Templos indígenas da Amazônia estão ameaçados
O aumento da geração de energia hidrelétrica
no Brasil ameaça sítios arqueológicos e lugares sagrados para a cosmologia de
etnias da floresta amazônica.
Por Luna Gámez* – Le Monde Diplomatique Brasil
Incipientes estudos arqueológicos nas bacias dos rios Juruena, Aripuanã e Teles Pires, na região sul da floresta Amazônica, revelaram a presença de mais de 80 geoglifos, imensas marcas em formas geométricas que aparecem quando o desmatamento desnuda a terra. Estes desenhos, junto com os cemitérios indígenas, sublinham a evidência de que uma população muito mais densa do que o até agora imaginado habitou estas áreas antes da colonização. “Entender o passado é importante para valorizar o lugar e pensar num plano mais sustentável para a gestão atual”, adiciona Almeida”.
Flauta
tradicional Rikbaktsa elaborada com osso de gavião. Foto: Ana Caroline de Lima/OPAN
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Por Luna Gámez* – Le Monde Diplomatique Brasil
10/09/2019
Sob a espuma agitada do conjunto de cachoeiras que formam
o Salto Augusto, localizado no rio Juruena, estado de Mato Grosso, emergem as
cosmologias das etnias Rikbaktsa, Apiaka e outros grupos indígenas não
contatados. Este enclave, que forma parte do Parque Nacional do Juruena, abraça
diversos vestígios arqueológicos ainda pouco estudados e possui uma diversidade
ecológica que está sob ameaçada do projeto de construção da hidrelétrica do
Salto Augusto Baixo, também conhecida como JRN-234b. O Brasil é o segundo
gerador mundial de hidroeletricidade depois da China.
O reservatório da usina do Salto Augusto Baixo, junto com
a de São Simão Alto, se construídas, alagariam 40 mil hectares do Parque numa
região situada entre os municípios mato-grossenses de Apiacás, Cotriguaçu e
Nova Bandeirantes, além de Apuí, no Amazonas, segundo as previsões de WWF
Brasil. Embora os processos estejam atualmente bloqueados pela complexidade
ambiental, ambas formam parte da centena de hidrelétricas que estão sendo
projetadas ao longo do rio Juruena, para aproveitar o potencial hídrico de um
dos cursos fluviais menos explorados da Amazônia. O projeto soma um total de
138 usinas, 32 delas já em funcionamento e outras 10 em construção.
Quedas do
Salto Augusto, na margem esquerda do Rio Juruena. Foto: Guilherme Ruffing/OPAN
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O lugar sagrado está sendo cobiçado por
interesses econômicos
Os Rikbaktsa são
um dos povos ancestrais que habitam a bacia do Juruena. Depois de serem quase
exterminados no período da ditadura militar, hoje alcançam uns 1.500
integrantes, segundo os dados oficiais, e uns 2.500 de acordo com as
estimativas das lideranças da etnia. Alguns anciões contam que os Rikbaktsa
nasceram de um peixe que mora nas águas doces amazônicas chamado cará, Geophagus
brasiliensis. Outras mitologias narram histórias de separação dos ancestrais
por conta de um menino transformado em anta. No entanto, a base da cosmologia
deste grupo indígena não se concentra na origem da sua etnia e sim nas suas
práticas rituais atuais, que foram ensinadas pelas forças sagradas do fundo das
águas do Salto Augusto.
Segundo a lenda, quando as fronteiras não eram mais nada
do que acidentes geográficos, os Rikbaktsa se deslocaram ao longo da bacia do
Juruena. Num dos pernoites da viagem, um grupo instalou seu acampamento perto
das cachoeiras do Salto Augusto, de onde emanaram ritmos de instrumentos de
vento enquanto os peixes mostravam suas danças da água. Os indígenas aprenderam
suas coreografias e elaboraram suas próprias flautas artesanais, os dois
elementos centrais do que viria a ser o culto central deste povo: a Festa dos
Peixes.
Juarez Paimy, indígena e professor da língua Rikbaktsa,
não poupa nenhum detalhe para explicar aos mais jovens a história da cosmologia
do seu povo, que ainda hoje frequentam o salto das cachoeiras onde cultivam a
conexão com algumas das suas ancestralidades. “Nós aprendemos os nossos rituais
dos peixes”, repete em várias ocasiões Paimy, sentado no sofá vermelho da sua cabana
rodeada pelo canto noturno das cigarras. “O Salto Augusto é sagrado para o
nosso povo porque lá moram nossos espíritos”, explica.
A voz dele se resseca, o brilho dos seus olhos se apaga,
reacomoda as almofadas também vermelhas, coloca seus pés no chão de madeira e
aproxima seu rosto dos ouvintes. “Há um tempo que descobrimos que existiam uns
interesses de construir uma barragem no nosso rio, perto do Salto Augusto, e
que poderia acabar com as cachoeiras”, anuncia este professor indígena em
referência ao projeto JRN-234b.
Quando questionado sobre como ele soube do plano da
usina, Paimy relata que encontrou um relatório da Empresa de Pesquisa
Energética (EPE) na internet. “Eu quis confirmar os boatos e me deparei com 500
páginas numa linguagem técnica muito difícil de entender”, afirma. “Por que não
vem nos informar com clareza dos lugares que estariam ameaçados de alagamento,
dos recursos que perderíamos ou, inclusive, dos benefícios que segundo eles
obteríamos?”.
De acordo com este membro da etnia Rikbaktsa, que mora
entre pés de mandioca que parecem querer tocar o céu, o alagamento das áreas
próximas prejudicaria seu sustento de vida que vem da terra e do rio e, o mais
preocupante para ele, destruiria seu lugar sagrado. “Primeiro veio o turismo - diz
em referência a uma pousada próxima das cachoeiras - e agora a hidrelétrica.
O Salto Augusto está sendo cobiçado por interesses
econômicos mas este é um lugar de conhecimento sagrado para todos nós indígenas
desta região”. A placidez de quem adora receber convidados em casa com uma
chicha de batata doce -suco típico dos Rikbaktsa- se apaga. Os dentes
sorridentes somem numa expressão agora mais tensa do que triste, e Paimy pede
aos mais jovens uma ajuda para consertar seu computador quebrado. “Precisamos
desses instrumentos para nos informar e ficar preparados”.
Perante ao desejo de informação das populações que moram
nas regiões onde certas usinas hidrelétricas poderiam ser construídas, Carolina
Fiorillo Mariani, analista de pesquisa energética da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responde que “todos os processos (de
planificação de uma usina) tem uma fase de orientação metodológica para
informar aos atingidos”. Mas esclarece que atingidos são só aqueles “que terão
suas terras alagadas pela barragem”. A EPE é uma empresa pública vinculada ao
Ministério de Minas e Energia que participa na fase inicial de planificação do
setor energético.
A história de restos arqueológicos e
geoglifos
O Salto Augusto é também templo sagrado dos Apiaká, um povo
que ainda luta pela demarcação da sua terra e pelo reconhecimento da sua
identidade indígena. Seus quase 1.000 habitantes estão distribuídos entre o
norte de Mato Grosso e sul do Pará, dispersados pelas frentes de ocupação da
Amazônia. Desde tempos remotos, as rochas que rodeiam as cachoeiras são o
cenário dos rituais de entrada desses indígenas na fase adulta, exatamente no
mesmo lugar onde os antigos guerreiros da etnia vinham se purificar após
enfrentamentos com outros grupos.
“Ali que eles, Apiaká, fazem suas perfurações corporais
para colocar suas ornamentações, como brincos, e enfeitam os corpos com
pinturas antes dos seus rituais”, detalha a antropóloga Juliana de Almeida, que
realizou uma expedição de reconhecimento no lugar junto com a organização
Operação Amazônia Nativa (OPAN). Os resultados foram publicados no livro “Paisagens Ancestrais do Juruena”, editado pela OPAN.
Nas margens do Juruena, na altura das cachoeiras do Salto
Augusto, a expedição confirmou a existência de pinturas rupestres em abrigos
rochosos, assim como objetos de cerâmica ainda pouco estudados pela
arqueologia. Os indígenas Apiaká reivindicam uma relação histórica com estes
artefatos e acreditam que as pinturas próximas às cachoeiras tenham sido feitas
pelos grupos indígenas não contatados que moram na frondosidade da floresta,
segundo relata Almeida.
Ela destaca que estes são objetos chaves para conhecer a
história dos assentamentos humanos nessa parte da bacia do Juruena. “A presença
de populações indígenas deve ser considerada no projeto de construção da
hidrelétrica [JRN-234b]. Qualquer alteração do Salto Augusto mudaria a memória
e a perspectiva de vida dos Rikbaktsa e dos Apiaka, sem considerar os impactos
dos grupos sociais isolados que é muito difícil de dimensionar”.
Os indígenas
Rafael e Gertrudes Rikbaktsa destacam importância da floresta e das plantas
medicinais. Foto: Luna Gámez
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Incipientes estudos arqueológicos nas bacias dos rios Juruena, Aripuanã e Teles Pires, na região sul da floresta Amazônica, revelaram a presença de mais de 80 geoglifos, imensas marcas em formas geométricas que aparecem quando o desmatamento desnuda a terra. Estes desenhos, junto com os cemitérios indígenas, sublinham a evidência de que uma população muito mais densa do que o até agora imaginado habitou estas áreas antes da colonização. “Entender o passado é importante para valorizar o lugar e pensar num plano mais sustentável para a gestão atual”, adiciona Almeida”.
Flexibilização do licenciamento ambiental
“Existe necessidade de expansão de geração porque, embora
pouco, o país está crescendo e vamos ter necessidade de ampliação de energia”,
declara Guilherme Fialho, consultor técnico da EPE, que sublinha a preocupação
com a diversificação de fontes energéticas. A hídrica é, com diferença, a
primeira fonte de energia no Brasil: 64% do total da energia gerada provem de
hidrelétricas, enquanto as termelétricas geram 24,6%, as eólicas 9%, as solares
fotovoltaicas 1,3% e as termonucleares 1,2%. O pais possui 1.352 hidrelétricas
em funcionamento, 35 em construção e outras 110 em fase de planejamento, segundo os dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), consultados
no 20 de agosto.
No entanto, a antropóloga Almeida faz referência à
ineficiência de muitas das usinas já instaladas e questiona: “que sentido faz
construir uma obra de grande porte numa área onde, na margem direita do rio tem
indígenas e na esquerda um Parque Nacional? Não estamos falando de um serviço
que iria atender a demanda de consumo local, essa energia é para outros fins,
não é para as populações da região”.
A EPE já tinha concluído o primeiro estudo da usina que
atingiria o Salto Augusto há mais de uma década, no entanto, o projeto foi
eliminado do Plano Decenal de Expansão de Energia 2023 (PDE) no momento da sua
elaboração em 2014 devido à “morosidade do processo”. Naquele momento, Mauro
Armelin, superintendente de conservação de WWF-Brasil, questionou o que parecia
uma grande conquista pois considerava que o argumento não deveria ser a demora
para obter o licenciamento ambiental e sim a complexidade ambiental do lugar.
“O Juruena é um dos maiores parques do país e está
localizado num mosaico de áreas protegidas, ou seja, é uma região fundamental
para frear o desmatamento, a ocupação desordenada e a grilarem de terras”,
declarou Armelin em defesa de uma região que considera de “extrema importância
biológica”. Segundo a WWF, as barragens do Salto Augusto e de São Simão
“colocariam em risco 42 espécies animais ameaçadas que só existem naquela
região”, além de bloquear os cursos migratórios de alguns peixes.
Potencial hidrelétrico da região
Embora o projeto JRN-234b não seja citado explicitamente
entre as usinas preferenciais do mais recente PDE 2027, o documento destaca o potencial hidrelétrico do norte do país para a
ampliação energética na próxima década mas citando as sensibilidades de cunho
ambiental e a presença de populações indígenas na região. A flexibilização das
leis ambientais e a inclinação do atual governo pela exploração de recursos
naturais pode dar um impulso à centena de usinas projetas para a bacia do
Juruena.
No começo do novo governo em janeiro deste ano, o
ministro de Meio Ambiente Ricardo Salles prometeu celeridade com os
licenciamentos ambientais e o presidente Jair Bolsonaro especificou que reduziria os prazos de licitação das
pequenas centrais hidrelétricas (PCH). “Até ano passado levava em média dez
anos para uma licença, é um absurdo isso aí […]. Em dois ou três meses é mais
do que suficiente”, declarou.
Cada projeto de usina realiza seu estudo de impacto
ambiental e, se for pertinente, seu estudo de componente indígena, mas de forma
isolada e sem considerar o prejuízo multiplicado pelo acúmulo de barragens num
mesmo rio, neste caso o Juruena. Elisângela Medeiros, supervisora de meio
ambiente da EPE, explica que é de responsabilidade da Agência Nacional de
Eletricidade (ANEEL) realizar uma valoração integrada para decidir quantas
usinas podem ser instaladas numa bacia hidrográfica.
Estes mesmos mecanismos, que até agora tem ignorado a
importância dos lugares sagrados, permitiram a construção de barragens
consecutivas, além de um complexo de hidrelétricas, no rio Teles Pires, no estado
de Mato Grosso, próximo ao Juruena. Alguns empreendimentos já têm sido responsáveis da
destruição de elementos chave para a cosmologia indígena.
Na etnia dos Enawenê-nawê, os seus espíritos podem ter se
vingado após a destruição de alguns lugares sagrados, pois pouco depois de
construir as usinas foram morrendo os mestres de canto desta etnia, segundo
conta a antropóloga Almeida. “A partir do momento que se alaga um dos lugares
sagrados de uma etnia indígena, se alaga uma parte da sua história. Para eles,
não é só um lugar da natureza, é a sua Notre Dame, o seu templo”, destaca ela.
*Luna Gámez é jornalista.
Esta reportagem foi publicada em 6 de setembro de 2019 no site da Le Monde Diplomatique Brasil e teve apoio da Rainforest
Journalism Fund da Pulitzer Center, em parceria com Proteja Amazônia.
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