Metodologia Paulo Freire revolucionou povoado no sertão
Difamado
por bolsonaristas e adeptos do ‘Escola Sem Partido’, educador pernambucano comandou
alfabetização de 300 adultos no interior do Rio Grande do Norte em 1963 - experiência que desagradaria a ditadura militar.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk e publicada originalmente em 30 de março de 2019 no site da Repórter Brasil.
Moradores de Angicos participaram do curso de alfabetização de adultos e ganharam o direito ao voto. Foto: arquivo |
Por Marcelle
Souza – Repórter Brasil
02/04/2019
Um povoado desconhecido no sertão brasileiro, com alta
taxa de pobreza e uma multidão de trabalhadores analfabetos, viveu uma
revolução: em apenas 40 horas, um grupo de professores liderados pelo educador
Paulo Freire ensinou 300 adultos a ler e a escrever. Mais do que criar novos
leitores, a primeira experiência de alfabetização em massa do país, realizada
em 1963, em Angicos, no Rio Grande do Norte, gerou novas possibilidades de
emprego, deu aos trabalhadores o tão sonhado poder do voto e os ensinou sobre
seus direitos – especialmente os trabalhistas.
O resultado deu tão certo que inspirou o Plano Nacional
de Alfabetização, que nunca chegou a sair do papel por causa do golpe militar
de 1964. Alguns dos principais articuladores da ideia, entre eles o próprio
Paulo Freire, terminaram exilados.
Mais de cinco décadas depois, o ódio ao educador voltou à
cena e guia a atual política educacional no país. O presidente Jair Bolsonaro
afirmou, enquanto candidato, que entraria com um “lança-chamas no MEC para
expulsar Paulo Freire lá de dentro”.
Ironicamente, o projeto executado em Angicos foi
financiado pela Aliança para o Progresso, do governo dos Estados Unidos, que
via na alfabetização dos brasileiros uma das armas na luta contra o avanço do
comunismo na América Latina. Enquanto o método Paulo Freire virou uma bandeira
a ser combatida, 13 milhões de jovens e adultos com mais de 15 anos ainda não
sabem ler nem escrever, dado que coloca o Brasil entre os dez países com mais
analfabetos no mundo, segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura).
“O projeto de Angicos custava 36 dólares por aluno e o
prazo de aprendizagem era curto. Se até hoje não foi retomado, é por intenção
de não gerar condições de aprendizagem para uma parte da população, que termina
por não desenvolver o seu potencial”, diz o advogado Marcos Guerra, que foi o
coordenador da experiência na cidade. Ele explica que a cidade foi escolhida
por ter, na década de 1960, o maior índice de analfabetismo do Rio Grande do
Norte.
O ex-aluno Paulo Alves de Sousa
diz que não guardou nada da época do curso de alfabetização: “Se a polícia
pegasse, a gente ia preso”. Foto: Caio Castor/Repórter Brasil
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A
palavra é TRABALHO
Para angariar os alunos em Angicos, professores
percorreram a cidade anunciando porta-a-porta a nova escola. Como a cidade não
tinha escolas suficientes, salas de aulas foram improvisadas em casas de
moradores e até na delegacia, onde tinham presos e policiais analfabetos. Na
década de 1960, 40% dos brasileiros eram analfabetos e só um terço das crianças
frequentavam a escola.
Considerada subversiva pelos militares, a metodologia
consistia, primeiro, em levantar palavras que faziam parte do cotidiano
dos alunos. “Por exemplo, ‘tijolo’. A professora perguntava quem sabia fazer tijolo,
quanto vendia, quem comprava, de quem era o lucro maior – se do proprietário ou
do trabalhador que o fabrica. Chamavam isso de aula de politização”, lembra a
ex-aluna Maria Eneide de Araújo Melo, 62, que hoje é professora
aposentada.
Naquela época, as condições de trabalho na região eram
precárias, havia muita desigualdade social, e a maior discussão se deu quando
os professores projetaram para os alunos a palavra ‘trabalho’. A partir desse
momento, foram incentivados a ler em sala artigos da CLT (Consolidação das Leis
do Trabalho). “Eles passaram a reivindicar direitos, como repouso semanal remunerado
e jornada de trabalho, que era intensiva e ultrapassava as horas estabelecidas
pela lei. A carteira assinada os entusiasmava”, conta a juíza aposentada
Valquíria Félix da Silva, 78, que foi uma das professoras do curso na cidade.
Depois do curso, uma greve na cidade parou a construção
de uma obra. Acredita-se que eles teriam sido inspirados pelo ensino dos
direitos trabalhistas em sala de aula, com a metodologia freiriana. “Os
trabalhadores disseram ao dono da empresa que sabiam que tinham direitos. Eles
pediam carteira assinada, repouso semanal remunerado e férias. E o patrão
disse: ‘eu não dou isso não, ninguém dá’”, lembra Guerra.
O educador Paulo Freire faz
formação de professores para replicarem sua metodologia (Foto: arquivo)
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Novos
caminhos
Maria Eneide nem tinha completado os 7 anos necessários
para iniciar a alfabetização, quando tratou de convencer a mãe e o pai
analfabetos de que precisavam aproveitar a nova escola que chegava na cidade.
“Meu pai trabalhava na agricultura, saía de manhã e só voltava à noite. Às
vezes, ele estava cansado, pensava em faltar, mas a professora ia lá em casa
buscá-lo para a escola”, lembra ela, que acompanhou os pais no curso.
Depois da formatura, o pai deixou o trabalho no campo
para ser pedreiro e, por fim, virou comerciante na cidade. A mãe, por sua vez,
decidiu realizar o sonho de entrar para a aula de corte e costura, porque agora
já sabia anotar as medidas.
Mas a pequena Maria Eneide queria ser professora como “a
dona Valquíria”, com quem aprendeu a ler na turma de adultos. “Fui alfabetizada
no curso de Paulo Freire. Daí, quando eu entrei para o primeiro ano do
fundamental, eu já falava de reforma agrária, das leis da Constituição. As
professoras não gostavam, diziam que eu estava mentindo. As pessoas não eram
esclarecidas naquela época”, diz ela, que acabou estudando pedagogia e hoje é
professora na cidade.
Novos
leitores e eleitores
A revolução em Angicos aconteceu também pela realização
de um desejo antigo de muita gente: o poder do voto. Naquela época, analfabetos
não podiam votar. Antes do curso, havia cerca de 800 eleitores cadastrados na
cidade. Depois da formatura, o município ganhou 300 novas inscrições.
“A gente que era pobre não era nem bem visto, ninguém
podia nem entrar no meio da sociedade, em festa desse povo, porque era pobre,
era da cor morena. Mas daí a professora começou a explicar que a gente ia
aprender a ler para conhecer os nossos direitos, e eu tinha vontade de
aprender, fazer meu nome que era pra votar. E eu aprendi”, lembra Luzia de
Andrade, 88.
Apesar do entusiasmo de todos, o clima em 1963 já era
tenso no país. Logo após o golpe militar, Paulo Freire foi demitido da então
Universidade do Recife, permaneceu 70 dias preso e, em seguida, teve que deixar
o país, assim como outros educadores do projeto, como Marcos Guerra.
Em Angicos, estabeleceu-se um silêncio que durou quase 30
anos. Estava proibido falar e lembrar das 40 horas que haviam mudado a cidade.
“Quando chegou essa notícia de que o homem [Paulo Freire] tinha sido exilado,
que tinha sido preso, muita gente, com medo, escondeu caderno, escondeu livro,
queimou”, conta Francisca de Brito, 74. “A gente não tem nada guardado dessa
época porque se a polícia pegasse, a gente ia preso”, diz Paulo Alves de Sousa,
77, outro ex-aluno.
Francisca
de Brito, ex-aluna, frequentou o curso de alfabetização mesmo sob ameaças da
mãe. Foto: Caio Castor/Repórter Brasil
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A
massa virou povo
Antes do golpe de 1964, a experiência era tão importante
para o país que o último dia de aulas em Angicos contou com a presença do então
o presidente João Goulart, do presidente da Sudene (Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste) Celso Furtado e de governadores de estados do
Nordeste.
Em meio às autoridades, um aluno pediu a palavra e
improvisou um discurso sobre a experiência na cerimônia de formatura. “Em outra
hora, nós era massa, hoje já não somos massa, estamos sendo povo”, disse o
agricultor Antônio Ferreira.
O presidente João Goulart ainda ficou curioso ao saber
que uma criança tinha aprendido a ler com a metodologia voltada para os
adultos. Era Maria Eneide, chamada à frente para testar as novas habilidades
para o público ilustre.
“Ele disse: ‘lê aqui’. E eu li. Depois me perguntou:
‘você quer ganhar o que?’ E respondi que queria uma bolsa para levar o material
para a escola”. Trinta anos depois, em visita a Angicos, Paulo Freire decidiu
refazer a pergunta para a ex-aluna: “se o presidente hoje perguntasse o que
você queria de presente, o que você diria?”. “Eu queria salário digno a todos
os professores”.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk e publicada originalmente em 30 de março de 2019 no site da Repórter Brasil.
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