Bolsonaro extingue canais de participação social em políticas públicas
“É um
ato discricionário que atinge o coração da democracia participativa no Brasil”,
afirma a jornalista Renata Mielli, do Fórum Nacional pela Democratização
da Comunicação.
Por Cláudia Motta - RBA
Por Cláudia Motta - RBA
12/04/2019
No pacote divulgado ontem (11) para marcar os 100 dias de
governo, o presidente Jair Bolsonaro assinou o Decreto 9.759, que pretende diminuir de 700 para menos de
50 o número de conselhos previstos pela Política Nacional de
Participação Social (PNPS) e pelo Sistema Nacional de Participação Social
(SNPS). Esses programas, criados pelo governo Dilma Rousseff, em 2014, também
são extintos.
Foto: Marcos Corrêa/PR |
De acordo com o decreto, além de conselhos, serão
encerrados comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e
qualquer outra denominação dada a colegiados que não tenham sido criados por
lei.
Esses órgãos terão prazo de 60 dias para justificar sua
existência. “Acreditamos que ao final dos 60 dias deveremos ter pouco mais ou
pouco menos de apenas 50 conselhos”, disse o ministro-chefe da Casa
Civil, Onyx Lorenzoni. Para ele, tais conselhos “resultavam em
gastos com pessoas que não tinham nenhuma razão para estar aqui, além de
consumir recursos públicos e aparelhar o Estado brasileiro”.
Entre os ameaçados estão organismos fundamentais para a
sociedade brasileira como o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência (Conade), o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção
dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT), o Conselho
Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), o dos
Direitos do Idoso (CNDI), o de Transparência Pública e Combate à Corrupção
(CTPCC), o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), o de Relações do
Trabalho, o de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), a Comissão
Nacional de Política Indigenista (CNPI), a da Biodiversidade (Conabio), o
Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI).
Para se ter ideia do caos que pode estar sendo criado,
entre os conselhos que têm participação da sociedade civil serão
extintos pelo decreto de Bolsonaro estão os das Cidades e o Gestor do
Fundo de Habitação para Interesse Social. “Com isso, praticamente toda a
política de desenvolvimento urbano é desmontada, pois estes órgãos são os
responsáveis por definir a alocação dos recursos do Fundo destinado à política
da moradia”, afirma a advogada Carla Bezerra, pesquisadora do Centro de Estudo
da Metrópole.
Mestre em Ciência Política pela Universidade de São
Paulo (USP) e bacharel em Direito na Universidade de Brasília (UnB), Carla
alerta: “Existem inúmeros órgãos colegiados que têm atribuições essenciais para
a execução de várias políticas públicas. A extinção, sem detalhar de quais
órgãos estamos falando, tem como efeito imediato uma enorme insegurança
jurídica”, avalia Carla. “Por exemplo, um Comitê passível de extinção por este
Decreto é o Copom (Comitê de Política Monetária, regulado pela Circular n°
3.868 de 19/12/2017 do Banco Central do Brasil). Ele é um comitê composto
estritamente pelo governo e responsável por definir toda a política monetária
do governo. Ou seja, no momento, não é claro quem definirá tais diretrizes a
partir de segunda-feira.”
A advogada explica que um decreto editado unilateralmente
pelo presidente não precisa ser submetido ao Congresso e está hierarquicamente
abaixo de uma lei. “Portanto, ele só pode extinguir colegiados previstos em
outros decretos ou em portarias. Aqueles previstos em lei continuam existindo.”
O Congresso, porém, tem a prerrogativa
de derrubar um decreto presidencial.
O estrago é grande. “O decreto se estende para toda a
Administração Pública direta, autárquica ou fundacional, isto é: além dos
ministérios, se aplica também a instituto, universidades, dentre outros.”
Até as conferências – por meio das quais a sociedade
participa do debate em âmbito municipal, estadual e federal – podem estar em
risco caso tenham sido convocadas pelos respectivos conselhos sob
extinção. A 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, por exemplo,
prevista para ocorrer entre 27 e 31 de maio, está sendo cancelada.
Reação
Carla Bezerra afirma que em cada caso será preciso ver os
efeitos e se há medidas cabíveis para questionar o decreto de Bolsonaro. “Isso
depende muito das especificações e competências de cada órgão colegiado. É
provável que a partir de segunda ocorra a recriação de vários desses órgãos,
que agora deverão observar as regras mais restritivas de funcionamento do
decreto, como a curiosa restrição ao tempo de duração da reunião.”
No artigo 4º, o Decreto 9.759 prevê que as
convocações para reuniões especificarão o horário de início e o horário limite
de término da reunião. “Na hipótese de a duração máxima da reunião ser superior
a duas horas, será especificado um período máximo de duas horas no qual poderão
ocorrer as votações.”
O líder da oposição na Câmara, deputado Alessandro Molon
(PSB-RJ), informou que apresentará na segunda-feira (15) um Projeto de Decreto
Legislativo (PDL) para sustar os efeitos do Decreto Presidencial 9.759.
No entendimento de Molon, a extinção dos grupos viola o
modelo constitucional de formulação e implementação de políticas públicas, que
demanda participação e fiscalização popular. “O governo segue em sua cruzada
para desarticular a sociedade e impedir a participação e fiscalização dos
cidadãos, retirando do povo o poder que a Constituição lhe garante. Primeiro,
com o decreto que aumentava sigilo sobre documentos, que conseguimos derrotar.
Agora, com a extinção de conselhos importantes para a formulação de políticas
públicas. Como temos visto, o governo prefere se mover em meio à névoa, para
que não haja transparência ou cobrança da população”.
“Ainda estamos analisando se o decreto atinge o Comitê
Gestor da Internet do Brasil (CGI.br)”, afirma a jornalista Renata
Mielli, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação.
O CGI é um órgão multissetorial, integrante de um sistema
internacional de governança da internet. Estudos de juristas sobre o modelo de
governança da internet no Brasil avaliam que o sistema internet (registros de
nomes do domínio .br, distribuição de endereços IP e sua regulação) é um
serviço de valor adicionado, não sujeito à regulação pública. As
organizações que o gerem (CGI.br e NIC.br) têm a participação do Estado
brasileiro (Decreto Federal nº 4.829, de 2003), mas não são agentes dele, e sim
de um sistema global coordenado pela Icann.
“O CGI.br ainda é organismo citado como integrante do
sistema de governança, reconhecido no Marco Civil da Internet. Seu fim
seria algo desastroso para a defesa dos direitos humanos na
internet. Estamos atentos e vamos atuar para que um decreto discricionário
não destrua a experiência exitosa e uma referência internacional de governança
multissetorial da internet. Se preciso for, vamos denunciar o governo brasileiro
junto à Organização das Nações Unidas e outros organismos, como a própria
Icann”, avisa Renata Mielli.
“Repudiamos o decreto como um todo, é um ato
discricionário que atinge o coração da democracia participativa no Brasil,
ataca instrumentos essenciais para a participação da sociedade no debate,
aprovação e acompanhamento da aplicação de políticas públicas. Uma medida de
explícito viés autoritário”, critica a jornalista.
Segundo o ambientalista Carlos Bocuhy, presidente do
Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) e integrante do Conselho
Nacional de Meio Ambiente, o governo está entrando no pântano da insegurança
jurídica. "É uma forma de tentar revogar a Constituição por decreto."
Ele lembra que as garantias de participação popular, por meio dos conselhos,
são constitucionais e estão contempladas no capítulo 225 da Carta Magna.
Além disso, Bocuhy afirma que “a medida do governo carece
de motivação e justificativa, apresentando-se de forma superficial e
ideológica, sem apresentar dados, números, muito menos critérios para uma
efetiva avaliação do funcionamento dos conselhos”.
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