"O que nos levou a sair do Mapa da Fome já foi destruído", diz ex-ministra do Desenvolvimento Social
Tereza Campello alerta que está em curso um
projeto de desconstrução da proteção social no Brasil.
Por Cris Rodrigues – Brasil de Fato
Mesmo depois desses anos todos de programas sociais, ainda existe muito preconceito, principalmente com o Bolsa Família. O que você diria para as pessoas que criticam o programa?
Por Cris Rodrigues – Brasil de Fato
14/09/2019
"É dramática a situação." Assim a ex-ministra
Tereza Campello define os primeiros oito meses de governo de Jair Bolsonaro
(PSL). Titular da pasta do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante os
governos Dilma Rousseff, a economista avalia que está em curso um processo de
desmonte da estrutura de proteção social no Brasil.
Tereza foi ministra nos governos de Dilma Rousseff. Foto: Pedro Aguiar |
Para ela, os ataques aos direitos trabalhistas e à
aposentadoria efetivados desde o golpe de 2016 deixam a população pobre mais
vulnerável. "As pessoas acham que não existe um projeto em curso, mas
existe. O problema é que não é um projeto de construção de uma nação soberana",
afirma.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a ex-ministra
comenta o avanço da fome e da pobreza, que foram negados por Bolsonaro em
julho, quando ele disse que "passar fome no Brasil é uma grande
mentira". "Você passa 15 anos tentando combater a pobreza e rapidamente,
três anos depois do golpe, a pobreza está aí de volta nos patamares de
2006", lamenta.
Para Campello, é justamente nos momentos de crise que o
país deveria investir mais nas áreas sociais, como saúde, educação e
assistência social, para atender à população mais pobre. Por isso, critica
os cortes do governo, especialmente na Educação, e a emenda constitucional que
desde 2016 prevê um teto de gastos nessas áreas por 20 anos.
Brasil de Fato: O
governo Bolsonaro é a antítese do governo Dilma, do qual você foi ministra.
Como você avalia esses primeiros oito meses de governo?
Tereza Campello: Do
ponto de vista de quem está preocupado com o país, com construir a nação, é uma
tragédia. Eu acho, no entanto, que a gente não pode confundir essa quantidade de
despautérios que o presidente fala – por exemplo ofendendo a mulher do presidente francês – com a ideia
de que não existe um projeto em curso. É difícil entender, porque quando você
fala em projeto geralmente se pensa em um projeto de desenvolvimento. A gente
olha e acha que não existe um projeto em curso, mas existe, e ele avança
rapidamente.
O problema é que não é um projeto de construção de uma nação soberana, de
construção da cidadania, de um país para o seu povo. É um projeto de
desconstrução do patrimônio nacional, dos ativos que esse país tem, tanto dos
ativos naturais – da riqueza natural, de minérios, do petróleo, da
biodiversidade –, como do patrimônio que foi construído às custas do próprio
esforço do povo trabalhador. É um projeto de desconstrução do Estado de
bem-estar social, que ainda era pequeno.
Então, parece que não é um projeto, mas ele avançou
muito, com a desconstrução da legislação trabalhista no Brasil, com o projeto
que está em curso de desmonte
do sistema de aposentadoria, do SUS, da rede de educação. A situação é
dramática.
O presidente chegou a dizer que não existe fome no
Brasil, justamente em um momento de desemprego elevado e de aumento da pobreza,
que já atinge 21% da população, segundo o Banco Mundial. Já se fala inclusive
em volta do Brasil ao Mapa da Fome da ONU.
Como você avalia essa postura do
presidente diante desse cenário?
Esse governo questiona todos os dados e evidências
científicas, tudo que é sólido desmancha no ar. Não tem desmatamento, não tem fome… E usa as redes sociais
e o WhatsApp para se contrapor a evidências científicas. A gente passou 500 anos com a população em situação de
fome, era uma marca do país, e isso não acontecia porque o Brasil não tinha
comida, acontecia apesar de o Brasil ser um grande produtor de alimentos. Nada
justificava a população no Brasil viver desnutrida, ter um alto índice de
mortalidade infantil causado por desnutrição, mortalidade materna…
O governo Lula colocou a fome como a sua principal
agenda, e isso foi um dos principais elementos que nos permitiram sair do Mapa da Fome, em 2014, segundo a própria
ONU. O Brasil tinha alimento, mas o povo não tinha renda para acessá-lo. Como
você gera renda e cria essa possibilidade de acesso? Criação de 21 milhões de
empregos, construção de uma política de salário mínimo, Bolsa Família, inclusão
produtiva, fortalecimento da agricultura familiar, merenda escolar,
participação da sociedade civil no Consea [Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional].
Tudo isso foi por terra. O combate à fome saiu do nome do
Ministério, saiu da agenda, o Consea foi destruído, as políticas de segurança
alimentar e nutricional foram eliminadas da agenda e a população pobre saiu do
orçamento. E este ano nós vamos ver o aumento de novo da pobreza. Os dados do
IBGE mostram que a pobreza no Brasil caiu de 42 milhões de pessoas em 2003 para
14 milhões em 2013. Hoje nós já estamos voltando para um patamar de 22 milhões.
Todos os fatores que levaram o Brasil a sair do Mapa da
Fome já foram desconstituídos, então é óbvio que o Brasil está voltando ao
Mapa da Fome. Você passa 15 anos tentando combater a pobreza e rapidamente, em
três anos depois do golpe, a pobreza está aí de volta nos patamares de 2006.
Realmente, é dramática a situação.
Mesmo depois desses anos todos de programas sociais, ainda existe muito preconceito, principalmente com o Bolsa Família. O que você diria para as pessoas que criticam o programa?
Eu acho que, antes de falar sobre o Bolsa Família e
sobre as evidências científicas que nós temos mostrado o impacto dele, é
importante entender que o que vinha sendo construído no Brasil era uma política
complexa, uma ampla rede de proteção social.
Você tinha no Brasil uma rede de proteção baseada em
políticas contributivas, uma ampla rede de aposentadoria, seguro desemprego, e
você tinha a política de assistência social para o idoso ou à pessoa com
deficiência pobre, pelo BPC [Benefício de Prestação Continuada]. Mas as
famílias pobres ainda na ativa, com filhos, não tinham cobertura nenhuma. O
Bolsa Família vem complementar essa rede.
Agora eles estão acabando com a aposentadoria e com o
BPC, e o Bolsa Família não vai segurar isso. Nós vamos ter, nos próximos 10, 20
anos, o impacto do que está sendo essa desorganização da rede de proteção
social. Só para ter uma ideia, hoje nós temos em torno de 5 milhões de famílias
que não têm nenhuma outra renda, em que os filhos e netos sobrevivem porque o
avô ou a avó é aposentado.
Tem muita gente que fala que o Bolsa Família leva as
pessoas a pararem de trabalhar. Em média, o benefício é R$ 180 por família;
ninguém deixa de trabalhar e ganhar um salário mínimo para ganhar esse valor.
Só que ele permite que a família mantenha um padrão alimentar mínimo, que
permitiu reduzir em mais de 60% a mortalidade infantil causada por desnutrição
e em 48% a mortalidade infantil causada por diarreia.
Hoje a gente tem como comprovar que reduziu hanseníase, tuberculose,
mortalidade materna. Nós temos milhares de artigos científicos publicados
em revistas internacionais mostrando o impacto de políticas de transferência de
renda, o impacto que isso tem na desnutrição. Inclusive eu acho que o Bolsa
Família é uma prova importante para a gente se contrapor a esse debate de
austeridade fiscal. Cortar a política social, no médio e no longo prazo, é
ineficiente. Cortar o Bolsa Família, a aposentadoria e gastos sociais implica
em aumento em gastos em saúde.
No caso da educação, vai implicar em perdas para o país,
porque reduz produtividade, nós vamos ter uma mão de obra menos qualificada.
Esse corte nos gastos sociais que está sendo implantado no Brasil, no médio e
no longo prazo, vai ter um custo fiscal altíssimo para o país. Não é eficiente
cortar política social.
E educação parece que não é exatamente a
prioridade desse governo. Qual é o impacto desse ataque à educação,
especialmente ao ensino superior, para o futuro do país e para um projeto de
desenvolvimento?
O Brasil fez uma opção ao aceitar a emenda constitucional
que estabeleceu um teto nos gastos sociais. Você congela os gastos na educação,
na saúde e na assistência social por 20 anos independentemente do que acontecer
com o orçamento, do que acontecer no país, e justamente quando a população mais
precisa.
É exatamente no momento de crise, em que o desemprego
aumenta, que a população mais precisa de suporte na saúde, na educação, na
assistência social, e o governo congelou. Qual o impacto disso? É ter um país
que se empobrece. O impacto vai ser altíssimo para quem planejava ter um país
desenvolvido. O Brasil está voltando, do ponto de vista da sua capacidade
produtiva, a ser um país como era na década de 1970: produtor rural, exportador
de commodities e importador de produtos industrializados.
Estão destruindo a nossa indústria e a capacidade de
retomar a indústria, porque não vamos ter trabalhador qualificado. Por isso que
eu estava dizendo, isso não é um projeto de país do ponto de vista de quem está
pensando em projeto de desenvolvimento. Mas é um projeto para quem está
interessado em rapinar o país. O que está acontecendo é uma rapinagem, uma
pilhagem, uma pirataria.
A gente vive um momento extremamente grave de
ataque ao meio ambiente. As queimadas na Amazônia viraram notícia mundial e
mobilizaram até a cúpula do G-7. Como você vê esse projeto de destruição
ambiental e como isso afeta a vida das pessoas?
Por mais que a gente tivesse todo um desafio do ponto de
vista ambiental, o sinal que o governo dava era de preservar a diversidade.
Agora qual é o sinal que o governo dá? Está autorizado qualquer coisa. É por
isso que o desmatamento disparou.
Em oito meses do governo Bolsonaro o desmatamento aumentou 80%, nós estamos voltando ao mesmo
patamar de 2003, com um ritmo de desmatamento que, ao que tudo indica, coloca
em risco a capacidade da Amazônia de se reconstituir. É muito perigoso, é uma
tragédia, e a gente continua vendo uma omissão.
Eu acho importante a comunidade internacional não dizer
que a Amazônia não é brasileira, porque a Amazônia é nossa, e a gente não pode
confundir o alerta internacional sobre o risco que a gente vive com a ideia de
que a Amazônia é um bem internacional e que portanto pode deixar de ser
brasileiro. É nossa obrigação como brasileiros questionar o que está
acontecendo duramente, reverter esse processo, inclusive para preservar a
Amazônia como sendo nossa.
O governo Bolsonaro está totalmente alinhado
aos Estados Unidos, mas, na crise ambiental envolvendo a Amazônia, o Trump fez
um tweet elogiando o presidente francês, Emmanuel Macron, que estava em uma
disputa direta com Bolsonaro. Você agora vive fora do país, na Inglaterra. Como
o mundo está enxergando o Brasil nesse momento? Qual é o papel do país nessa
disputa?
Eu vivi um período em que, quando a gente viajava, era um
orgulho ser brasileiro. Você chegava nos lugares e mostrava o seu passaporte e
já se abria aquele sorriso. O Brasil se destacava por ter alterado a
postura de combate à pobreza, esse ambiente de se colocar como
protagonista no debate das mudanças climáticas. Hoje as pessoas não falam mal
do Brasil porque existe um carinho muito grande pelo povo, pela cultura,
mas elas falam "nossa, que horror o que está acontecendo”. . Todo mundo
conhecia o Lula como sendo a pessoa que conseguiu liderar o país no combate à
fome, reconheceu a presidenta Dilma como a primeira mulher na Presidência.
Agora é desastroso. Existe um processo de compreensão do
que está acontecendo. Hoje as pessoas conseguem entender que o que estava em
jogo no Brasil com o golpe que derrubou Dilma era reimplantar um projeto
neoliberal e acabar com o protagonismo que o Brasil pretendia como novo player
internacional, criando o Brics, se aliando à Rússia, à China, à África do Sul e
à Índia. E isso incomodou grandes e poderosos. Eu acho que hoje isso passa
a ser compreendido internacionalmente, permitindo inclusive que a gente se
reposicione como esquerda dentro do Brasil e consiga explicar para a população
o que de fato estava em jogo e o que de fato aconteceu.
Geralmente o começo de um governo é um
período que chamam de
lua de mel, mas não houve uma melhora nesses primeiros
oito meses de governo Bolsonaro e o país continua em crise. Quais são as
perspectivas que você vê para a economia do Brasil?
Nenhum dos movimentos feitos por esse governo poderá ter
impacto em indicadores econômicos. Para quem achava que a mudança na CLT ia
ajudar a retomada da economia, não aconteceu. O que eles estão fazendo é a
destruição da rede de proteção social. Todos os sinais são de piora na nossa
economia.
Mesmo do ponto de vista do agronegócio, nós estamos
destruindo as nossas pontes internacionais, porque a nossa produção vai ser
marcada como uma produção que cresce à base do desmatamento e da destruição da
biodiversidade, e vai nos levar a perder crescentemente valor econômico.
O desemprego vai continuar aumentando e a perda da renda
da população com o aviltamento de salários só vai levar a perder capacidade de
mercado interno. Se a população não vai ter como comprar, se aumenta o
desemprego e reduz a renda, o que vai mover a economia? Internacionalmente não
vai mover e internamente também não.
Eu acho que os sinais são muito graves. E esse é um
governo de uma lua de mel marcada pelo ódio. Não teve lua de mel, teve lua de
fel. Só é destilado ódio, ódio, ódio, jogando brasileiros contra brasileiros.
Isso não vai levar a lugar nenhum, nem do ponto de vista econômico nem do
ponto de vista social, infelizmente.
Edição: Luiz Felipe Albuquerque – Brasil de Fato
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