É hora de sair
Bolsonaro cruzou o Rubicão da falta de bom
senso, do desprezo e da falta de dignidade para com o cargo.
Por Guilherme
Antonio de A. L. Fernandes, Vinicius Ruiz Albino de Freitas, Luís Fernando P.
B. Cardoso, Ivan Filipe de Almeida Lopes Fernandes, Enrique Carlos Natalino e
Guilherme Assis de Almeida
22/03/2020
A cadeira que o presidente ocupa é maior que o próprio
presidente. Ela exige uma liturgia e um respeito rigoroso. Trata-se do símbolo
maior da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, é o presidente
Bolsonaro que deve dar o primeiro exemplo, como primeiro cidadão que é.
Foto: Isac Nóbrega/PR/Fotos Públicas |
Todavia, a realidade política brasileira passou a ser
digna de uma distopia orwelliana. Digna de um surrealismo inenarrável, a
confundir até mesmo Salvador Dalí. Bolsonaro cruzou o Rubicão da falta de bom
senso, do desprezo e da falta de dignidade para com o cargo.
Entretanto, não só o desrespeito ao cargo foi evidente
por meio da atitude irresponsável de sair à rua e cumprimentar manifestantes,
mas, e muito maior, foi o evidente desrespeito a aquele que é a razão de ser da
cadeira presidencial: ao povo brasileiro.
Ao desrespeitar ordens restritivas do seu próprio
governo, Bolsonaro colocou em risco vidas de milhares de brasileiros. Como
oficial da reserva das Forças Armadas, atentou contra a disciplina e o respeito
às ordens de seus superiores, valores que tanto preza em seu discurso de elogio
à vida militar. Seu superior é o soberano: o Povo Brasileiro. E o povo exige
que ele seja responsável e lidere esforços diante de um drama real, a pandemia
que assola o mundo.
Assim, Bolsonaro conseguiu desrespeitar não somente o
povo brasileiro, mas também as instituições republicanas. Seu ato foi
claramente de cunho golpista. Sua tática populista rasa é evidente: tentar
colocar a nação contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Sua estratégia
é simples: passar o recado de que seu governo só não está dando certo porque
Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, somados ao Supremo Tribunal Federal, não
permitem. Ou seja, o que deseja o presidente? Carta branca da população para
governar sem o Congresso e sem o STF.
Bolsonaro engana o povo brasileiro quando tenta
tergiversar ou desconversar, dizendo que não atenta contra a ordem democrática
brasileira e que está aberto ao diálogo. Porque, enquanto isso, o chamado
Gabinete do Ódio, que opera do próprio Planalto e é comandando pelo seu filho
Carlos Bolsonaro, dispara mensagens golpistas e falsas, para desinformar a
população e tentar colocá-la contra as instituições.
Bolsonaro, ao dizer que a esquerda não poderá jamais
voltar ao poder é antidemocrático por definição. Uma democracia não se faz só
com governos de direita ou de esquerda, mas com alternância. Uma democracia tem
governos de direita, governos de esquerda; volta a direita, retorna a esquerda,
governos de coalizão e assim vai. Um democrata não pode jamais construir
inimigos, porque um democrata constrói adversários. Na democracia os políticos
são adversários que negociam e não inimigos que querem se neutralizar e se
alijar do espaço público. A negociação é o coração de uma sociedade
multifacetária e complexa que possui representantes democráticos. Negociar é
exercer a democracia.
Bolsonaro não é um democrata. É evidentemente um autoritário que tenta minar, aos
poucos, as instituições da democracia brasileira. É um populista da pior
qualidade, que não respeita o cargo que ocupa e nem está à altura dele. É um
protótipo mal desenhado de ditador do século XXI, que acha que as redes sociais
servirão de base para sustentar seu governo.
Bolsonaro se recusa a negociar, porque insiste em
criminalizar a política que é feita por meio da articulação, do diálogo, pois
para ele a única política que vale é aquela que o adora e o endossa como
o condottieri da nação brasileira. Bolsonaro não acha que foi
eleito pelo povo e que tem que justificar todos os dias a confiança que lhe foi
dada. Na verdade, Bolsonaro acha que foi ungido divinamente pelo povo
brasileiro e que ganhou carta branca para ser a sua voz, doa a quem doer.
Bolsonaro acredita na ideia do mito e está visivelmente
inebriado pelo poder. Adora dizer que quem manda é ele e que tem poder de veto
de seus ministros. Não tem qualquer projeto de país, apenas um projeto de
poder.
Bolsonaro odeia a imprensa que o critica. Para ele, a
imprensa atrapalha seu governo, assim como o Congresso e o STF. Ataca os
jornalistas, desdenha deles, desrespeita-os frontalmente. Bolsonaro tem horror
à imprensa livre, porque ela é típica dos regimes democráticos, que não cabem
bem nos seus desejos de poder.
Bolsonaro copia a estratégia de seu ídolo maior, Donald Trump, de vociferar diante dos fatos negativos e acusar
a imprensa de produzir fake news, quando
esta noticia qualquer coisa negativa a ele. Bolsonaro adota a tática da mentira
e estabelece-a como método de governo.
Em nenhum momento deste texto Jair Bolsonaro foi chamado
de presidente, pois não tem estatura para o exercício do cargo. O Brasil não
possui mais qualquer liderança na América do Sul e perdeu a credibilidade
internacional. Investidores estrangeiros não colocarão um centavo em um país
cujo chefe de Estado, tal qual um Nero, incendeia a nação.
Bolsonaro não tem mais condições de ser líder da nação
que precisamos numa hora tão dramática como a que estamos vivendo no país e no
mundo. Jair Bolsonaro ainda está formalmente no cargo, mas, na prática, nunca
exerceu a Presidência da República. O governo Jair Bolsonaro não tem mais
condições de ser o governo do Brasil. É hora de sair.
Guilherme Antonio de A. L. Fernandes,
doutor em Direito pela USP, é professor, advogado em São Paulo e pesquisador do
Gebrics–USP; Vinicius Ruiz Albino de Freitas, doutor em Ciências
Sociais pela Unesp, é professor da Universidade Federal do ABC e pesquisador do
Gebrics–USP; Luís Fernando P. B. Cardoso, mestre em Direito pela
USP, é professor da Universidade São Judas Tadeu e advogado em São Paulo; Ivan
Filipe de Almeida Lopes Fernandes, doutor em Ciência Política pela USP, é
professor da UFABC e pesquisador do Cebrap; Enrique Carlos Natalino,
doutorando em Ciência Política na UFMG, é pesquisador do RIPERP-UFMG; e Guilherme
Assis de Almeida é professor da Faculdade de Direito da USP.
Artigo publicado no site da Le Monde Diplomatique Brasil em 20 de março de 2020.
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