“Artista não precisa baixar o nível para falar com a quebrada”, diz Rincon Sapiência
Aos 34 anos, rapper analisou sua carreira,
revelou influências musicais e comentou sobre o que espera do futuro.
Sobre essa coisa de signo, existem coisas que
te formam enquanto músico? Há uma linha, um eixo, mesmo em um artista que busca
sempre ser múltiplo?
Por Guilherme Henrique – Le Monde Diplomatique Brasil
14/03/2020
Um dos principais nomes do rap nacional, Rincon Sapiência
lançou, no final do ano passado, Mundo Manicongo, seu segundo álbum de estúdio.
Depois do aclamado Galanga Livre (2017), vencedor do prêmio de melhor disco do
ano pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), o MC paulistano
voltou à carga com um disco que encontra na dança um caminho para a celebração
dos corpos negros. “O nosso momento de entretenimento é algo nobre, legítimo”,
diz ao Le Monde Diplomatique Brasil.
"A quebrada tem outros anseios. O rap custou um pouco a entender isso". Foto: Fábio Medina |
Durante a feitura do disco, Rincon Sapiência esteve em
Cabo Verde para gravar o clipe de Onda, Sabor e Cor. “O vídeo mostra
um povo forte, inteligente, bonito, que possui uma série de habilidades e
experiências. É pra acabar com essa ideia tribal, miserável, sobre o continente
africano”, aponta. A produção pode ser conferida abaixo:
Durante a entrevista, o rapper falou sobre influências
musicais – que vão do axé baiano a Michael Jackson -, da potência do corpo
negro ao quebrar padrões eurocêntricos de condição moral, estética e
espiritual, e também sobre como ele enxerga o futuro do rap. “Se entendeu
durante muito tempo que representar a quebrada tinha a ver com um texto que
falava sobre a dificuldade, de morar longe do centro, contas a pagar. Aí você
coloca isso na música porque é a realidade de muitos. Mas dentro dessa
realidade há também aquele namoro acabando, a vontade de transar, de ostentar
um dinheiro, uma roupa que é legal. A quebrada tem outros anseios. O rap custou
um pouco a entender isso”.
Confira a entrevista na íntegra:
Em “Onda, sabor e cor” há um trecho
que diz “parece banal nossa diversão”. Como é produzir música nesse contexto?
Acho que no Mundo Manicongo propus essa ideia da dança
como lugar de celebração. É você ir num baile, numa festa de aniversário. Em um
determinado ponto de vista, isso soa como algo que não é profundo. Mas, na
verdade, tem a ver com as pessoas se encontrarem, dançarem, se sentirem
bonitas, a energia que nós liberamos. Esse verso entra aí. Mesmo com a origem
que nós temos, de onde viemos, com todas as barreiras, o nosso momento de
entretenimento é algo nobre, legítimo e não é banal.
Certa vez, o Mano Brown me disse que as
pessoas faziam o negro se sentir feio. Você acabou de falar sobre beleza. Quão
político é um corpo negro se sentir bonito?
O ponto de vista eurocêntrico aparece de várias formas.
Seja na questão espiritual, moral, há com uma matriz europeia que é vista como
padrão e os demais são exóticos. Quando nós, pretos e pretas nos sentimos
bonitos, a gente se coloca como padrão também. Onda, Sabor e Cor foi
feito em duas ilhas de Cabo Verde, com aquele povo forte, inteligente, bonito,
que possui uma série de habilidades e experiências. É pra acabar com essa ideia
tribal, miserável, sobre o continente africano. Ou seja, é um ato político.
Você já conhecia algum país da África?
Tive a primeira experiência em 2012, quando fui pra
Senegal e Mauritânia. Me ajudou a construir o que veio a ser o Galanga
Livre (2017). Foi um choque, sem dúvida. Por existirem menos barreiras,
especialmente com o idioma, e as semelhanças estéticas, de comportamento, então
foi bom conhecer Cabo Verde. Fiz um show lá que foi quente, me conectei com
pessoas que gostavam do meu trabalho. Toda vez que piso no continente africano
eu viro uma chave que me faz voltar diferente.
Como as questões trazidas da África vão se
diluindo no seu trabalho?
Vou consumindo a música. O que é feito aqui no Brasil
também possui uma matriz africana no DNA. Quando escuto o Brega Funk, vejo uma
semelhança com afrobeats, com reggaeton, a rítmica é muito
parecida. O funk com 130 bpm dá uma sensação, o 150 bpm soa muito mais tribal,
com mais nota, pulsação. Em MG e SP tem o funk 90 bpm, que se parece com o som
feito na Inglaterra, feito por filhos de imigrantes de África. Passei a
perceber que não existe uma diferença muito grande do que é feito no Brasil e
do que é feito em África.
Por onde você começou a ouvir música?
O primeiro passo são os meus pais, com os LP’s,
principalmente com música preta norte-americana: Marvin Gaye, Michael Jackson…
Eu sou de 1985, então minhas memórias são dos anos 90 para frente. O Rap
surgindo como subversivo, com o texto diferente, a gíria e a realidade das
ruas. E também tinha o samba, o pagode 90, com Art Popular, Katinguelê. É
um combo, são as ondas de periferia. Por mais que eu não assumisse, porque o
RAP era muito sisudo, tinha aquilo que vinha da Bahia, com Araketu, Daniela
Mercury, É o Tchan, que estavam muito presente nas quebradas. Quando me vejo
colocando dança no show, entendo que tem a ver com essa formação plural que
tive.
Mundo Manicongo é um álbum mais leve
que Galanga Livre?
Acho que os dois discos têm uma acidez parecida. Pelo Mundo
Manicongo ter mais referências da música contemporânea, ele soa mais pop,
falando de maneira genérica, por mais que não tenham tanto signos da música
pop. A estrutura das canções, o lance de verso, refrão, coisas que
habitualmente o rap não se utiliza tanto. Como artista de rap, propondo esses
sons, há um quê de subversão aí. Pisar no 150 bpm, no pagodão, de rebolar a
bunda… Tudo isso no mesmo pacote torna o álbum denso.
Foto: Fábio Medina |
Acho que é sempre “bagunçado”. Me baseio nos artistas que
eu gosto, que constroem carreiras longevas e que passam por muitos lugares. É
difícil se sustentar fazendo mais do mesmo. Você pode até fazer, achar um lugar
seguro. Mas hoje, com a tecnologia em mãos, com timbres, tudo mais democrático,
o que se pagaria para frequentar um estúdio, dá pra fazer em casa. Tudo isso me
empurra a fazer mais do que já fiz. Quando termino um ciclo, procuro um outro
sabor, e assim vai.
Tem um verso de Primeiro Volante que você
diz: “é um dia de movimento e já vira música nova”. Para além da quebrada, o
que mais te inspira?
A arte, no geral. Já fui mais ao cinema, por exemplo. Sou
admirador do audiovisual enquanto linguagem, da fotografia. Um filme falando
sobre racismo pode aparecer como Infiltrado na Klan ou
em Django Livre, com uma outra linguagem, mas que provoca uma
discussão. Na música, raciocino da mesma forma. Posso falar de algo muito
explícito, às vezes procuro ser mais poético, como no cinema. Leitura é
essencial, por causa das palavras, para fazer bom uso delas. Mas gosto muito da
rua. O lance de estar lá, vivenciar uma história, pegar algo do seu amigo que
te inspira. Estar conectado com as pessoas e vivenciar a rotina delas abre o
meu caminho pra compor.
Fazendo o caminho inverso, como levar pra rua
algo que não seja elitizado, uma mensagem que seja compreensível?
Isso é um desafio, porque em várias esferas da arte, da
cultura, que precisam se conectar com essas pessoas que não acessam tantas
informações, há uma dificuldade de criar um diálogo. Da minha parte, é um
exercício “novo” de como criar minha parada, da forma que eu acredito, com uma
mensagem, e fazer com que isso tenha um diálogo não só com o campo intelectual
padrão. Os de quebradinha são intelectuais também. O que falta para muitos são
experiências, possibilidade de ler isso ou aquilo.
Não significa que para se comunicar com a quebrada você
precise baixar o nível do seu discurso. Por estar perto deles, consigo entender
a loucura da vida, os desgastes. O que eles escutam, o que faz eles dançarem,
tem a ver com saborear boas sensações. Busco estreitar esses laços, mas isso
não é automático. Esse disco tem um caminho pensado em não ser intelectual de
uma forma elitista.
O rap está passando por uma mudança de
discurso para tentar chegar de maneira mais serena? Há uma crítica, mas talvez
mais leve.
Acho que a questão não seja tanto a leveza. Mas se
entendeu durante muito tempo que representar a quebrada tinha a ver com um
texto que falava sobre a dificuldade, de morar longe do centro, contas a pagar.
Aí você coloca isso na música porque é a realidade de muitos. Mas dentro dessa
realidade há também aquele namoro acabando, a vontade de transar, de ostentar
um dinheiro, uma roupa que é legal. A quebrada tem outros anseios. O rap custou
um pouco a entender isso, e a quebrada por sua vez acabou sendo tocada por
outras vias, outros estilos de música. Não é uma ressalva sobre estar certo ou
errado, mas nem tudo que o rap propõe na sua musicalidade e discurso contempla
todos os corações de quebrada.
Você pensa em política ao fazer música?
É tudo muito fluido. Preciso me sentir útil. Tem gritos
que eu já dei fazendo música que era meu sentimento real, daquele momento.
Agora, se eu quiser repetir a dose sem estar com aquele sentimento, se torna
algo com impacto menos forte. Deixo fluir para falar sobre essas coisas, porque
é algo que precisa ser inteligente, não pode ser só fumaça ou raso. Se não for natural,
não falo.
Eu sei que você acabou de lançar um álbum,
mas qual o próximo passo…
Para esse disco?
Não, para a vida.
Tive muita ajuda nesse último trabalho, uma galera muito
boa. Mas fui o arranjador, orquestrei toda a gravação, a maioria das músicas eu
que gravei. Então esse é um disco no qual assumi a produção musical maior do
que o Galanga, que teve parceria do William Magalhães. Quero repetir essa dose
para outros artistas, aumentar minha onda de produtor musical em todas as
esferas possíveis, pode ser no cinema, produzindo outros artistas, fazendo uma
série, um espetáculo ao vivo no teatro. Pretendo dar muito trabalho além desse
segundo disco.
Guilherme Henrique é
jornalista.
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