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A coragem é contagiosa

Por Norma Couri* – Observatório da Imprensa
11/09/2019

Quem não viu, perdeu um marco da democracia brasileira, similar ao ato das Diretas Já, num auditório repleto de presumíveis 1500 pessoas. Perdeu o momento em que o jurista Dalmo Dallari clamou pela liberdade de imprensa e os direitos fundamentais garantidos pela Constituição de 1988. Aconteceu nesta segunda-feira, 9 de setembro, às 19 horas, no histórico Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP, e foi a manifestação mais importante dos últimos tempos contra os ataques sofridos por jornalistas e veículos de comunicação.

“Snowden me ensinou que a questão não é saber se vamos morrer, mas como vamos viver”, disse Greenwald. Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Em retaliação a coberturas consideradas desfavoráveis ao governo, o presidente assinou a medida provisória que extingue a obrigatoriedade da publicação de balanços por empresas na mídia impressa e desacata, persegue e processa qualquer jornalista que lhe dirija perguntas embaraçosas. As empresas que lhe são fiéis tratam de demitir em massa equipes de jornalistas presumíveis “de esquerda”, como aconteceu recentemente na ESPN. A censura está de volta, até nos gibis.

Com a presença de ilustres como o ex-chanceler Celso Lafer, o professor emérito da Faculdade de Direito Fabio Konder Comparato, a juíza Kenarik Boujukian, a cineasta Laís Bodanzky, a cantora Karina Buhr, o escritor português Valter Hugo Mãe e o colunista da Folha Reinaldo Azevedo – deixando clara sua posição antagônica com a esquerda ali presente, alegando estar ali pelo direito à diferença -, foi um ato importante pela união num país onde a democracia vem sendo dilacerada.

O mestre de cerimônia foi o jornalista Juca Kfouri, que trouxe, primeiro, a má notícia: “Imaginem que nós estamos aqui, em 2019, defendendo a liberdade de imprensa e a minha geração achava que essa preocupação tinha ficado para trás”. E, em seguida, a boa: “Este aqui é o renascimento da sociedade brasileira – que passa, igualmente, pelo renascimento da Associação Brasileira de Imprensa”.

“Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”, Juca citou Millôr Fernandes. E definiu a diferença entre “eles” e “nós”: “a gente faz a política do afeto, pensando em todos”. A novidade foi a intervenção de jovens representantes de centros acadêmicos “pela democracia no nosso país neste ato histórico onde, hoje compreendemos, ser jornalista já é um ato histórico”. Os representantes reconhecem que só 10% dos jovens jornalistas acreditam na imprensa, “mas precisamos mudar isso, eles têm de acreditar”.

Presentes representantes do padre Ticão, perseguido em sua igreja no leste de São Paulo, o padre Julio Lancelotti, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Paulo Zocchi, registrando a gravidade do momento em que jornalistas são mortos país afora, e, em nome do audiovisual, Laís Bodanzky, assustada com o discurso do ódio que toma conta do país. O auditório foi tomado por palavras de ordem, “não temos o direito de capitular”.

Presentes os ex- senadores pelo PT Eduardo Suplicy e Aloizio Mercadante, o ex-candidato a presidente pelo PT, Fernando Haddad, o jornalista Marcelo Rubens Paiva – que lembrou o momento de golpe em que vivemos citando a perda de três momentos de defesa da democracia que foram desrespeitados: “o controle civil dos militares, a independência dos três poderes e a imprensa livre”.

A perda dos direitos trabalhistas, da imprensa, da liberdade de expressão choca o representante da União Nacional dos Estudantes e todos os palestrantes que ecoam frases pelo Salão: “Juntamos aqui nomes como Marighella, Zumbi, Marielle Franco”; “Qualquer maneira de amor vale a pena”; “Parafraseando o discurso do presidente Lincoln, esta nação renascerá pelo regime de liberdade pelo povo, para o povo e não desaparecerá da face da terra”.

O portal Alma Preta, a Frente de Defesa pelo Povo Palestino, todos presentes no ato organizado pela Associação Brasileira de Imprensa, pelo Sindicato de Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, o Instituto Vladimir Herzog e os Centros Acadêmicos da USP Lupe Cotrim, Vladimir Herzog e 11 de Agosto.

“Obrigado pela presença de todos num momento gravíssimo”, disse o jornalista Eugênio Bucci. “Estamos aqui, hoje, para defender, manter e cumprir a Constituição Federal de 1988. Quando o presidente da República toma posse, ele jura, diante da nação e de seus representantes, defender, manter e cumprir a nossa Constituição. Que nasceu justamente de um consenso contra a censura, a tortura e a ditadura. Mas o presidente não cumpriu sua palavra, ele atenta contra a Constituição quando faz a apologia da ditadura, da morte de Alberto Bachelet no Chile, do coronel Brilhante Ustra. Ou quando censura filmes e jornalistas. Estamos aqui, hoje, porque não queremos a cultura do arbítrio, da homofobia, da xenofobia, do discurso de ódio que dirige insultos a outros países. Queremos a Constituição”.

O escritor português Valter Hugo Mãe nos lembra o que quase esquecemos: “Este é um país de maravilhas, apaixonei-me por este país de Machado de Assis, negro, de Sonia Braga e Ney Matogrosso, o país dos povos originários, o lugar onde Marielle estará sempre presente”. Ele insiste: “este é um país onde existe floresta, que se deixar de existir será um país como outro qualquer”.

Mas é outro estrangeiro, Glenn Greenwald, a estrela da festa, junto com o site que ele representa, o Intercept, e outros bravos órgãos de imprensa, Ponte, El País, Fotógrafos pela Democracia, Piauí. Presentes. “O pacto foi quebrado”, nos lembram. Glenn Greenwald não é artista pop, mas é recebido pela plateia como se fosse.

“O Brasil não é um país estrangeiro, me ensinou uma nova maneira de viver, uma nova profissão, me deu filhos e um marido. Não vou embora, vou ficar neste país até o fim dos meus dias, não pretendo ser o antagonista e sim devolver a este país a liberdade de imprensa e pensamento. Somos jornalistas, não hackers, minha paixão pelo Brasil não é um movimento impulsionado pelo ódio, e sim pela energia do amor e da diversidade. Mas não se iludam, fui impulsionado pela coragem de uma pessoa que conheci em Hong Kong quando ele tinha 29 anos, Edward Snowden [hoje com 36 anos]. Snowden me ensinou que a questão não é saber se vamos morrer, mas como vamos viver. Ele declarou estar pronto para ir para a prisão pelo resto da sua vida porque não poderia se calar depois do que havia descoberto”.

[O administrador de sistemas tornou públicos documentos que constituem o sistema de vigilância global da NSA americana, revelou a espionagem em massa promovida pelo governo americano e entregou a Glenn seus documentos, causando um escândalo que sacudiu o país].

“Snowden me ensinou que a coragem é contagiosa. É essa coragem que quero ver impregnada em todos os membros do Intercept e disseminá-la aqui, agora. Jornalistas: não podemos ter medo”.

*Norma Couri é jornalista.

Texto publicado em 10 de setembro de 2019 no site do Observatório da Imprensa.

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