Igrejas devem mais de R$ 460 milhões ao governo
Mais de 1.200 entidades religiosas têm
dívidas com a Receita; Bolsonaro se reuniu duas vezes com fundador da igreja
que mais deve e disse querer “fazer justiça para os pastores”.
Valdemiro Santiago é o líder da segunda igreja que mais deve ao governo. Foto: Marcos Corrêa/PR |
Por Bruno
Fonseca – Agência Pública
17/12/2019
Quase meio bilhão de reais – essa é a quantia que
entidades religiosas devem à Receita Federal. O levantamento, realizado pela Agência
Pública por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), revela que 1.283
organizações religiosas devem R$ 460 milhões ao governo. Desse total, 23
igrejas possuem dívidas de mais de R$ 1 milhão cada uma.
A maior devedora é a neopentecostal Internacional da
Graça de Deus. A igreja deve, sozinha, mais de R$ 127 milhões, segundo valores
apurados pela Receita em agosto deste ano. Isso é mais de um quarto de todas as
dívidas de entidades religiosas com a União. E a dívida da igreja vem
aumentando: era de R$ 85,3 milhões em 2018, segundo reportagem da Folha de S.Paulo.
O fundador da Internacional, o missionário Romildo
Ribeiro Soares, reuniu-se com o presidente Jair Bolsonaro ao menos duas vezes
este ano: em agosto e em novembro. No primeiro dos encontros, estavam presentes
o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, e o ministro da Economia, Paulo
Guedes. Na data, o presidente defendeu simplificar a prestação de contas de entidades religiosas e disse querer “fazer justiça para os pastores”. Nos dois
encontros, o presidente Bolsonaro recebeu também o filho de R. R. Soares, o
deputado David Soares (DEM-SP).
A igreja de RR Soares deve R$ 127 milhões à União; religioso já se reuniu duas vezes em 2019 com Bolsonaro. Foto: Igreja Internacional da Graça de Deus/reprodução |
Fundada em 1980, no Rio de Janeiro, a Internacional da
Graça de Deus é uma dissidência da Universal – seu criador, o missionário
Romildo Ribeiro Soares, é cunhado de Edir Macedo. Após início modesto no centro
da capital fluminense, a igreja se expandiu pela Baixada Fluminense, abriu
templos em todo o país e atualmente tem ministérios na Argentina, Peru, Uruguai,
Paraguai, Chile, Estados Unidos, México, Portugal, Espanha, França, Inglaterra,
Japão e África do Sul.
A maior parte da dívida da Internacional é
previdenciária, isto é, de valores não pagos pela igreja sobre a folha de
pagamento dos seus funcionários, como a contribuição patronal ao Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS). E, segundo decisões recentes da Justiça, os
próprios pastores da igreja podem ser incluídos nesse grupo de funcionários
sobre os quais a Internacional deve impostos.
Em abril deste ano, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª
Região (TRT) reconheceu o vínculo empregatício de um ex-pastor da Internacional com a igreja. Por unanimidade, o tribunal decidiu que o antigo ministro de
confissão religiosa da Internacional deveria ter a carteira de trabalho
assinada pela igreja. Ele recebia salário de R$ 2 mil para ministrar cultos,
evangelizar em praças e prestar assistência espiritual para a comunidade, entre
outras atividades.
Na decisão, o tribunal apontou que, além de trabalhar
subordinado à direção da igreja, o pastor precisava cumprir metas mensais de
arrecadação – sob o risco de ser excluído da organização caso não atingisse os
valores. Além de reconhecer o vínculo empregatício ao longo de mais de oito
anos de trabalho para a Internacional, a Justiça determinou que a Igreja arque
com férias não pagas, 13º salário, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS), horas extras e outros direitos trabalhistas. A ação foi enviada ao
Tribunal Superior do Trabalho (TST) em agosto.
A Pública procurou a igreja, que não respondeu até
o fechamento da matéria.
A segunda entidade religiosa que mais deve à Receita
também é evangélica e neopentecostal: a Igreja Mundial do Poder de Deus,
fundada pelo apóstolo Valdemiro Santiago, outro ex-pastor da Igreja Universal.
A Mundial deve mais de R$ 83 milhões à Receita. Desse total, R$ 5,7 milhões são
apenas de contribuições não pagas de FGTS pela organização.
Já a terceira maior devedora é a católica Sociedade
Vicente Pallotti, com sede em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A entidade
deve mais de R$ 61 milhões à União, R$ 59 milhões de contribuições
previdenciárias.
A reportagem buscou ambas as entidades, que não
responderam até o momento.
Com dívidas milionárias, arrecadação de
igrejas cresceu 40% em dez anos
Igrejas e organizações evangélicas são a maioria entre as
entidades religiosas que devem à Receita – elas representam mais de 87% do
total. Em seguida, vêm grupos católicos, com cerca de 6%. A dívida das
entidades evangélicas também é maior: juntas, elas devem mais de R$ 368
milhões, cerca de 80% do total em dívidas. As católicas reúnem cerca de 18% do
valor devido.
Assim como ocorre com a Igreja Internacional da Graça de
Deus, a maior parte das dívidas das entidades religiosas com a Receita é
previdenciária: mais de 82% da dívida total das organizações se refere a
valores não pagos em relação aos seus funcionários, como a contribuição ao
INSS. Isso coloca as igrejas em um padrão diferente das dívidas das empresas
não religiosas, nas quais a maior parte dos débitos não é previdenciária, como
o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica e a Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social (Cofins).
Apesar das dívidas, a arrecadação das instituições
religiosas vem crescendo ano após ano. Segundo dados obtidos pela Pública,
também por meio da LAI, a arrecadação dessas entidades bateu R$ 674 milhões em
2018. Em dez anos, a quantidade de dinheiro que as igrejas arrecadaram cresceu
cerca de 40%, já corrigida a inflação no período.
A principal fonte de renda das entidades religiosas no
país tem sido a doação de particulares e transferências governamentais, como,
por exemplo, contratos para comunidades terapêuticas e obras de assistência
social – segundo o Globo, em 2019 o governo destinou R$ 153,7 milhões a centros terapêuticos religiosos. De acordo com dados da Receita, entre 2006 e 2016 mais
da metade de tudo que igrejas arrecadaram veio dessas duas fontes – a Receita
não especificou quanto provém de cada origem. Além das doações e contratos com
o governo, as entidades religiosas têm ganhado dinheiro com a venda de bens e
serviços e aplicações financeiras.
A quantidade de entidades registradas na Receita também
tem crescido anualmente. Em 2018, o número de instituições religiosas no país
passou de 25 mil. Em 2005, não chegavam a 15 mil.
Igrejas tentaram anistia de dívida, apesar de
já contarem com uma série de imunidades
A dívida milionária das entidades religiosas com o
governo quase teve um fim em 2017. Na época, a bancada evangélica havia
conseguido incluir as igrejas nas organizações que teriam anistia de dívidas,
na votação da Medida Provisória do Refis.
Segundo reportagem do UOL, foi o deputado Alberto Fraga
(DEM-DF) o responsável por acrescentar igrejas no texto da medida. “Fiz isso
porque os deputados evangélicos do meu partido me pediram e eu concordo com a
ideia. Se as empresas poderiam aderir ao Refis, não vejo motivos para que as
igrejas não possam”, disse o deputado à reportagem. A cláusula, contudo, foi derrubada pelo Senado.
Neste ano, o governo Bolsonaro flexibilizou a prestação de contas de entidades religiosas. Igrejas que arrecadem menos de R$ 4,8
milhões não precisam mais enviar dados financeiros à Receita pela Escrituração
Contábil Digital (ECD). Antes, qualquer igreja que arrecadasse mais de R$ 1,2 milhão
precisava enviar seus dados dessa forma.
As entidades religiosas já possuem uma série de
benefícios tributários, como explica o professor de direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) Paulo Roberto Coimbra.
O primeiro deles é a imunidade de impostos: “A
Constituição prevê uma imunidade de impostos para templos de qualquer culto. Os
templos não pagam IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano]. Se prestarem
algum tipo de serviço, normalmente de assistência social ou humanitária, esses
serviços não estão sujeitos ao Imposto Sobre Serviços, o ISS. E as arrecadações
de dízimos e ofertas destinadas a essas entidades também não estão sujeitas ao
imposto sobre a renda”, explica.
Além disso, igrejas podem se beneficiar de imunidade
tributária caso se enquadrem como entidades sem fins lucrativos e tenham ações
de assistência social e educação, ou também se forem enquadradas como entidades
beneficentes. Esses “benefícios” não são automáticos, e as igrejas precisam
cumprir uma série de requisitos, como, por exemplo, não remunerar seus
dirigentes.
“Quando essas entidades deixam de atender os requisitos
previstos em lei, aí sim essa imunidade não é reconhecida e os tributos que
deixaram de ser pagos são cobrados pela União”, acrescenta Coimbra. Parte das
dívidas inscritas na União é justamente de igrejas que consideram cumprir esses
requisitos, mas são contestadas pela Receita e pela Procuradoria da Fazenda.
Um terceiro ponto é que a legislação prevê isenção de
tributos para ministros de organizações religiosas que vivam em “razão da fé”,
isto é, que recebam apenas uma ajuda de custo da igreja para manter os custos
básicos de vida. “Não é toda pessoa que trabalha em uma igreja que teria essa
isenção. Se um religioso recebe valores que são notadamente muito superiores
àqueles necessários à sua subsistência, aí nós podemos ter questionamentos”,
define Coimbra.
Dessa forma, os R$ 460 milhões de dívidas de entidades
religiosas com a Receita são apenas as que não foram enquadradas em nenhuma
dessas três situações. E, como ressalta a professora Tathiane Piscitelli, da
Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, as organizações
podem recorrer da decisão da Receita de inscrever suas dívidas no cadastro,
além da possibilidade de brigar na Justiça para ampliar a imunidade em relação
às atividades das igrejas.
“Há um debate sobre a conveniência de se manter essa
imunidade sobre os templos. Há quem aponte que ela protege a liberdade religiosa,
mas há entidades que têm estrutura empresarial e não são tributadas. Muito
facilmente você constrói uma narrativa que a televisão ou outra atividade é
essencial para a propagação da religião. E é exatamente esse o ponto de quem
critica a imunidade, porque ela pode abrir brecha para situações de abuso”,
avalia.
Tathiane cita o embate jurídico entre a Igreja Universal
(que deve R$ 222 mil à Receita) e o estado de São Paulo e a Receita: a igreja
foi contra o pagamento de quase R$ 2 milhões de ICMS e outros impostos sobre a
importação de pedras de Israel para construção do Templo de Salomão, no centro
de São Paulo. “Houve um grande debate no Judiciário e o STJ reconheceu a
existência da imunidade porque se destinava à construção do templo”, conta. A universal
teria gasto cerca de R$ 400 milhões com o Templo de Salomão.
Como uma dívida entra no cadastro do governo
Uma dívida entra na lista ativa da União após o
responsável pelo débito não pagar o valor espontaneamente, o que leva a
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a entrar com processo de execução
fiscal. Enquanto não é paga, a dívida é atualizada mensalmente pela taxa Selic.
Pessoas e empresas que estão no cadastro de dívidas não
conseguem certidão de regularidade, o que as impede de tomar financiamentos
públicos. A cobrança eventualmente chega à Justiça, que pode penhorar bens dos
devedores, como imóveis e veículos, para cobrir o valor devido.
Colaboraram: Caroline Ferrari, Raphaela
Ribeiro e Rute Pina (Agência Pública).
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