Ingresso de mulheres indígenas no ensino superior cresce 620% em 10 anos
Número aumentou após instituição da Lei de
Cotas, em 2012, mas estudantes ainda enfrentam desafios econômicos e sociais
para concluir os estudos.
Por Vitória
Régia da Silva, Maria Martha Bruno e Flávia Bozza Martins* - Gênero e Número
27/12/2019
A viagem de Val Munduruku de sua casa, em
Jacareanga (PA), até Madri foi longa e cansativa. Neste mês, na capital da
Espanha, ela se juntou a outros jovens que se tornaram protagonistas do debate
sobre as mudanças climáticas na 25ª Conferência do Clima (COP 25) da Organização
das Nações Unidas (ONU), que terminou no domingo (15). Aos 23 anos, a estudante
de Gestão Pública da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) se prepara
para, em suas palavras, “trazer para os povos da floresta políticas públicas de valorização do desenvolvimento sustentável, bem como conhecimento dos direitos
das populações tradicionais”.
Val Munduruku (de cocar) em mesa na COP 25, em Madri. Foto: Rosa Casteñeda Prado (Plant-for-the-Planet) |
A estudante faz parte das mais de 7 mil mulheres
indígenas que ingressaram em instituições de ensino superior em 2015, segundo
levantamento da Gênero e Número com dados do Censo da Educação
Superior. Os números mostram que o número de indígenas ingressantes saltou
nos últimos anos, passando de 2.780 em 2009 para 17.269 em 2018, último ano
contabilizado pelo levantamento, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O número de mulheres como Val em
2018 cresceu 620% em relação a 2009, primeiro ano em que a variável cor/raça
passou a ser contabilizada. O crescimento entre os homens foi de 439%. A
partir de 2014, elas se posicionaram como maioria entre o total de ingressantes
indígenas e assim se mantiveram até 2018, representando 52%.
O dado positivo contrasta com um ano particularmente
difícil para os povos indígenas no país. O número de lideranças indígenas
mortas em conflitos no campo em 2019 foi o maior em pelo menos 11 anos, segundo dados preliminares da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Das 27 pessoas assassinadas em conflitos no campo este ano, sete eram líderes
indígenas, contra dois em 2018, de acordo com a entidade. Só no começo deste
mês, três ativistas indígenas foram mortos no país; dois do povo Guajajara
foram assassinados e outros dois ficaram feridos durante um atentado no dia 7
de dezembro, no Maranhão. O ativista Humberto Peixoto Lemos, da etnia Tuyuca,
morreu no hospital após ser agredido a pauladas no dia 2 do mesmo mês, no
Amazonas.
“A universidade me abriu várias oportunidades. Com o
ingresso, me dei conta de problemáticas que enfrentamos todos os dias como
sociedade em geral e dentro das comunidades indígenas. E isso só foi possível
depois do acesso à universidade e apesar das dificuldades que todos nós
indígenas temos ao nos deparar com a vida acadêmica”, conta Val Munduruku. Ela
é a primeira pessoa de sua família a entrar em uma universidade. Além de
estudante e engajada na luta ambiental, ela também é ativista pelos direitos
das mulheres. Parte de uma família de seis irmãos que vive em Alter do Chão,
distrito do município de Santarém (onde não há curso superior), ela ingressou
na instituição pelo Processo Seletivo Especial Indígena.
Cotas raciais e processos seletivos especiais
O primeiro salto no ingresso se deu entre 2013 e 2014,
quando os indígenas passaram de 3.876 para 9.018. Em 2015, os números também
registram aumento significativo e em 2016 atingiram o maior patamar, com 26.062
estudantes ingressantes. O número, no entanto, caiu desde então e em 2018
chegou a apenas 17.269. Questionado pela reportagem, o Ministério da Educação
não respondeu por que houve tal queda.
O avanço registrado desde 2009 representa um aumento na
proporção de indígenas em comparação com o total de estudantes universitários.
Em 2016 e 2017, a participação chegou a 0,8%, porém em 2018 diminuiu para 0,5%.
Estas taxas, entretanto, representam um marco, já que superam a proporção de
indígenas em relação à população brasileira, que é de 0,4%, segundo o Censo
2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo Eunice Dias de Paula, doutora em Letras e
Linguística pela Universidade Federal de Goiás e membro do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi), a Lei das Cotas, aprovada em 2012, e vestibulares específicos para indígenas são
os principais responsáveis por esse salto, pois favorecem o ingresso de pessoas
indígenas em qualquer curso universitário.
A lei dispõe sobre o ingresso nas universidades federais
e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e sobre a reserva
de vagas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas, e para pessoas com
deficiência, estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas e estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior
a 1,5 salário mínimo per capita.
Os processos seletivos especiais para estudantes
indígenas, que têm a proposta de promover a inclusão social e
étnica destes povos, já acontecem em diversas instituições de todo o
Brasil, como a Federal do Oeste do Pará (Ufopa), a Universidade Federal de
Pelotas (UFPel) e a Universidade Federal de Roraima (UFRR), entre outras. A
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aplicou a segunda edição do
vestibular indígena neste ano para 1,6 mil candidatos.
Cris Pamkararu, que está no segundo ano do doutorado em
Antropologia no Museu Nacional no Rio de Janeiro, não foi beneficiária das
cotas raciais para indígenas durante sua graduação, porque na época ainda não
existia a legislação federal. Mas, devido aos avanços das ações afirmativas que
se estendem à pós-graduação em algumas universidades do país, ela conseguiu
fazer o mestrado e doutorado nessa área com as cotas.
Pamkararu é da etnia Tacaratu e sua aldeia (que fica no
município homônimo, em Pernambuco) é conhecida como Brejo dos Padres, nome em
referência aos jesuítas. Ela fez graduação em Geografia em 2003 no município de
Belém do São Francisco (PE), no Centro de Ensino Superior do Vale de São
Francisco (CESVSP).
“Sempre fomos objetos de pesquisa. Somos muito presentes
na ciência brasileira, que usou nossos corpos e nosso sangue para pesquisas na
genética e na anatomia humana. Mas ainda somos tão invisibilizados nesse
espaço. Nós nos inserirmos nesse espaço que nos usou, nos destruiu, e que
trabalha constantemente para ignorar a nossa presença. [Ingressar na
universidade] é um projeto de resistência, luta e reivindicação. A
universidade é um espaço nosso”, ressalta Pamkararu.
Ela ainda destaca que as ações afirmativas e processos
seletivos especiais devem ser mantidos e que a eles deve ser agregado o
investimento em qualidade de ensino básico, para garantir uma maior inserção e
permanência da população indígena nas instituições de ensino superior.
Desafios para inserção e permanência
Para Eunice Dias de Paula, que trabalha há mais de 40
anos com educação indígena e atuou no processo de implantação de uma escola
entre os Apyãwa, em Tapirapé (MT), onde trabalha desde 1973 como professora e
assessoria pedagógica, mesmo com as cotas a inserção de pessoas indígenas no
ensino superior tem suas limitações. “Grupos indígenas que estão mais próximos
de centros urbanos têm mais facilidade de ingressarem nas universidades pelas
cotas, mas os povos que moram em regiões mais distantes têm dificuldade de
acesso, porque os custos de deslocamento e moradia são muito altos e
inviabilizam a permanência deles”, destaca.
Outro desafio, segundo Dias de Paula, seria o fato de que
a universidade não é um espaço construído ou pensando para pessoas indígenas:
“As universidades são construídas por lógicas ainda muito ocidentais e
eurocêntricas, e quando uma pessoa indígena consegue ingressar, entra em um
espaço onde é minoria entre os alunos, onde sua língua e sua cultura não são consideradas
e onde cada turma teria, no máximo, um ou dois estudantes indígenas”.
Val Munduruku concorda: “Hoje, é preocupante a realidade
em que nos encontramos em relação à permanência de estudantes indígenas nesses
espaços. Mas este momento isso me fortalece para continuar na luta e não ser a
primeira e única da minha família a entrar em uma universidade pública”.
Uma das medidas do governo federal para evitar a
evasão de instituições federais de ensino superior é o Programa de Bolsa
Permanência (PBP), um auxílio financeiro a estudantes indígenas e
quilombolas e a alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O recurso
de R$ 900 é pago diretamente ao estudante da graduação com o cartão-benefício.
Segundo Val Munduruku, esta verba e outra complementar,
disponibilizada pela própria universidade, são importantes para a sua
permanência na graduação. “Esses auxílios nos ajudam a nos manter na cidade no
período em que estamos cursando nossa graduação, porque não temos tempo de
trabalhar. E, como muitos de nós viemos ‘da base’, não temos as qualificações
que o mercado de trabalho exige, como cursos de informática e inglês. Este
recurso nos ajuda a pagar nossos aluguéis, comida, gás, energia, remédios,
apostilas, transporte, entre outros recursos que precisamos no nosso dia a
dia”.
*Vitória Régia da Silva é repórter, Maria Martha Bruno é
editora e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número.
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