Uma vida contra o silêncio dos outros
Documentário
relata busca por justiça contra crimes cometidos durante a ditadura de Franco,
na Espanha; filme é necessário a um Brasil que teima em apagar sua história.
Maria e as flores para a mãe morta pela ditadura de
Franco. Foto: reprodução
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Por Cláudia
Motta – Rede Brasil Atual
24/02/2019
Documentar o esquecimento. É essa a proposta de O Silêncio dos Outros, cumprida com
êxito pela direção de Almudena Carracedo e Robert Bahar, graças à ajuda
daqueles que dedicam a vida a jamais esquecer.
A ditadura de Francisco Franco, na
Espanha, durou 40 anos e fez mais de 100 mil vítimas. Em 1977, dois anos após a
morte do ditador, a vitória dos que clamavam pela anistia aos presos políticos
é transformada pelo parlamento em anistia geral.
Um pacto pelo esquecimento, pelo qual os espanhóis
decidiram deixar para trás, “sem reviver rancores”, os crimes cometidos por
militares, juízes, médicos e torturadores contra os que lutaram em defesa da democracia.
Maria Martín era criança quando a mãe foi levada em um
vilarejo no interior da Espanha. Rasparam-lhe os cabelos e a expuseram pelas
ruas. As crianças seguiam, jogavam pedras, lembra. A família foi proscrita.
“Ela não havia feito nada. Eles diziam que era vermelha.”
Na mesma noite, a mãe de Maria apareceu morta. Ela, mais
duas mulheres e 27 homens. Os corpos foram encontrados onde hoje, décadas
depois, passa uma estrada. Esta é a primeira cena do documentário: Maria
caminhando com sacrifício sob o peso da idade para colocar flores no local onde
morreu jovem sua mãe. Ela é um dos que jamais esquece e vive para cumprir a
promessa feita ao pai: enterrar com ele a companheira, cujo corpo nunca foi
entregue à família.
Maria e os espanhóis que se recusaram ao pacto do esquecimento
são a razão de existir de O Silêncio
dos Outros. São suas histórias, a cumplicidade com a luta das suas vidas
por justiça, e não vingança, como gostam de frisar, que permitem documentar o
que o país teima em esquecer.
Os jovens, nas praças, desconhecem a lei do esquecimento.
Pouco sabem sobre a ditadura sob a qual tantos padeceram. As escolas,
protegidas pela lógica dessa legislação, não ensinam sobre a anistia. “Ninguém
conta. E porque ninguém conta, ninguém sabe.”
Impossível não fazer uma analogia com o Brasil de hoje,
no qual torturadores são homenageados e o governo nomeia um general que se
refere às Comissões da Verdade – responsáveis por investigar os crimes contra a
humanidade durante a ditadura militar – como “comissões de calúnia”.
Na Espanha do esquecimento, muitos saúdam, na atualidade,
a luta contra o comunismo dos tempos de Franco, quando o país, com o apoio de
outras nações europeias e dos Estados Unidos, viveu um milagre econômico que
provoca saudade num continente pressionado pela crise econômica.
O documentário, que tem produção de Pedro Almodóvar,
levou seis anos de produção e chega na quinta-feira (28) às salas de cinema do
Brasil. Ganhou o Prêmio do Público e o Prêmio Cinema pela Paz, no Festival de Berlim, e o Goya, algo como o Oscar
espanhol, de Melhor Documentário.
Crimes
que não podem ser anistiados
Com o tempo, os personagens, que aceitam expor às câmeras
a intimidade das suas dores em nome da justiça que nunca deixaram de buscar,
envelhecem. Idosos que procuram os restos de pais, irmãos, filhos, mortos
jovens. Querem o direito de sepultar os seus, antes que eles mesmos morram.
Contam para isso com a ajuda de advogados de direitos
humanos. Carlos Slepoy é um deles. Conhecido internacionalmente pela sua
atuação, ao lado do juiz Baltasar Garzón, no processo que resultou na prisão do
ditador chileno Augusto Pinochet, em 1998, Slepoy ingressa em 2010, na
Argentina, com uma ação para punir os crimes contra os direitos humanos
cometidos pela ditadura franquista. Crimes contra a humanidade não prescrevem,
tampouco podem ser anistiados.
Aos poucos, os que lutam por lembrar o que jamais deve
ser esquecido conquistam pequenas vitórias. As mães que veem ser denunciado o
médico que lhes roubava os bebês para entregar às famílias de militares. O
torturado que sorri com prazer ao ver seu torturador pela primeira vez exposto
na TV pelos crimes que cometeu. Em 2017, as ruas e praças de Madri deixaram de
ter nomes de ditadores e torturadores.
“A vida é injusta, os humanos são injustos”, afirma Maria
Martín. Durante 40 anos, a vala comum do cemitério onde foram jogados centenas
de corpos vitimados pela ditadura franquista, permaneceu fechada.
Os familiares tinham de jogar flores por cima do muro
onde choravam seus mortos. Em 2000, cerca de 8 mil homens e mulheres tiveram
seus restos reconhecidos e entregues aos familiares para o sepultamento tão
esperado.
Mais de 100 mil ainda não foram encontrados. Por
toda a Espanha há valas com dezenas de corpos em campos, estradas. Ainda hoje,
o país impede a extradição dos torturadores, para que sejam julgados pela
Justiça argentina, onde corre o processo iniciado por Slepoy em 2010.
O advogado morreu em abril de 2017, antes de poder
assistir ao filme. É a ele, e aos que não se entregam ao silêncio acreditando
que um dia haverá justiça, que Almudena Carracedo e Robert Bahar dedicam sua
obra.
Assista
ao trailer de O Silêncio dos Outros:
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