Como a Lava Jato escondeu do governo federal visita do FBI e de procuradores dos EUA
Deltan Dallagnol e Vladimir Aras não
entregaram nomes de pelo menos 17 norte-americanos que estiveram em Curitiba em
2015 para acordo ilegal e secreto.
Por Natalia Viana, Andrew Fishman, Maryam Saleh
“Ta tão lindo que se eu tivesse ai te dava umas 8 lambidas”, escreveu Dallagnol ao aprovar texto de colega procurador para "cooperação" com os EUA . Foto: Vladimir Platonow/Fotos Públicas |
Por Natalia Viana, Andrew Fishman, Maryam Saleh
12/03/2020
No dia 5 de outubro de 2015, Deltan Dallagnol, procurador-chefe da força-tarefa da Lava Jato, mal dormiu; chegou de uma viagem e foi direto para a sede do Ministério Público Federal (MPF) no centro de Curitiba, onde trabalhou até depois da meia-noite. No dia seguinte, acordou às 7 da manhã e correu de volta para o escritório. Ele já havia avisado a diversos interlocutores que aquela seria uma semana cheia e não poderia atender a nenhuma demanda extra.
No dia 5 de outubro de 2015, Deltan Dallagnol, procurador-chefe da força-tarefa da Lava Jato, mal dormiu; chegou de uma viagem e foi direto para a sede do Ministério Público Federal (MPF) no centro de Curitiba, onde trabalhou até depois da meia-noite. No dia seguinte, acordou às 7 da manhã e correu de volta para o escritório. Ele já havia avisado a diversos interlocutores que aquela seria uma semana cheia e não poderia atender a nenhuma demanda extra.
Não era para menos. Naquela terça-feira, uma delegação de
pelo menos 17 americanos apareceu na capital paranaense para conversar com
membros do MPF e advogados de empresários que estavam sob investigação no
Brasil. Entre eles estavam procuradores americanos ligados ao Departamento de
Justiça (DOJ, na sigla em inglês) e agentes do FBI, o serviço de investigações
subordinado a ele. Todas as tratativas ocorreram na sede do MPF em Curitiba. Em
quatro dias intensos de trabalho, receberam explicações detalhadas sobre
delatores como Alberto Youssef e Nestor Cerveró e mantiveram reuniões com
advogados de 16 delatores que haviam assinado acordos entre o final de 2014 e
meados de 2015 em troca de prisão domiciliar, incluindo doleiros e ex-diretores
da Petrobras.
Mas nem tudo foram flores para a equipe de Deltan
Dallagnol. No final do dia 6 de outubro, às 23h16, ele foi chamado ao Telegram
pelo diretor da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da
Procuradoria-Geral da República (PGR), Vladimir Aras: “Delta, MSG DO MJ”.
A mensagem era grave. O Ministério da Justiça acabara de
tomar conhecimento da visita dos americanos pelo Itamaraty – quando eles já
estavam em Curitiba.
Leia também: Desde 2015, Lava Jato discutia repartir multa da Petrobras com americanos
Segundo um acordo bilateral, atos de colaboração em matéria judicial entre Brasil e Estados Unidos – tais como pedir evidências como registros bancários, realizar buscas e apreensões, entrevistar suspeitos ou réus e pedir extradições – normalmente são feitos por meio de um pedido formal de colaboração conhecido como MLAT, que estipula que o Ministério da Justiça deve ser o ponto de contato com o Departamento de Justiça americano. O procedimento é estabelecido pelo Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, tratado bilateral assinado em 1997.
Segundo um acordo bilateral, atos de colaboração em matéria judicial entre Brasil e Estados Unidos – tais como pedir evidências como registros bancários, realizar buscas e apreensões, entrevistar suspeitos ou réus e pedir extradições – normalmente são feitos por meio de um pedido formal de colaboração conhecido como MLAT, que estipula que o Ministério da Justiça deve ser o ponto de contato com o Departamento de Justiça americano. O procedimento é estabelecido pelo Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, tratado bilateral assinado em 1997.
Naquela época, o ministério era chefiado pelo ministro
José Eduardo Cardozo, sob a presidência de Dilma Rousseff (PT).
A mediação é feita pelo Departamento de Recuperação de
Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, o DRCI,
então chefiado pelo delegado da Polícia Federal (PF) Ricardo Saadi. Era dele a
interpelação que dizia que o governo não fora informado da visita dos
procuradores e agentes americanos. No final, o encontro ocorreu à revelia do
Executivo, em tratativas diretas entre os americanos e os procuradores de
Curitiba.
O e-mail enviado por Saadi dizia o seguinte:
“Fomos informados hoje pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE) sobre
possível vinda de autoridades americanas para o Brasil para conversar com
autoridades brasileiras e/ou realizar investigações no âmbito da Operação Lava
Jato. Considerando que, até a presente data, este DRCI não tinha qualquer
conhecimento dessa possibilidade, pergunto: 1. O MPF tem conhecimento sobre
eventual vinda de autoridades norte-americanas para o Brasil para conversar com
autoridades brasileiras e/ou para praticar atos de investigação? 2. Em caso
positivo, qual o período que ficariam em solo nacional? 3. Foi feito algum
contato oficial nesse sentido? 4. Quais seriam as atividades desenvolvidas
pelos norte-americanos em solo nacional? 5. O MPF teria nome/função das
autoridades americanas que viriam? 6. Outras informações que entender
relevantes”.
O recado foi compartilhado no chat “FTS-MPF”, onde
membros da Lava Jato coordenavam ações com outros procuradores.
Especialistas ouvidos pela Agência Pública e The
Intercept Brasil afirmam que quaisquer diligências – atos de investigação
que vão gerar um processo e provas criminais – em solo nacional teriam que ser
oficializadas por meio de um MLAT. Procurado pela reportagem, procurador
Vladimir Aras respondeu, por nota, que “as reuniões prévias e o intercâmbio de
informações no curso da investigação compreendem a etapa chamada ‘pré-MLAT’. O
MP e a Polícia não estão obrigados a revelar ou a reportar esses contatos a
qualquer autoridade do Poder Executivo”.
Leia também: Lava Jato usou provas ilícitas para pressionar futuros delatores
Mas os diálogos demonstram que, como a cooperação internacional não é regulamentada por lei nacional que estabeleça procedimentos padrões, os membros da Lava Jato exploraram zonas cinzentas que permitiram aos americanos avançar suas investigações, escondendo esse fato do governo federal – em especial, durante a época em que Dilma Rousseff ainda era presidente. Os contatos geraram questionamentos dentro da PGR e são ainda mais sensíveis por terem como alvo a empresa de economia mista Petrobras.
Mas os diálogos demonstram que, como a cooperação internacional não é regulamentada por lei nacional que estabeleça procedimentos padrões, os membros da Lava Jato exploraram zonas cinzentas que permitiram aos americanos avançar suas investigações, escondendo esse fato do governo federal – em especial, durante a época em que Dilma Rousseff ainda era presidente. Os contatos geraram questionamentos dentro da PGR e são ainda mais sensíveis por terem como alvo a empresa de economia mista Petrobras.
Em um chat de 13 de fevereiro de 2015, Deltan Dallagnol
demonstra desconfiança em relação ao DRCI – e ao governo Dilma.
Questionado por Vladimir Aras sobre se estaria “tudo
tranquilo” com o delegado federal Isalino Antonio Giacomet Junior, que era
assessor do DRCI, Dallagnol responde: “Tranquilo, obrigado, embora eu não goste
da ideia do executivo olhando nossos pedidos e sabendo o que há. Ainda bem que
é o Saadi e não o Tuminha lá”, diz, referindo-se ao ex-delegado Romeu Tuma
Júnior.
Em setembro de 2019, a força-tarefa da Lava Jato afirmou
ao site The Intercept Brasil e ao UOL que “diversas autoridades
estrangeiras de variados países vieram ao Brasil para a realização de
diligências investigatórias, algumas ostensivas, outras sigilosas, conforme
interesse dessas autoridades. Sendo um caso ou outro, todas as missões de
autoridades estrangeiras no País são precedidas de pedido formal de cooperação
e de sua autorização”. A primeira visita americana a Curitiba, porém, ocorreu
sem nem mesmo o conhecimento do MJ. Durante quatro dias, os americanos foram
apresentados a advogados de delatores e já começaram negociações de colaboração
com a Justiça dos EUA. Depois, a força-tarefa orientou os americanos a
convencer os colaboradores a ir aos EUA para depor, a fim de não ficarem
sujeitos às limitações da lei brasileira. Se isso não fosse possível, eles
ofereceriam sugestões sobre interpretações “mais flexíveis” das decisões do
Supremo Tribunal Federal (STF). E a força-tarefa ainda se comprometeu a
“pressionar” os investigados a colaborar com os EUA. Além disso, a agenda da
visita não foi divulgada para a imprensa brasileira a pedido dos americanos,
segundos revelam os diálogos.
Leia também: A relação promíscua entre Dallagnol e Barroso
Procurada pela Pública, a força-tarefa Lava Jato afirmou, por nota, que “a necessidade de formalização da diligência ocorre quando ela tem cunho probatório (“diligências investigatórias”), destinando-se, por exemplo, a colher depoimentos formais que são enviados via canais oficiais. A informação não engloba, certamente, contatos e conversas entre autoridades, que podem se dar informalmente, por telefone ou pessoalmente”. Afirmou também que “Eventuais reuniões com autoridades alienígenas – e foram dezenas, algumas presenciais e outras virtuais com diversos países -, não necessitam de qualquer formalização via DRCI, mas apenas autorização interna dos respectivos órgãos interessados”. O posicionamento completo da força-tarefa está reproduzido no final desta reportagem, a pedido da assessoria de imprensa.
Procurada pela Pública, a força-tarefa Lava Jato afirmou, por nota, que “a necessidade de formalização da diligência ocorre quando ela tem cunho probatório (“diligências investigatórias”), destinando-se, por exemplo, a colher depoimentos formais que são enviados via canais oficiais. A informação não engloba, certamente, contatos e conversas entre autoridades, que podem se dar informalmente, por telefone ou pessoalmente”. Afirmou também que “Eventuais reuniões com autoridades alienígenas – e foram dezenas, algumas presenciais e outras virtuais com diversos países -, não necessitam de qualquer formalização via DRCI, mas apenas autorização interna dos respectivos órgãos interessados”. O posicionamento completo da força-tarefa está reproduzido no final desta reportagem, a pedido da assessoria de imprensa.
Escondendo os americanos
Só depois da meia-noite, já no dia 7 de outubro de 2015,
Aras recebeu uma resposta de Deltan Dallagnol. Ele não quis dar detalhes ao MJ,
sugerindo a Aras que, em vez disso, “eles consultem o DOJ, porque eles pediram
que mantenhamos confidencial”. Ou seja: preferiu proteger o relacionamento com
os americanos a dar explicações ao governo brasileiro.
Dallagnol ainda sugeriu que Aras evitasse entregar o nome
dos investigadores americanos: “Caso Vc entenda que deve abrir, posso te mandar
a lista, mas sugiro reflexão, porque isso pode gerar ruídos com os americanos”.
Em resposta, Aras diz que o ministério sabia da visita porque “algo já tinha
saído na imprensa”, mas “o tempo fechou”. E conclui: “Vou desanuviar”.
Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública |
Ao mesmo tempo, do lado americano, o chefe da divisão que
cuidava de corrupção internacional no DOJ, Patrick Stokes, também procurou
evitar os holofotes sobre a visita.
Num diálogo com o então procurador Marcelo Miller sobre a
viagem a Curitiba, ele disse: “Nós tornamos a investigação pública nos Estados
Unidos, então nossa pessoa de imprensa vai simplesmente confirmar o fato mas
não vai comentar sobre a investigação ou a nossa presença no Brasil. Como eu
mencionei, o FBI vai confirmar sua presença no Brasil mas não vai comentar sobre
a razão ou a investigação”.
Em resposta, às 9 da manhã, Aras descreve: “O Executivo
está “indignado”. E zomba: “Tem gente com medo de cair na grade americana. Já
prevejo viagens internacionais de fim de ano sendo canceladas”.
Os diálogos foram reproduzidos com a exata grafia em que
foram recebidos pelo The Intercept Brasil, incluindo erros ortográficos.
As mensagens sem nome do autor são do celular do ex-procurador Marcelo Miller,
segundo apurou a reportagem.
Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública |
A razão da preocupação é a FCPA – Foreign Corrupt
Practices Act, ou Práticas de Corrupção no Exterior –, uma lei americana
que, desde 1988, permite ao DOJ investigar e punir, nos Estados Unidos, atos de
corrupção que envolvam autoridades estrangeiras praticados por empresas e
pessoas estrangeiras, mesmo que não tenham ocorrido em solo americano – basta
que tenha havido transferência de dinheiro por algum banco americano, que se
vendam ações de empresas envolvidas na bolsa nos EUA, ou até mesmo que a
propina tenha sido paga em dólares.
Com base nessa lei, a divisão de FCPA do DOJ – a mesma
que entre 2014 e 2016 foi chefiada por Stokes – investigou e puniu com multas
bilionárias empresas brasileiras alvos da Lava Jato, entre elas a Petrobras e a
Odebrecht.
Para evitar publicidade da visita do DOJ em outubro de
2015, Dallagnol mandou a assessoria de imprensa do MPF seguir a orientação de
sigilo dos americanos, conforme revela o diálogo abaixo.
“Eles podem usar essa info contra nos pelo
tamanho da delegação”, escreveu Dallagnol
No dia 7 de outubro de 2015, o debate sobre como deveriam
responder ao Ministério da Justiça continuou às 8 da noite. Lendo um rascunho
de e-mail proposto por Aras, Dallagnol pede mais uma vez que se escondam
do governo os nomes dos americanos que estavam no Brasil. “Eu tiraria a lista
anexa e diria para consultarem os americanos, para evitar ruídos e porque me
parece uma ‘cobrança indevida’, mas Vc que sabe. Eles podem também usar essa
info contra nos pelo tamanho da delegação. Não é suficiente informar os órgãos
de origem? Isso é bom pq não inclui SEC”. Aras argumenta que não vê problema em
enviar os nomes, mas acaba cedendo ao procurador.
No mesmo e-mail, enviado para o então chefe do
DRCI, eles decidem amenizar o conteúdo da visita e dizer que ela se limita a
“reuniões de trabalho”, como “apresentação de linhas investigativas adotadas
pelo MPF e pela PF e pelos norte-americanos no caso Lava Jato”, e não
“diligências de investigação no Brasil, o que seria irregular”.
Documentos oficiais do Itamaraty obtidos pelo The
Intercept contradizem a versão defendida por Dallagnol na resposta ao
Ministério da Justiça. Segundo esses documentos o DOJ pediu vistos para pelo
menos dois de seus procuradores – Derek Ettinger e Lorinda Laryea – detalhando
que eles planejavam viajar a Curitiba “para reuniões com autoridades
brasileiras a respeito da investigação da Petrobras” e com advogados dos
delatores da Lava Jato. “O objetivo das reuniões é levantar evidências
adicionais sobre o caso e conversar com os advogados sobre a cooperação de seus
clientes com a investigação em curso nos EUA”.
Então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo afirma
que foi surpreendido pela informação da presença americana em Curitiba. “Eu fui
avisado pela PF de que havia uma equipe norte-americana em Curitiba
estabelecendo um diálogo com autoridades, e a PF me perguntou se isso havia
sido autorizado por nós. Eu não tinha a menor ciência disso.” A seguir, o
ministro procurou o Itamaraty e o então procurador-geral da República Rodrigo
Janot, perguntando se ele tinha ciência disso. “Ele disse que não tinha, ficou
de ver do que se tratava… Ele me retornou dizendo que era uma atividade
exclusivamente não funcional. Era uma situação de contatos fora de qualquer
situação oficial, que tinha alguma finalidade acadêmica”, relembra. “Eu voltei
a falar com a PF, a PF falou: ‘Olha, tá parecendo um pouco nebulosa essa
atuação’. Nós fizemos uma interpelação para saber o que tava acontecendo, mas
eu nunca tive uma resposta conclusiva sobre isso.”
Leia também: Lava Jato escondeu gravações para impedir posse de Lula como ministro
“Pela legislação, quem representa a autoridade brasileira para fins de cooperação internacional é o MJ. E nós temos exatamente para isso um departamento, que é o DRCI”, detalha o ex-ministro, que afirma que já havia alertado a PGR sobre documentos que haviam sido trazidos ilegalmente da Suíça por membros da Lava Jato.
“Pela legislação, quem representa a autoridade brasileira para fins de cooperação internacional é o MJ. E nós temos exatamente para isso um departamento, que é o DRCI”, detalha o ex-ministro, que afirma que já havia alertado a PGR sobre documentos que haviam sido trazidos ilegalmente da Suíça por membros da Lava Jato.
Apresentando os delatores para o DOJ
A delegação, liderada por Stokes, incluía alguns dos
procuradores que se tornariam estrelas da luta anticorrupção internacional nos
Estados Unidos.
O próprio Stokes deixou a chefia da seção de FCPA, no
Departamento de Justiça, em 2016, para se tornar advogado de defesa de empresas
que são investigadas pela mesma divisão que ele comandava. Hoje, é sócio no
rico escritório Gibson, Dunn & Crutcher’s – que atende a Petrobras
nos Estados Unidos – uma posição cujo salário chegou a R$ 3,2 milhões em 2017.
Além dele, estavam presentes dois procuradores-chave nos
casos da Petrobras e Odebrecht, Christopher Cestaro e Lorinda Laryea. Ambos
continuam atuando na divisão de FCPA do DOJ. Em 2017, Cestaro foi nomeado chefe-assistente
da divisão e, em julho do ano passado, tornou-se o chefe de FCPA, comandando
todas as investigações de corrupção internacional contra empresas americanas e
estrangeiras.
Do lado do FBI, George “Ren” McEachern liderou até
dezembro de 2017 a Unidade de Corrupção Internacional do FBI em Washington, com
mais de 40 agentes, supervisionando todas as investigações de corrupção ligadas
à Lava Jato. A agente Leslie Backschies, que também esteve na comitiva, era
supervisora da Divisão de Operações Internacionais do FBI no continente e
acompanhou de perto todas as investigações no Brasil. Ela atualmente ocupa o
antigo cargo de “Ren” e supervisiona os três esquadrões do FBI dedicados a
investigar corrupção pelo mundo afora.
Na terça-feira, dia 6, Dallagnol recebeu os agentes
americanos com uma apresentação geral sobre as investigações, que durou uma
hora.
A seguir e ao longo da quarta-feira, cada procurador fez
uma exposição sobre cada um de seus investigados. Todos já haviam assinado
acordos de delação premiada com a força-tarefa – a maioria após ter passado
meses na prisão em Curitiba.
Leia também: Doleiro afirma ter pago propina a procurador da Lava Jato
O procurador Paulo Galvão detalhou o caso de Alberto Youssef, talvez o mais importante colaborador da Lava Jato, cuja delação premiada fora homologada em dezembro de 2014. Testemunha-chave na operação, o doleiro já era conhecido por esquemas de corrupção desde 2002, quando atuou no caso Banestado. À Lava Jato, admitiu ter participado, por exemplo, da lavagem e distribuição de dinheiro desviado da Refinaria Abreu e Lima a políticos do PP, PMDB e PT. Sua delação levou a diversas operações da PF e sua pena chegou ao total de 122 anos de prisão, sendo reduzida a três anos pela delação premiada. “A colaboração dele [Youssef] foi estruturante. Foi a espinha dorsal”, declarou seu advogado ao UOL, na época. Desde o mês anterior, circulavam reportagens dizendo que Youssef estava negociando uma delação com os americanos.
O procurador Paulo Galvão detalhou o caso de Alberto Youssef, talvez o mais importante colaborador da Lava Jato, cuja delação premiada fora homologada em dezembro de 2014. Testemunha-chave na operação, o doleiro já era conhecido por esquemas de corrupção desde 2002, quando atuou no caso Banestado. À Lava Jato, admitiu ter participado, por exemplo, da lavagem e distribuição de dinheiro desviado da Refinaria Abreu e Lima a políticos do PP, PMDB e PT. Sua delação levou a diversas operações da PF e sua pena chegou ao total de 122 anos de prisão, sendo reduzida a três anos pela delação premiada. “A colaboração dele [Youssef] foi estruturante. Foi a espinha dorsal”, declarou seu advogado ao UOL, na época. Desde o mês anterior, circulavam reportagens dizendo que Youssef estava negociando uma delação com os americanos.
A seguir, Galvão detalhou a situação do primeiro delator
da Lava Jato, o ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa,
cujo acordo havia sido homologado em 30 de setembro de 2014, após seis meses de
prisão. O procurador explicou também os detalhes da investigação sobre Augusto
Mendonça Neto, dono da empresa de construção Toyo Setal e primeiro empresário a
se tornar delator.
Os procuradores Roberson Pozzobon e Antonio Carlos Welter
fizeram apresentações sobre o passado de Pedro Barusco, ex-gerente de serviços
na Petrobras que assinara acordo de delação em novembro do ano anterior.
Outros delatores que tiveram seus casos detalhados aos
americanos foram Hamylton Padilha, lobista da Petrobras que atuava na área de
aluguel de sondas para perfuração de poços; Ricardo Pessoa, ex-presidente da
Construtora UTC Engenharia; e Dalton Avancini, ex-presidente da Camargo Corrêa.
O programa daquele dia previa, ainda, discussões sobre
“quaisquer” negociações em andamento com possíveis colaboradores.
Depois de ser “brifada” sobre vários alvos da Lava Jato,
a delegação americana passou dois dias negociando com advogados de
delatores-chave. Cada um deles teve meia hora para apresentar seus casos e
conversar sobre os termos da colaboração com as autoridades americanas.
Muitos desses contatos foram bem-sucedidos. No ano
seguinte, uma nova delegação voltou a Curitiba e ao Rio de Janeiro – dessa vez
com um MLAT assinado – para ouvir cinco alvos da Lava Jato. Outros delatores
negociariam acordos para depor diretamente nos EUA.
“Devemos cumprir pedidos passivos sempre que
possível, mas sem cair em armadilhas”
Em 9 de outubro, dia em que a missão do DOJ deixou
Curitiba, Aras, que estava em férias na Alemanha, mudou o tom da conversa com
Dallagnol, mostrando-se muito mais preocupado com as investigações conduzidas em
solo brasileiro. Isso porque, segundo Aras, os procuradores do DOJ poderiam
usar as informações contra cidadãos ou empresas brasileiras.
A preocupação demonstra como o chefe da Lava Jato em
Curitiba explorou uma zona cinzenta, fazendo soar alarmes na própria PGR.
Em uma longa mensagem às 20h56, ele diz: “Delta, como já
conversamos, essa investigação dos americanos realmente me preocupa. Fiquei
tranquilo quando vc garantiu que esse grupo de americanos não fez investigações
em Curitiba quando esteve aí. Você sabe que eles têm poucas limitações para uso
de provas lá. Mesmo as obtendo de maneira menos formal no exterior, eles podem
usá-las válida e te em alguns casos. Daí o meu receio inicial, já que o MPF e a
SCI não podem permitir isso sob pena de gerar decisões contrárias ao auxílio
direto e à autonomia do MPF nas medidas de cooperação internacional passiva e
ativa. Como te disse na segunda, o MRE mencionou até a possibilidade de ‘abalo
nas relações bilaterais’”, escreveu.
“Claro que devemos cumprir pedidos passivos sempre que
possível, mas sem cair em armadilhas”, prossegue, pedindo mais uma vez que o
assunto seja coordenado com ele para evitar “baixas de guerra”: “Vamos tocando
esse assunto de forma coordenada: SCI/FT/GT. Obrigado pelos informes. Manterei
vc também ciente. Que todos sejam responsabilizados pelo que fizeram, de
preferência sem ‘casualties of war’. Abs.”
Força-tarefa sugeriu a americanos meios “mais
flexíveis” de questionar brasileiros no Brasil e nos EUA
Na semana seguinte à missão em Curitiba, no dia 13 de
outubro de 2015, os membros da força-tarefa da Lava Jato seguiam satisfeitos
com a visita dos americanos, e o procurador Orlando Martello combinava com
Dallagnol um e-mail de agradecimento. Os americanos tinham pressa:
queriam tomar depoimentos de delatores brasileiros já em novembro de 2015.
O rascunho do e-mail que seria mandado para Stokes
foi enviado a Dallagnol às 11:47:36. Martello brinca que pode ameaçar os
investigados brasileiros de entregá-los aos americanos. “Foi muito interessante
e útil para nós trabalhar com vocês e sua equipe na semana passada. Pudemos
entender melhor os procedimentos nos EUA, assim como aprender sobre sua
expertise em acordos. Com esse conhecimento, agora nós temos mais uma maneira
de convencer empresas e indivíduos a revelar fatos: ameaçar informar ‘as
autoridades Americanas’ sobre corrupção e delitos internacionais… (risos)”,
escreveu Martello, em inglês.
Em tom mais sério, o procurador explica no e-mail
que há “dificuldades” e “questões legais” na tomada de depoimentos por uma
autoridade estrangeira no Brasil. O maior empecilho seria um entendimento do
STF de que todas as diligências no Brasil devem ser presididas por autoridades
brasileiras; assim, os americanos poderiam apenas enviar perguntas a serem feitas
por procuradores brasileiros. Mas os integrantes da força-tarefa tinham outras
sugestões para evitar isso.
“Vamos diretamente ao ponto. Para as entrevistas que você
e sua equipe planejaram conduzir aqui no Brasil em novembro, elas terão que ser
conduzidas por autoridades brasileiras (por procuradores federais ou pela
polícia federal). Eu não tinha ciência deste fato, mas Vladimir Aras me lembrou
sobre esse entendimento da nossa Corte Suprema. Isso significa que as
autoridades brasileiras têm que ‘presidir’, estar a cargo, para conduzir as
entrevistas. As autoridades dos EUA podem acompanhar todas as entrevistas e
podem fazer perguntas através das autoridades brasileiras. Isso pode ser feito
em inglês (se o réus/colaborador e o procurador falarem inglês) ou em português
com a ajuda de um tradutor. Nessas entrevistas, as autoridades brasileiras não
precisam tomar notas ou registrar o que dizem os réus, mas no final das
entrevistas nós anotamos um pequeno resumo do que aconteceu durante as
entrevistas (um relatório sobre o ato e não sobre o conteúdo das entrevistas).
Em paralelo, os agentes do FBI e quaisquer outras autoridades dos EUA podem
tomar notas livremente”. Ele conclui: “Esse procedimento pode tomar muito
tempo!”.
A seguir, Martello detalha quatro opções para conduzir as
entrevistas de maneiras “mais flexíveis”. Primeiro, eles poderiam ouvir os
colaboradores da Lava Jato nos Estados Unidos – o que é, para ele (e para
Stokes), a melhor ideia, embora parte deles pudesse não aceitar ir
voluntariamente para os EUA. E então sugere: “Nós podemos pressioná-los um
pouco para ir para os EUA, em especial aqueles que não têm problemas
financeiros, dizendo que essa é uma boa oportunidade, porque, embora seja
provável que autoridades dos EUA venham para o Brasil para conduzir as
entrevistas, as coisas podem mudar no futuro”. Assim seria possível evitar as
limitações impostas pela decisão do STF e novas decisões que poderiam se
seguir.
Ele prossegue: “Então podemos sugerir que é melhor
garantir a imunidade deles o mais rápido possível”.
A segunda opção seria fazer as entrevistas no Brasil,
conduzidas pelos procuradores brasileiros, e “permitir perguntas diretas pelas
autoridades americanas”. “Assim, as autoridades brasileiras
conduziriam/presidiriam o procedimento, mas nós o tornaríamos mais flexível”,
complementou.
Martello, porém, anota: “Eu pessoalmente não acho que esta
é a melhor opção porque haverá alguns advogados, como os da Odebrecht, que vão
ficar sabendo deste procedimento (advogados falam uns com os outros,
especialmente neste caso!) e vão reclamar”.
A terceira opção seria fazer as oitivas por
videoconferência – desse modo, tecnicamente a sessão seria conduzida nos EUA e
os americanos poderiam fazer as perguntas e nenhuma lei seria ferida. A opção
permitiria que os depoentes permanecessem em solo brasileiro, mas fossem
questionados diretamente pelas autoridades estrangeiras.
Há, ainda, uma quarta opção, sugerida por Stokes, que
Martello não recomenda: realizar as entrevistas na embaixada americana,
portanto em solo americano. “Eu tenho medo que a Corte Suprema Brasileira possa
entender esse procedimento como uma maneira de contornar sua decisão e decidir
contra nós.”
O rascunho do e-mail entusiasmou o chefe da Lava
Jato: “Ta tão lindo que se eu tivesse ai te dava umas 8 lambidas kkkkk”,
escreveu Dallagnol, ao que Martello retrucou: “Da próxima vez faço pior então”.
De fato, a recomendação da Lava Jato foi seguida à risca
pelos americanos. Pouco depois, os procuradores do DOJ já estavam tratando
diretamente com advogados dos empresários brasileiros a sua ida para os EUA.
“EUA estão com faca e queijo na mão”
A possibilidade de os delatores colaborarem com os
americanos a partir do Brasil foi assunto de diversas trocas de mensagem entre
Aras e membros da força-tarefa. Nelas, se nota a constante preocupação do
ex-diretor da SCI e uma tensão com Dallagnol.
Em 30 de novembro de 2015, às 21:09:52, Dallagnol avisa a
Aras que os americanos já “estão ouvindo colaboradores”. Aras reage com
surpresa e Deltan responde: “Não temos controle sobre as oitivas porque são uns
10 colaboradores que já estão em tratativas de acordos, ou acordos feitos. EUA
estão com faca e queijo na mão para ouvirem”.
Aras pergunta se os colaboradores estão sendo ouvidos nos
Estados Unidos. “Onde estão ouvindo? Informaram ao DRCI?” Dallagnol responde
que, por serem nos EUA, as oitivas ocorreriam “à revelia do DRCI”. E prossegue,
referindo-se à visita dos americanos no mês anterior: “Nós estamos com pressa,
porque o DOJ já veio e teve encontro formal com os advogados dos colaboradores,
e a partir daí os advogados vão resolver a situação dos clientes lá… Isso
atende o que os americanos precisam e não dependerão mais de nós. A partir daí,
perderemos força para negociar divisão do dinheiro que recuperarem. Daí nossa
pressa”.
“Mas eles só conseguirão isso se colaborarmos, não? Eles
não têm provas. Ou têm?”, retruca Vladimir.
Em resposta, Dallagnol diz que os americanos “conseguem
sim” provas, através dos processos – todos foram publicados online através do
sistema eletrônico do TRF4, cujas senhas de acesso eram e ainda são enviadas
todas as semanas para centenas de jornalistas do país pelas assessorias do MPF
e da Justiça Federal do Paraná.
“Eles podem pegar e usar tudo que está na web”, argumenta
Dallagnol. Aras pergunta: “Quando eles farão pedido formal de oitivas?”.
“Não precisam fazer. Ouvirão nos EUA os que estão soltos
e podem viajar.”
A resposta surpreende Aras: “Os advogados concordaram?
Eles vão viajar sem salvo-conduto????? Loucura”.
O assunto causa alarme na PGR, e Aras vai conversar com o
então procurador-geral Rodrigo Janot, que recebera uma ligação de Deltan.
“Estou refletindo sobre uma posição”, escreve Aras.
“Os americanos prometeram salvo conduto”, responde
Dallagnol.
“Prometer não adianta. Tem de ser no papel”, retruca
Aras.
Leia também: Lava Jato manipulou impeachment de Dilma, confessa ex-senador do PSDB
Em 17 de dezembro de 2015, Aras reitera seu desgosto com aquele arranjo entre a Justiça americana e colaboradores da Lava Jato, quando discute com Dallagnol um pedido dos EUA para uma oitiva com Hamylton Padilha, que se tornara delator em julho de 2015.
Em 17 de dezembro de 2015, Aras reitera seu desgosto com aquele arranjo entre a Justiça americana e colaboradores da Lava Jato, quando discute com Dallagnol um pedido dos EUA para uma oitiva com Hamylton Padilha, que se tornara delator em julho de 2015.
Aras explica qual seria o caminho legal a ser seguido
pelas autoridades americanas.
“O ideal seria eles pedirem isso via DRCI: – execução
pelo MPF (mera notificação) – transferência voluntária do colaborador aos EUA
para depor – emissão de “safe passage” para o colaborador antes da viagem –
tomada do depoimento nos EUA – retorno do colaborador ao Brasil”. “Safe
Passage” seria um salvo-conduto, uma garantia que os brasileiros não seriam
presos ao irem dar depoimento em solo americano.
Dallagnol argumenta que o delator em questão não está
preso, e Aras explica que isso não importa: “A pessoa a ser transferida com
salvo-conduto não precisa estar presa. Pode ser vítima, perito, testemunha,
acusado/suspeito”.
Dallagnol admite, então, que a força-tarefa pode ter
errado ao não avaliar as consequências da parceria com os americanos durante a
visita secreta a Curitiba. “Quando estavam aqui, e não tínhamos ainda
restrições, mas estávamos operando no automático, sem conhecimento da dimensão
das consequências e pensando em aplicar o tratado diretamente (o que ainda não
está fora de cogitação, estamos todos refletindo, creio), dissemos que não
haveria problema em os colaboradores, que pudessem, ir aos EUA para prestar as
declarações.”
Se de fato, porém, a ideia de Deltan não era garantir
vantagens aos americanos e driblar o governo brasileiro, já era tarde demais.
Um marco no relacionamento entre a Lava Jato e o DOJ foi
a primeira visita oficial aos Estados Unidos, em 9 e 10 de fevereiro de 2015,
dos procuradores Carlos Fernando dos Santos Lima, Marcelo Miller e Deltan
Dallagnol, que acompanhavam o então procurador-geral da República Rodrigo Janot
e o próprio Aras em visita cuja existência chegou a ser noticiada na imprensa
brasileira.
Eles se reuniram com o DOJ, representantes da Comissão de
Valores Mobiliários (SEC, na sigla em inglês), da Receita Federal americana
(IRS, na sigla em inglês), do FBI e do Departamento de Segurança Interna (DHS).
Foi a partir dessa visita que os procuradores passaram a discutir a vinda da
comitiva a Curitiba.
Aquela missão tinha três objetivos, segundo um relatório
feito pelos procuradores de Curitiba e compartilhado nos chats: agilizar o
intercâmbio de informações nos casos da Lava Jato, conseguir a prioridade de
execução nos pedidos de cooperação internacional já encaminhados e “criar e
manter um ambiente favorável à colaboração de investigados, buscando-se o
compromisso das autoridades alienígenas na não persecução daqueles que firmaram
acordos com o Ministério Público Federal”. A ideia era conseguir um acordo com
o DOJ de que nenhum dos delatores da Lava Jato seriam investigados nos EUA.
O relatório conclui: “Desses três objetivos, os dois
primeiros foram atingidos. O terceiro ainda está sendo objeto de análise pelos
Estados Unidos, por necessitar de uma apreciação mais ponderada das evidências,
dos acordos e da sua contribuição para as investigações”.
No final, todos os sinais indicam que Dallagnol nunca
conseguiu essa concessão dos americanos, o que deixou os delatores à mercê das
autoridades americanas, negociando caso a caso.
De acordo com advogados de defesa que trabalharam nesses
casos, os acordos com o DOJ são “casuísticos”, ou seja, decididos caso a caso,
em negociações individuais. Advogados relataram casos em que houve a emissão de
um salvo-conduto para viagens aos EUA e outros em que se chegou a um non-prosecution
agreement, um compromisso formal do governo americano de que os delatores
não seriam processados. Porém, em outros casos, nenhuma dessas garantias foi
dada pelo governo americano ainda.
“Não há nenhum papel nosso concordando, com certeza”
Diante da hesitação dos procuradores brasileiros, os
americanos foram rápidos e, a partir de dezembro de 2015, já havia delatores
viajando para os Estados Unidos a fim de prestar depoimentos ao DOJ.
As notícias das viagens de Augusto Mendonça e Júlio
Camargo, executivos da Toyo Setal, empresa que mantinha contratos com a
Petrobras, que relataram terem pagado propina ao PT, causaram nova consternação
na PGR, que voltou a pedir explicações à força-tarefa.
Mais uma vez, Dallagnol responde a Aras que não tem
nenhum controle sobre as negociações diretas entre a Justiça americana e
colaboradores da Lava Jato – mas se esquece de mencionar que as viagens para os
EUA foram uma sugestão do seu grupo. “Lembro até que Vc tinha sugerido para
preferencialmente as oitivas serem via MLAT, mas preferencialmente, ideia que
só veio depois das reuniões deles e, em função disso, não temos mais controle”,
escreve.
Aras retruca: “Lembro de quase tudo isso, Delta, menos de
ter concordado com a prática de colaboradores receberem alguma espécie de aval
do MPF para viajarem aos EUA, como andam dizendo por aí. O ok seria dado em
pedidos formais de MLA, após pedidos de transferências de pessoas”.
“Pelo que entendi não há nenhum papel firmado por vcs
concordando com tais viagens, ou há? Esse é o ponto da minha preocupação”,
pergunta Aras.
Dallagnol responde de madrugada, à 1:04:07 do dia 7 de
abril. “nenhum papela nosso concordando, com certeza”. E acrescenta: “O que
fizemos foi apresentar e não nos opormos”.
“Melhor assim. Joia.” É a resposta de Aras.
Em 2016, procuradores do DOJ questionaram
Cerveró, Costa e Youssef
Em julho de 2016, uma nova comitiva do DOJ veio ao Brasil
para tomar depoimentos em Curitiba e no Rio de Janeiro. Dessa vez, a comitiva
veio munida de MLAT e aparentemente seguiu as sugestões da equipe de Dallagnol,
evitando questionamentos no STF.
O documento com a programação da viagem mostra que
participaram da comitiva os advogados Lance Jasper e Carlos Costa Rodrigues, da
SEC, e os procuradores do DOJ Kevin Gringas, Hector Bladuell, Davis Last,
Gustavo Ruiz e, mais uma vez, Christopher Cestaro, atual chefão de FCPA do
governo americano.
Da parte do FBI, vieram duas intérpretes (Tania Cannon e
Elaine Nayob) e dois agentes: Becky Nguyen e Mark Schweers – ele já acompanhara
a comitiva de outubro de 2015.
Entre 13 e 15 de julho, o grupo utilizou a sede da PGR no
centro do Rio de Janeiro para ouvir o ex-diretor da área internacional da
Petrobras Nestor Cerveró e o ex-diretor de abastecimento Paulo Roberto Costa,
ao longo de três sessões, totalizando nove horas de questionamentos a cada um.
Quatro meses depois, em novembro daquele ano, a Folha de S.Paulo
noticiou que Costa havia fechado um acordo para cooperar com o FBI e o DOJ,
comprometendo-se a fornecer documentos e prestar depoimentos e entrevistas
sempre que convocado.
Estavam presentes nas oitivas no Rio de Janeiro o
procurador da Lava Jato fluminense Leonardo Freitas e membros da SEC, além dos
advogados dos delatores.
Refinaria de Pasadena na mira
Entre 14 e 21 de julho de 2016, a agenda dos americanos
foi na Procuradoria da República em Curitiba – e bastante cheia.
Uma novidade – que não constava nas apresentações
iniciais listadas na agenda do encontro de outubro de 2015 – foi o contato com
o ex-funcionário da Petrobras Agosthilde Mônaco de Carvalho, ex-assessor de
Cerveró que atuou na compra da refinaria de Pasadena, no Texas.
Os agentes do FBI e do DOJ o questionaram durante seis
horas. Ele reconhecera o pagamento de propina na compra, em novembro do ano
anterior, e em depoimento ao Tribunal de Contas da União foi chamado de “homem
bomba”, ao falar sobre a aprovação do Conselho da Petrobras, presidido à época
por Dilma Rousseff.
Na semana da visita dos americanos, Dilma já estava
afastada do cargo de presidente, no processo de impeachment a que respondia.
Os agentes americanos questionaram também o doleiro
Alberto Youssef durante seis horas, assim como seu ex-funcionário Rafael Ângulo
Lopez.
No último dia, a comitiva americana reuniu-se durante todo
o dia para discutir o caso Odebrecht com a Lava Jato: Dallagnol, Martello,
Galvão, Roberto Pozzobon e Marcelo Miller, então na PGR. A reunião começou às
10 da manhã e seguiu até as 17 horas, com direito a uma hora de almoço, segundo
o documento.
DOJ vai para cima da Odebrecht
Em dezembro de 2016, pouco antes do Natal, a Odebrecht,
junto com sua subsidiária Braskem – uma sociedade com a Petrobras –, fez um
acordo com o DOJ no qual ambas concordaram em pagar um mínimo de US$ 3,2
bilhões aos EUA, Suíça e Brasil – total depois reduzido para US$ 2,6 bilhões –
pelas práticas de corrupção ocorridas fora dos EUA. Na época, foi o maior
acordo global de corrupção internacional. O acordo firmado com os EUA pelas
empresas garante que elas têm que colaborar com as autoridades americanas em
quaisquer investigações, disponibilizando seus funcionários para
questionamentos sempre que chamados.
Advogados de defesa consultados pela reportagem afirmam
que houve pelo menos mais duas delegações do DOJ para ouvir empresários da
Odebrecht, na sede do MPF em São Paulo, nos anos 2017 e 2018.
As oitivas são precedidas do attorney proffer, uma
negociação com advogados que estabelecem quais os pontos que o DOJ quer ouvir.
Um depoimento tomado por um attorney proffer não isenta o investigado de
futuros questionamentos ou investigações. Geralmente, o que se estabelece é que
essas informações não serão usadas criminalmente contra eles – mas podem ser
usadas, por exemplo, contra outros cidadãos brasileiros.
Houve também um número não divulgado de viagens de
delatores aos EUA, além de negociações e oitivas por internet – todas essas
modalidades foram sugeridas pela força-tarefa no e-mail vazado.
Especialistas ouvidos pela reportagem destacaram
problemas em cooperar com autoridades americanas sem passar pelas vias
oficiais.
Falando em tese, o professor Eduardo Pitrez, da Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Rio Grande, afirmou que “a cooperação
judiciária internacional sempre esteve vinculada ao topo do Poder Judiciário,
ao STF e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ou à diplomacia profissional,
porque há elementos muito sensíveis, como a soberania nacional, interesses e
disputas internacionais e questões de relacionamentos entre Estados que órgãos
do sistema de justiça de menor hierarquia não estão preparados para avaliar”.
“A chamada ‘cooperação direta’ gera uma fragmentação. Com
essa fragmentação, qualquer juiz, qualquer procurador ou promotor pode
estabelecer relacionamento internacional a partir da agenda anticorrupção. A agenda
anticorrupção permite, vamos dizer assim, chegar direto à agenda do governo em
questões importantes do país, como, por exemplo, uma empresa petrolífera ou as
capacidades competitivas das grandes empresas nacionais”, completa.
A professora de direito penal e econômico na Fundação Getúlio
Vargas, Heloísa Estellita, lembra que falta uma legislação nacional que
regulamente a cooperação internacional. “No Brasil, a cooperação internacional
não é regulada por lei e, por isso, há muito abuso.” Ela diz que “o estado de
direito estabelece regras para as autoridades atuarem, porque elas atuam nos
limites em que o povo autoriza sua ação. Fazer cooperação sem base em lei é
trair o pacto democrático”. Ela falou em tese e não analisou os diálogos
específicos desta reportagem.
Procurado pela reportagem, o então chefe do DRCI, Ricardo
Saadi afirmou: “O contato informal e direto entre as autoridades de diferentes
países é permitido e previsto em convenções internacionais. Para esse tipo de
contato, não há a necessidade de elaboração de pedido baseado no MLAT”. Ele
afirmou que seu e-mail tinha como objetivo “disponibilizar o DRCI para
proceder eventual pedido de cooperação jurídica internacional para obtenção de
provas pelas autoridades”. E disse ainda não se recordar se houve uma resposta
formal ao e-mail.
O procurador da República Vladimir Aras defendeu a
legalidade da visita e a não necessidade de autorização do Ministério da
Justiça. “O Ministério Público Federal esclarece que os tratados de cooperação
internacional em matéria penal, conhecidos por ‘Mutual Legal Assistance
Treaties’ (MLAT), não são a única via disponível para a cooperação
internacional de cunho criminal”, escreveu em nota, mencionando a: “colaboração
voluntária” do investigado, cartas rogatórias e troca de informações policiais.
“Ademais, o contato direto entre membros do Ministério Público de diferentes
países é uma boa prática internacional, recomendada, por exemplo, desde o ano
2000 pelo Conselho da Europa.”
“As reuniões prévias e o intercâmbio de informações no
curso da investigação compreendem a etapa chamada ‘pré-MLAT’. O MP e a Polícia
não estão obrigados a revelar ou a reportar esses contatos a qualquer
autoridade do Poder Executivo”, afirmou. “Pretender que todos os contatos com
procuradores estrangeiros sejam intermediados por um só órgão em Brasília seria
como submeter o MP a eventuais vicissitudes do Poder Executivo, o que
representaria a perda da autonomia que a Constituição Federal conferiu à instituição,
inclusive para investigar crimes praticados por altas autoridades
republicanas”. Leia a nota completa.
Procurado pelo The Intercept, o Departamento de
Justiça americano afirmou que não iria comentar a reportagem.
O que diz o acordo bilateral
O Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal com
os Estados Unidos lista situações em que se deve pedir assistência jurídica
(MLAT) através de vias oficiais. Entre elas, a tomada de depoimentos de
pessoas, o fornecimento de documentos, registros e bens, transferência de
pessoas sob custódia para prestar depoimento e execução de pedidos de busca e
apreensão, imobilização e confisco de bens. O artigo 10 prevê justamente o tipo
de viagem feita por delatores da Lava Jato aos Estados Unidos.
O acordo prevê também que a presença de autoridades do
outro país para depoimento ou produção de prova em seu país, inclusive
permitindo que “essas pessoas apresentem perguntas a serem feitas à pessoa que
dará o testemunho ou apresentará prova”. Mas não estabelece de que forma essas
perguntas devem ser apresentadas ou como o testemunho deve ser tomado.
Prevendo questões problemáticas à soberania nacional, o
artigo 3º permite ainda que um dos dois países negue um pedido de assistência
jurídica se o atendimento “prejudicar a segurança ou interesses essenciais
semelhantes do Estado Requerido”. Ou seja, o Brasil poderia ter se negado a
ajudar a investigação dos EUA sobre a Petrobras por ser uma empresa
estratégica.
Dallagnol fez palestra em Santo André em 25/10/2019, com manifestações contrárias a sua presença. Foto: Edu Guimarães/Fotos Públicas |
Respostas da Lava-Jato
Procurada pela Pública, a força-tarefa da Lava
Jato respondeu por e-mail pedindo que seu posicionamento fosse publicado
na íntegra.
Seguem as perguntas e respostas:
Segundo os diálogos vazados, o DRCI não
aprovou a visita de procuradores americanos e agentes do FBI a Curitiba entre 6
e 9 de outubro de 2015 em reuniões com procuradores de Lava Jato e advogados de
delatores. Isso não é ilegal, segundo o acordo bilateral que estabelece que
todas as diligências devem ser aprovadas via um MLAT?
Para o intercâmbio de informações entre países, antes da formalização
de um pedido formal por meio dos canais oficiais, é altamente recomendável e
legal que as autoridades mantenham contatos informais e diretos. A cooperação
informal significa que, antes da transmissão de um pedido de cooperação, as
autoridades dos países envolvidos devem manter contatos, fazer reuniões,
virtuais ou presenciais, discutir estratégias, com o objetivo de intercâmbio de
conhecimento sobre as informações a serem pedidas e recebidas. Acordos
bilaterais não esgotam as modalidades de cooperação entre países, que podem se
dar, inclusive, com base em reciprocidade.
Em setembro de 2019, a força-tarefa da Lava Jato afirmou
que “diversas autoridades estrangeiras de variados países vieram ao Brasil para
a realização de diligências investigatórias, algumas ostensivas, outras
sigilosas, conforme interesse dessas autoridades. Sendo um caso ou outro, todas
as missões de autoridades estrangeiras no País são precedidas de pedido formal
de cooperação e de sua autorização”.
No entanto, os diálogos revelam que a missão
de outubro de 2015 não foi precedida de pedido formal de cooperação ou de
autorização. Por quê?
Não recebemos os dados sobre as visitas, já bastante
antigas, nem a fonte da informação referente à força-tarefa. De todo modo, a
necessidade de formalização da diligência ocorre quando ela tem cunho
probatório (“diligências investigatórias”), destinando-se, por exemplo, a
colher depoimentos formais que são enviados via canais oficiais. A informação
não engloba, certamente, contatos e conversas entre autoridades, que podem se
dar informalmente, por telefone ou pessoalmente. Se assim interpretada, a
informação enviada entre aspas está correta. Foi exatamente esse tipo de
contato direto que permitiu de modo exitoso o acesso por autoridades brasileiras
a documentos bancários fundamentais para denúncias e bloqueios de milhões de
dólares fruto de corrupção, desvios e lavagem de dinheiro. Do mesmo modo, o
contato entre autoridades estrangeiras e advogados de colaboradores ou
colaboradores é plenamente legal, podendo se dar por diversas vias.
Um documento obtido pela reportagem demonstra
que os advogados do DOJ vieram a Curitiba para “levantar evidências” sobre o
caso da Petrobras. Isso não a qualificaria como uma “diligência”? O que a Lava
Jato classificaria como uma viagem “para a realização de diligências
investigatórias”?
Diligências investigatórias constituem a produção de
provas como a colheita de depoimentos, a realização de buscas e apreensões, a
obtenção de documentos de natureza sigilosa ou a obtenção de atos oficiais de
Estado. Não tivemos acesso ao suposto documento mencionado na pergunta, nem
para verificar sua fidedignidade. Tratando-se de supostas tratativas de 2015,
na época provavelmente já existiam pedidos de cooperação brasileiros pendentes
de cumprimento no exterior, assim como o interesse das autoridades brasileiras
de que as autoridades estrangeiras iniciassem investigações sobre empresas
estrangeiras que haviam potencialmente praticados crimes no Brasil e que seriam
de difícil alcance pela jurisdição brasileira, o que depois veio a se
concretizar. A referência a “caso Petrobras” engloba todos os subcasos da Lava
Jato e o intercâmbio com as autoridades norte-americanas, ao longo dos anos,
tem se concentrado bastante no tipo de caso mencionado. Essa cooperação direta
entre autoridades é reconhecida como boa prática internacional pela Convenção
das Nações Unidas contra a Corrupção, pelo GAFI (Grupo de Ação Financeira
Internacional), pelo Banco Mundial e pela AGU (Advocacia-Geral da União),
dentre outros organismos.
O DRCI enviou um questionamento no dia 7 de
abril, quando os americanos já estavam no Brasil, pedindo mais informações. Por
que o DRCI não foi informado da presença da delegação americana?
Eventuais reuniões com autoridades alienígenas – e foram
dezenas, algumas presenciais e outras virtuais com diversos países -, não
necessitam de qualquer formalização via DRCI, mas apenas autorização interna
dos respectivos órgãos interessados. Somente é necessário um pedido de
cooperação para a produção e transmissão de documentos que serão utilizados no
exterior, ou para a realização de outras diligências de cunho investigatório
antes mencionadas. Nesses casos, todas as missões foram precedidas de pedido
formal de cooperação. O intercâmbio de informações por meio da cooperação
informal é, como dito, um procedimento legítimo e pode ser feito antes, durante
e após a formalização de um pedido de cooperação internacional, e não o
substitui.
Segundo documentos vazados, a Lava Jato
pretendia obter do DOJ um compromisso de não-persecução penal para seus
delatores. Isso foi obtido? Em caso negativo, por que a força-tarefa continuou
a cooperar com o governo americano apesar da ausência deste compromisso?
Foram feitos todos os ajustes necessários para assegurar
a preservação do interesse público, com o objetivo de que os colaboradores
brasileiros tivessem seus acordos respeitados, como se verificou de fato até
hoje.
A Lava Jato orientou os procuradores
americanos a entrevistar seus delatores nos Estados Unidos? Por quê?
As autoridades estrangeiras não precisam de autorização
brasileira para ouvir, entrevistar ou fazer acordo premiado com cidadãos
brasileiros, colaboradores ou não, em seu território. Isso é mais verdade ainda
no caso de empresas que fizeram acordos simultâneos em vários países, cujos
empregados também buscavam um acordo de colaboração no exterior. O MPF, no
entanto, como várias vezes já externou a colaboradores e seus advogados, sempre
buscou que os acordos brasileiros fossem respeitados pelas autoridades dos
outros países.
O procurador-chefe da Lava Jato Deltan
Dallagnol foi questionado diversas vezes pelo SCI sobre a ida de brasileiros
para os Estados Unidos prestar depoimento sem MLAT. O procurador apoiou ou
aprovou esse expediente formalmente ou informalmente? Por quê?
Vários colaboradores procuraram diretamente autoridades
estrangeiras – e não apenas os EUA – para formalizar diretamente acordos de
colaboração. Isso foi – e é – incentivado pelo MPF, pois está dentro do escopo
do acordo de colaboração firmado no Brasil, com vista a aumentar a proteção do
colaborador no estrangeiro. Essa decisão cabe exclusivamente ao colaborador e
seu advogado. O MPF não tem o poder legal de impedir que qualquer investigado
procure autoridades no exterior para colaborar na investigação de crimes;
assim, não tem qualquer ingerência nesses acordos.
Em algum momento a Lava Jato ou seu diretor
evitaram compartilhar com o governo federal detalhes sobre a cooperação com os
procuradores americanos? Por quê?
O governo federal é um canal para a cooperação e não a
autoridade responsável pelo pedido ou cumprimento da cooperação. Assim, o
departamento de cooperação internacional do governo federal foi acionado sempre
que foi necessário. Não há, contudo, qualquer tipo de dever ou obrigação no
sentido de compartilhar toda a investigação. Aliás, a imprensa divulgou
recentemente que a força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro investiga o
vazamento de informações de cooperação internacional pelo governo federal
pretérito. Riscos desse tipo recomendam que informações sobre investigações,
especialmente sigilosas, não sejam compartilhadas com outros órgãos de modo
desnecessário.
Nenhum comentário