs. Além disso, a programação religiosa é o principal
gênero transmitido pelas redes de TV aberta do país, ocupando 21% do total de
programação, segundo dados de 2016 da Agência Nacional de Cinema (Ancine).
Diante disso, compreende-se a afirmação de Eduardo Cunha
contra a regulação da mídia. Ele mesmo foi alçado a liderança política através
dos meios de comunicação. Em 1995, ganhou um programa na rádio evangélica
Melodia FM, uma das rádios regionais de maior audiência no país, segundo o Kantar Ibope, de propriedade do deputado federal Francisco Silva. Em 2002, foi eleito deputado federal pela primeira vez. Em
sociedade com Silva, Cunha foi também dono da rádio Satélite, em Pernambuco,
vendida em 2007.
Iurd:
audiência e voto como fonte de poder
Cinco dos nove veículos de grande audiência comandados
por religiosos são controlados pelo bispo Edir Macedo, líder da Igreja
Universal do Reino de Deus (Iurd). Quatro fazem parte do Grupo Record e o outro
– a rede de rádios Aleluia – pertence à Iurd. Além da audiência, a Universal
conquista muitos votos.
Quarta denominação evangélica brasileira em número de fiéis
(1,87 milhão), segundo dados do IBGE de 2010, lideranças da Iurd são maioria no
Partido Republicano Brasileiro (PRB) e disputam com parlamentares da Assembleia
de Deus o maior número de representação evangélica no Congresso Nacional.
Macedo fundou a igreja em 1977 e, desde o início dos anos
1980, alugava horário de programação em emissoras de rádio e de TV. Em 1984,
conseguiu sua primeira concessão de rádio e, em 1986, elegeu o primeiro
candidato iurdiano, o deputado federal Roberto Lopes, pelo Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Em 1989, deu um grande passo ao adquirir as redes de rádio e
TV Record.
A compra foi intermediada pelo então deputado federal e
pastor da Iurd Laprovita Vieira. Em 1991, fundou a gravadora Line Records, que lançou no ano
seguinte o primeiro EP do engenheiro, missionário, bispo, compositor e cantor
Marcelo Crivella, hoje com quinze álbuns gravados. Sobrinho de Macedo, Crivella
se tornaria a principal liderança política da denominação.
Segundo informações sistematizadas por Janaína Aires e Suzy dos Santos, a participação da igreja no
congresso foi crescente. Elegeram três deputados federais em 1990, quatro em
1994, treze em 1998; em 2002, além de dezesseis deputados, elegeram um senador,
Marcelo Crivella, pelo Partido Liberal (PL-RJ).
Em 2006, já com a sigla PRB,
a igreja elegeu apenas quatro deputados federais, depois do escândalo de
corrupção e desvio de verbas públicas envolvendo uma de suas principais
lideranças, o Bispo Rodrigues. Mas o seu poderio político voltou a crescer: em
2010, elegeram nove e, em 2014, 21 deputados.
Em 2016, elegeu Marcelo Crivella prefeito da cidade do
Rio de Janeiro. Atualmente, o partido conta com 1.627 vereadores, 104
prefeitos, 38 deputados estaduais, 22 deputados federais, 1 senador e 1
ministro.
Ainda segundo dados sistematizados por Aires e Santos, 19 dos 26 congressistas do PRB
eleitos para a 55a legislatura têm vínculos com empresas de comunicação e
14 deles com a Record. Os veículos de comunicação do bispo Macedo ajudam a
projetar diversas lideranças políticas.
Em seu terceiro mandato como deputado federal, o pastor da
Universal Antônio Bulhões participou, por nove anos, do programa Fala que
eu te escuto, o principal programa da Iurd, veiculado nas madrugadas da Record
TV. Além disso, apresentou o programa Retrato de Família, na Record News.
Embora seja católico, outra liderança do PRB que se projetou
na televisão foi Celso Russomanno. Sua carreira começou em 1986, nas rádios
Manchete e Bandeirantes. Em 1991, tornou-se repórter do programa Aqui Agora, do
SBT, no qual ficou conhecido por reportagens focadas no direito do consumidor.
Em 1994, elegeu-se deputado federal, pelo PSDB. Passou
pelo PFL (atual DEM) e pelo Partido Progressista (PP). Desde 2011, integra o
PRB e a equipe de repórteres da Record TV, apresentando o quadro Patrulha do
Consumidor, no Cidade Alerta. Em 2014, foi o mais votado deputado federal por
São Paulo, puxando votos para outros deputados da legenda.
Outros
grupos evangélicos na mídia e na política
Outros grupos evangélicos que aparecem na lista dos
cinquenta veículos de maior audiência no país, segundo o MOM Brasil, são a Igreja
Apostólica Renascer em Cristo e a Igreja Adventista do Sétimo Dia. A Renascer é
dona da Rede Gospel de televisão, 11a em audiência. Já a Adventista é dona
da Novo Tempo, 12ª rede
nacional de rádio.
Nenhuma das duas se articula em torno de um partido, mas
a Renascer possui uma atuação política através de suas lideranças ou de
parcerias com lideranças de outras igrejas. Geraldo Tenuta Filho, o
Bispo Gê, presidente da Renascer e comentarista na Rede Gospel de
televisão, foi deputado estadual e federal por São Paulo em diferentes partidos
(foi filiado ao PSDB, ao PTB, ao então PFL e ao PMDB). Na Câmara dos Deputados,
foi titular, entre outras, das comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e
Informática.
A Renascer também tem ligação com uma das principais
lideranças evangélicas do Congresso Nacional, o senador Magno Malta (PR-ES).
Membros da Assembleia de Deus, Magno Malta e sua esposa, a cantora gospel e
ex-deputada federal Lauriete Rodrigues (PSC-ES), apresentam o programa de
entrevistas Visão de Vida, na Rede Gospel.
O senador é presença constante também na Marcha para
Jesus, evento realizado pela Renascer, desde 1993, e que, tendo artistas da
música gospel como principal atração, já chegou a reunir cerca de 2 milhões de
pessoas em São Paulo, em 2013.
Já a Igreja Adventista do Sétimo Dia não possui
candidatos oficiais, embora também tenha sido beneficiada com concessões de
rádio e TV no processo Constituinte (a concessão de sua primeira emissora de
rádio, embrião da rádio Novo Tempo, é de 1989).
A igreja apresenta diretrizes para a atuação política de
seus pastores e leigos, pelas quais declara que não apoia nem possui partidos
políticos e candidatos oficiais, não permite a realização de reuniões políticas
em seus templos e determina que políticos que sejam adventistas se licenciem de
suas atividades da igreja.
No entanto, orienta seus membros a participarem de
eleições e escolherem candidatos “que defendam os princípios de temperança – o
que inclui combate ao fumo e bebidas alcoólicas – questões de liberdade de
expressão religiosa, separação entre Igreja e Estado e que efetivamente tenham
propostas concretas para melhorar a qualidade de vida da população em geral
especialmente nas áreas de saúde, educação e família”.
Mídia
e política na Igreja Católica
Se as TVs e os grandes eventos oferecem palanque para os
políticos religiosos e suas propostas, é também graças à atuação política que
as igrejas conseguem suas concessões públicas de rádio e TV.
Segundo levantamento já citado de Aires e Santos, na
última década o número de concessões de geradoras e de retransmissoras de
televisão ligadas a entidades religiosas saltou de 1.687 para 2.841, um
crescimento de 69%, acompanhando o crescimento do número de parlamentares
religiosos na Câmara dos Deputados.
A Igreja Católica, especialmente por meio da corrente da
Renovação Carismática, detém 40% das emissoras religiosas de TV. Uma delas é a
Rede Vida, 8a em audiência segundo o MOM Brasil.
A Rede Vida foi iniciativa do jornalista João Monteiro de
Barros Filho, dono do Grupo Monteiro de Barros de Comunicação, em Barretos
(SP). A concessão foi obtida em março 1990, no último mês do governo de José
Sarney (PMDB, 1985-1990), com a ajuda de Augusto Marzagão, amigo pessoal de
Monteiro de Barros Filho que ocupou o cargo de secretário particular do presidente
da República.
A operação de concessão teve a assessoria do jurista e
professor Ives Gandra da Silva Martins, membro da Opus Dei, organização
conservadora católica. A expansão da rede contou com a articulação entre
religiosos e políticos e é gerida pelo Instituto Brasileiro de Comunicação
Cristã (Inbrac), cujo conselho superior é presidido por Dom Orani Tempesta,
hoje arcebispo do Rio de Janeiro. Dom Orani foi presidente do Conselho de
Comunicação Social do Congresso Nacional, entre 2012 e 2014, defendendo a mídia
religiosa como “liberdade de expressão”.
Da mesma forma que as redes de TV evangélicas, a Rede
Vida apresenta políticos em sua grade de programação. Gabriel Chalita apresenta
o programa Caminhos. Atualmente no PDT, ele foi vereador de São Paulo (PSDB),
deputado federal (PMDB), secretário municipal de Educação na gestão de Fernando
Haddad (PT) e secretário estadual de Educação na gestão Geraldo Alckmin (PSDB),
além de candidato a vice-prefeito na chapa de Haddad em 2016. A política também
está no cerne de programas de entrevistas, como o Anatomia do Poder,
apresentado por Ives Gandra.
Outras
lideranças religiosas na mídia de maior audiência
Se as redes de rádio e TV controladas por lideranças e
instituições religiosas ajudam a projetar políticos cristãos, outras lideranças
ganham visibilidade através de redes laicas de grande audiência, como a Rede
TV! e a Band. Entre elas, o pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus
Vitória em Cristo (ADVEC).
Malafaia apresenta o programa Vitória em Cristo,
transmitido pela Band aos sábados, ao meio dia. O pastor também é
frequentemente ouvido por jornalistas como “representante” dos evangélicos, embora os brasileiros que se
declaram assim sejam heterogêneos e não possuam uma representação oficial.
Depois de apoiar o PT em 2002, Malafaia se tornou
ferrenho opositor do partido a partir de 2006. Como mostra Christina Vital da
Cunha, Paulo Victor Leite Lopes e Janayna Lui, tornou-se um dos articuladores
do chamado “voto evangélico” a partir de 2010, sendo um dos articuladores da
campanha do deputado federal Marcos Feliciano (PSC) para a presidência da
Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, em 2013, e
para a candidatura presidencial do Pastor Everaldo (PSC), em 2014. Seu irmão,
Samuel Malafaia, é deputado estadual (PSD-RJ), e o ex-diretor de eventos da
ADVEC, Sóstenes
Cavalcanti (DEM-RJ), é deputado federal.
Que
“valores cristãos” são colocados em debate na esfera pública?
Os slogans de algumas redes de rádio e TV religiosas
apresentadas na pesquisa, como Rede Vida – o “canal da família” – e Rede
Aleluia – “a rede da família” –, e a programação voltada para a defesa de
valores considerados como cristãos, coincidem com grande parte da atuação de
igrejas evangélicas e católicas no sistema político brasileiro.
A defesa de questões morais, da chamada “família
tradicional”, a condenação da homossexualidade e do aborto são algumas pautas
que reúnem grande número de evangélicos e católicos de diferentes correntes
doutrinárias – especialmente pentecostais e carismáticos – em sua atuação no
Congresso Nacional.
A Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana
trabalha associada à Frente Parlamentar Evangélica em vários assuntos, como
afirmou o seu coordenador, o deputado federal católico Givaldo Carimbão
(Pros-AL), em
entrevista ao programa Com a Palavra, da Rádio Câmara.
A motivação da frente, segundo Carimbão, é impedir
legislações que rasgariam, na sua visão, a “lei de Deus”, como a legalização do
aborto e da eutanásia e a inclusão de “políticas de gênero” no Plano Nacional
de Educação.
Mas a atuação religiosa na política também envolve outros
temas de interesse das igrejas, como a isenção de impostos a igrejas e escolas religiosas, o financiamento para projetos culturais e para veículos de comunicação
religiosos e a distribuição das concessões da radiodifusão.
Com diferentes ênfases, parlamentares investem nessas
pautas que têm relação mais com seus interesses religiosos e institucionais do
que com os assuntos de interesse de toda a sociedade.
Segundo Ronaldo Almeida, enquanto a Assembleia de Deus
atua principalmente em questões morais, dando grande atenção à Comissão de
Direitos Humanos e Minorias, os deputados da Iurd, que já causaram polêmica no
mundo religioso ao defender o aborto, enfatizam projetos ligados a gestões dos
negócios, principalmente nos meios de comunicação.
Movimento
ecumênico e outras visões sobre o cristianismo nas redes sociais
Os religiosos “midiáticos” de maior visibilidade
pertencem a um pequeno grupo de cristãos evangélicos e católicos que também
ganham espaço na esfera pública a partir de sua atuação política.
O centro de sua atuação – e aquilo que os une, como disse
o deputado federal Carimbão – é a defesa de determinados valores morais e o
combate aos direitos conquistados por mulheres e LGBTs nos últimos anos. São
essas mesmas lideranças que ganham visibilidade na cobertura jornalística dos
veículos laicos.
No entanto, o mundo religioso cristão é mais heterogêneo
e complexo do que a atuação dessas lideranças, chamadas de “extremistas” por
Christina Vital da Cunha, Paulo Victor Leite Lopes e Janayna Lui.
Pesquisas do Datafolha de 2014 e 2015 indicam, realmente,
uma correspondência entre o que pensam os evangélicos na sociedade e os
parlamentares evangélicos no Congresso Nacional em relação à homossexualidade:
40,3% dos protestantes e 44,9% dos pentecostais acham que “a homossexualidade
deve ser desencorajada por toda sociedade”, correspondendo aos 41,9% dos
parlamentares pentecostais e 46,2% dos parlamentares protestantes que concordam
com a mesma afirmação.
No entanto, em outros temas, como mostram os
pesquisadores, as opiniões não coincidem. Nas eleições presidenciais de 2014,
por exemplo, a maior parte dos eleitores do Pastor Everaldo (PSC) eram contra o
Estado mínimo defendido pelo candidato.
Além disso, outra forma de atuação pública de religiosos
tem se disseminado. Como mostrou Tatiane dos Santos Duarte, os movimentos ecumênicos cristãos de
pautas progressistas não ganham espaço nas mídias de maior audiência nem nas
reflexões acadêmicas, mas vêm construindo ações que se utilizam,
principalmente, das redes sociais.
Entre eles, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no
Brasil (Conic), a Koinonia e a Rede Ecumênica da Juventude (Reju). Essas
entidades e coletivos já realizaram campanhas virtuais como “Religiosas e
religiosos pela democracia” e uma campanha em defesa da laicidade do Estado que
utilizava a hashtag #nãoemnomedeDeus.
Realizaram também ações voltadas para o Congresso
Nacional, como o envio de cartas públicas aos parlamentares e a realização de
eventos com o apoio de parlamentares progressistas.
*Olívia Bandeira é
jornalista, doutora em Antropologia e integrante do Intervozes
Reportagem
publicada em 16 de abril de 2018 no site da Le Monde Diplomatique Brasil