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Quem quer ser herói?

Nos últimos tempos os déspotas esclarecidos do judiciário demonstraram uma fogueira de vaidades sem limites.

Moro ao assumir o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro. Foto: Agência Brasil

Por Giane Maria de Souza – Le Monde Diplomatique Brasil
24/02/2019

“Não sou nenhum herói”, a frase pronunciada pelo capitão Gregório De Falco, logo após o acidente com o navio Costa Concordia na Itália em janeiro de 2012, gerou muita polêmica. De Falco, chefe da Capitania de Portos de Livorno, protagonizou uma discussão acalorada sobre ética e responsabilidade com Francesco Schettino, comandante do navio que estava a naufragar.

Após o ocorrido, houve a tentativa de heroificar a figura de De Falco. O mercado produziu artefatos comerciais sobre o episódio. As pessoas repetiam em tom de reprovação quando algo estava errado: “Vada a bordo, cazzo”. A expressão foi identificada no imaginário popular como uma espécie de luta do bem contra o mal. Voltar a bordo, significava assumir responsabilidades.

O bem tornou-se personalizado na figura de De Falco e o mal estava representado em Schettino, pois ao abandonar o navio, deixou os passageiros e a tripulação entregues a sua própria sorte. As fraquezas, limitações humanas e éticas ilustravam-se no comandante amedrontado ao negligenciar suas responsabilidades.

Naquele período, a imprensa italiana e a indústria da espetacularização criaram marketing para De Falco, como uma espécie de novo herói da nação. Depois do acidente, uma aura de coletividade, de bem comum, de responsabilidade e ética deveria ser construída na figura do capitão. Desastres e acidentes deveriam unir e fortalecer a sociedade em prol de causas concretas com o bem público.

No ano em que De Falco emergiu publicamente, a Itália tentava se recuperar dos desvios públicos, da corrupção, das orgias políticas e sexuais efetuadas por Berlusconi, conhecidas por bunga bunga. A Operação Mãos Limpas, como um processo de combate à corrupção e ocupação sem limites da máquina pública, mostrou-se incapaz de prevenir o surgimento de figuras grotescas como a de Berlusconi.

A indignação virou deboche e vergonha política. O caso De Falco possibilitava a retomada da autoestima italiana. Porém, notícias indicam que Berlusconi poderá novamente ser candidato em 2019, já que a justiça italiana reconsiderou seu “bom comportamento” no cumprimento da pena imposta.

De Falco não aceitou as benesses de ser reconhecido como herói, não quis ser midiatizado, mitificado e transformado em produto comercial. Não gostava de dar entrevistas e mostrava-se incomodado com a invasão da sua privacidade, repetia que somente havia cumprido sua função. Esquivou-se dos holofotes e não aceitou transformar-se em espetacularização.

Alguns anos depois, em 2018, De Falco foi eleito senador pelo Movimento 5 Estrelas (M5s), uma organização autoproclamada não partidária, criada pelo humorista Beppe Grillo. Logo após a eleição, o M5s expulsou De Falco, o acusando de violações éticas.

Sem analisar profundamente a história da política italiana, o caso De Falco auxilia pensar os usos e criações de heróis em funções públicas.

Alguns profissionais que são heroificados pelo senso comum quando desempenham funções consideradas indispensáveis para a sociedade, assim como De Falco, recusam a alcunha de heróis. Esse tipo de classificação não lhes cabe, porque está em jogo outras relações de valorização humana e profissional.

Nesse sentido, muitos trocariam menções honrosas e laureamentos por bons salários, condições dignas de trabalho e melhores condições de vida. O reconhecimento social do trabalhador é mais concreto do que inúmeras frases gloriosas de heroificação. Muitas são as histórias anônimas de transformação social executadas por profissionais imprescindíveis à coletividade pública.

De Falco, quando recusou a alcunha de herói, mostrou que o desempenho da função, não deve ser motivo para sua heroificação. Os trabalhadores almejam viver tranquilos com suas famílias e executar com ética seu trabalho cotidiano. Simples assim. Obter qualidade de trabalho e de vida, deveria ser o objetivo de toda sociedade, independente de sua ideologia.

No Brasil, a tragédia na Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, evidenciou crimes civil, ambiental e trabalhista. E para agravar a situação, a maioria dos trabalhadores soterrados eram terceirizados, portanto menos protegidos em relação à legislação trabalhista.

Notícias sobre o resgate, evidenciaram que os bombeiros que ali atuaram estavam com os salários atrasados e o décimo terceiro parcelado em onze vezes. Mesmo com toda a precarização do trabalho e a humilhação pelos quais passam esses profissionais, entusiastas de plantão nas redes sociais bradavam à exaustão a palavra “herói”.

Se os bombeiros pudessem escolher, entre as honrarias públicas e condições dignas de trabalho e salário, provavelmente escolheriam a segunda opção. Condecorações não cobrem infraestrutura inadequada de trabalho nem salário atrasado.

Parafraseando Bertold Brecht, por trás dos grandes acontecimentos, do trabalho e dos trabalhadores, dos heróis, do salário, do custo de vida, estão fatalmente decisões políticas. Para os governos, mídia e população, tornou-se prática social recorrente edificar nomes e transformar profissionais em mitos e heróis e não conceder a mesma ênfase para a precariedade das condições de trabalho e de vida das pessoas.

Constata-se que as grandes tragédias revelam, além de heróis, muita negligência política administrativa e social em zelar pelo bem público e pelas vidas humanas. Sem tragédias não haveria heróis e mitos.

Existe uma dificuldade em olhar generosamente para alguns profissionais e perguntar: Quanto ganham? Como trabalham? Como vivem? Profissionais considerados imprescindíveis como os bombeiros, provavelmente vivem as agruras e as inseguranças diárias de um trabalho precarizado. Defender o trabalho digno para todos, não é uma questão de esquerda ou de direita, é uma questão de dignidade humana.

No Brasil muitos estão a bradar contra os direitos humanos, trabalhistas e ambientais, insistem em dizer que as instituições irão funcionar melhor com a flexibilização total da legislação. Será?

Impossível analisar o que ocorreu em Brumadinho, sem ponderar sobre as condições pelas quais os trabalhadores vivem, adoecem, morrem e são submetidos diariamente. Segue a precarização do trabalho e exploração dos trabalhadores e o Ministério do Trabalho sepultado, assim como as políticas de proteção aos trabalhadores. Mas, as instituições estão a funcionar, os heróis a trabalhar e poucos a lucrar.

Bombeiro em trabalho de resgate em Brumadinho. Foto: divulgação Bombeiros/MG

Os bombeiros de Brumadinho seguem a procurar corpos de trabalhadores, em sua maioria, terceirizados. Enquanto isso, o poder executivo e legislativo federal ameaçam a extinção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e da previdência social pública. No Brasil, chora-se a morte das pessoas e das instituições.

No governo de Jair Bolsonaro do Partido Social Liberal (PSL), parte do extinto Ministério do Trabalho, destinou-se ao Ministério da Justiça. O ministro Sergio Moro é considerado herói nacional, emergiu no rol da fama, trabalhando na primeira instância da justiça na cidade de Curitiba. O ex-juiz aceitou a alcunha de herói e adotou posturas populistas. Como ministro, se coloca como um profissional fora do comum, digno das muitas honrarias a ele atribuídas.

Nos últimos tempos os déspotas esclarecidos do judiciário brasileiro demonstraram uma fogueira de vaidades sem limites. Moro galgou os passos para um processo de patrimonialização do seu nome e uma heroificação de sua figura pública.

Joaquim Barbosa, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) já havia trilhado esse caminho de estrelato recebendo a alcunha de justiceiro nacional anos antes. Canais midiáticos imputaram à Barbosa capas de Superman. O ministro tornou-se boneco de Olinda e máscara de carnaval no Rio de Janeiro. Em 2018 tornou-se presidenciável e filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), pouco tempo depois, desistiu e reclamou do apedrejamento da exposição pública.

Já Moro, um juiz jovem, nunca se incomodou com a espetacularização do seu ofício e da sua exposição no comando da Operação Lava Jato. Aos poucos, sua função, sua carreira e seu lugar de trabalho foram transformados em uma linha de produção de pautas para a mídia mainstream promovendo um merchandising político para si.

Representantes do judiciário brasileiro, com altos salários e sem atrasos, com muitas regalias e ótimas condições de trabalho, entendiam que a alcunha de herói era necessária para o reconhecimento público de suas carreiras. Palavras, condutas e posturas mostravam um novo salvador da pátria no combate à corrupção.

O maior problema do Brasil é a corrupção, diriam eles, mesmo que a pobreza no Brasil tenha aumentado gradativamente atingindo o número assustador de 54, 8 milhões em 2017.

Máscaras de Moro tornaram-se moda no carnaval do Rio de Janeiro, assim como de figuras controversas como do japonês da federal. Moro virou marchinha, boneco de Olinda e, recentemente, nome científico de um molusco “lavajatus moroi”. Talvez para quem conseguiu boas oportunidades, bons salários e uma carreira em ascensão, privilégios, homenagens e honrarias são de fato muito importantes.

O comando da Operação Lava Jato transformou o juiz em super-herói. Coletivas com a imprensa, vazamento de gravações telefônicas presidenciais, depoimentos coercitivos e a prisão de um ex-presidente com mais de 87% de popularidade no final de seu mandato, transformaram-se em grandes epopeias.

Lula tornou-se troféu para Moro e de certa forma alavancou sua carreira ao Ministério da Justiça. A Operação Lava Jato foi noticiada como um grande espetáculo de entretenimento nacional.

Um juiz, ainda jovem, tornou-se ídolo nacional e herói.  Aceitou fazer selfies com artistas e políticos, entre eles membros do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), adversário histórico do Partido dos Trabalhadores, principal alvo da Operação Lava Jato, inclusive com investigados em processos de corrupção.

Viajou para o exterior, foi convidado para ministrar palestras e conferências, participou de jantares com políticos e intelectuais, concedeu autógrafos, enfim, tornou-se celebridade. Moro escreveu e a ele foram dedicados livros e reportagens, recebeu honoris causa em universidades, tornou-se tema e roteiro de filme e série.

Muitas teses, dissertações e artigos científicos tentam compreender, analisar e desconstruir este sujeito histórico e suas redes de sociabilidades e poder. Houve uma excepcionalidade atribuída a Sérgio Moro que foi patrimonializada em vida.  Importante questionar, nesse caso se o ex-juiz teria se deixado abduzir pelos holofotes midiáticos e por sua ambição e vaidade.

No entanto, muitas personalidades tiveram uma trajetória e o conjunto de sua obra reconhecidos somente após morte, mesmo que em vida, além de admirados, fossem perseguidos por seus ideais. A somatória de ações, intervenções, pensamentos, publicações, condutas profissionais formaram o legado para reconhecimento social de sujeitos históricos como Paulo Freire, Nise da Silveira, Milton Santos, Florestan Fernandes, entre outros, sem transformá-los em heróis.

A transformação de figuras públicas em personagens heroificados evidencia diferenças abismais entre profissionais e personagens, responsabilidade e ética. Para alguns, personagem e profissional são cara e coroa da mesma moeda.

Na Itália, o capitão Del Falco não quis ser herói, se considerava um profissional no cumprimento da sua função. Os bombeiros em Brumadinho, talvez digam o mesmo, preferindo se resguardar nas suas responsabilidades, trabalhar com dignidade e ter seu holerite pago em dia.

A presunção de se achar o único, o verdadeiro, o mais capaz, o mais competente, o justiceiro, o herói, o mais bravo, o homem certo, o maior combatente ou como diria o ditado popular “a última bolacha do pacote” é um risco. O poder é uma trama perigosa, onde negociações, arranjos, injustiças e violências lhe conferem substrato. Será que muitos profissionais deixam de ser éticos com seu ofício para virar personagens midiáticos? Essa talvez seja uma das questões mais importantes para se debater nos dias atuais.

Assim como o ex-presidente Lula, tornou-se um troféu de guerra para os heróis da Operação Lava Jato, o ministro da Justiça, igualmente, tornou-se troféu de legitimidade para o governo de Bolsonaro. O problema é que ambos os troféus são construídos politicamente, portanto questionáveis. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, questionaria Marx.

Tudo pode ruir em questão de segundos. Diante de candidatos e personagens controversos e eleições presidenciais questionáveis, manter a compostura e a postura imparcial em momentos de polarização seria o mais aceitável para o judiciário.

Quando se investe na criação de um personagem/mito/herói cria-se um risco para qualquer ofício. A projeção pública traz mais ônus do que bônus. Todo Superman tem a sua kryptonita. A ambição desmedida cega quem persegue o poder. Qual será o calcanhar de Aquiles dos nossos heróis e mitos atuais? Quem terá a coragem de cortar o cabelo de Sansão?


Giane Maria de Souza é historiadora, mestre em Educação pela UNICAMP. Doutoranda em História Cultural pela UFSC – Linha Sociedade, Política e Cultura no Mundo Contemporâneo. Bolsista Capes no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior – Investigadora Convidada no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). É autora do livro A cidade que se trabalha – a propagação do autoritarismo estado vista em Joinville/SC pela Editora Maria do Cais, 2008.

Artigo publicado em 12 de fevereiro de 2019 no site da Le Monde Diplomatique Brasil

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