"É meu dever falar em nome dos que sofrem", diz Lula ao receber honraria em Paris
Em seu discurso na França, o ex-presidente
denunciou as "políticas irresponsáveis e criminosas" do governo
Bolsonaro.
Confira o discurso de Lula na íntegra:
Por Lu Sudré
- Brasil de Fato
02/03/2020
Aplaudido, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
recebeu a honraria de cidadão honorário de Paris, nesta segunda-feira (2), como
reconhecimento por sua atuação contra a miséria e a fome no Brasil. O petista
viajou à França a convite de Anne Hidalgo, prefeita da capital francesa, para
oficializar a honraria aprovada pelo Legislativo local enquanto o ex-presidente
ainda era mantido preso político em Curitiba.
Lula recebeu a honraria das mãos da prefeita de Paris, Anne Hidalgo. Foto: Ricardo Stuckert |
Em sua fala, Hidalgo teceu elogios ao político e afirmou
que ter Lula como cidadão honorário era uma grande virtude para Paris.
“É uma honra atribuir esse título a uma grandíssima personalidade
como Lula. É um título que demonstra nossos valores, atribuídos àqueles que
lutam pela humanidade”, disse a prefeita. Em seguida, Hidalgo afirmou ter
esperança de ver um Brasil “renovado”, com Lula, que estava acompanhado da
ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e do ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT).
Lula agradeceu o reconhecimento e discursou para centenas
de pessoas. “Estou muito emocionado de estar aqui em Paris recebendo essa
homenagem. Quando digo para vocês que tenho energia de 30, digo porque nunca
estive mais motivado do que estou agora a brigar pela democracia no nosso país.
Agradeço muito a vocês.”
Foto: Ricardo Stuckert |
“O povo de Paris me acolhe hoje entre seus cidadãos, como
um reconhecimento pelo que fizemos, junto com tantos companheiros e com intensa
participação social, para reduzir a desigualdade e combater a fome no Brasil”,
agregou Lula.
O ex-presidente é o segundo brasileiro a receber o título
de Cidadão Honorário de Paris, ao lado do líder indígena kayapó Raoni
Metuktire. O líder sul-africano Nelson Mandela e o jornal francês Charlie Hebdo
também já foram contemplados.
“Farsa judicial”
Hidalgo é a primeira mulher a ser prefeita de Paris
e chegou a comemorar em seu Twitter quando Lula deixou a prisão. “É bom saber
que o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva acaba de ser
libertado. Espero por ele o mais rápido possível em Paris, onde ele é Cidadão
Honorário”, escreveu na ocasião.
Anne Hidalgo já havia manifestado apoio a Lula quando ele estava preso, no ano passado. Foto: Ricardo Stuckert |
Em seu discurso, Lula denunciou o processo
"arbitrário e persecutório" que afastou Dilma Rousseff da presidência
e, em seguida, o tornou vítima da operação Lava Jato.
Em seguida, o ex-presidente narrou o momento em que soube
que receberia o título de cidadão honorário e confessou se emocionar ao lembrar
dos integrantes da Vigília Lula Livre, que lhe deram “bom dia e boa noite”
durante os 580 dias em que permaneceu preso em Curitiba.
“Quando fui informado desse prêmio eu ainda estava preso
e fiquei muito feliz. O que me deixou mais impressionado é que os carcereiros
que cuidavam de mim também ficaram”, relatou Lula.
Ele ressaltou que poderia ter resistido à prisão,
solicitado asilo em alguma embaixada ou em outro país, mas escolheu provar sua
inocência.
“Depois dos 70 anos de idade, eu não poderia aparecer na
capa dos jornais como fugitivo. Fui à Polícia Federal, porque alguém tinha que
provar que o juiz Moro era mentiroso. Que os representantes do Ministério
Públicos eram mentirosos. Que os delegados que fizeram o inquérito eram
ardilosos. Eu tinha que provar minha inocência.”
Lula destacou ainda os feitos dos 13 anos de governos
petistas, como a retirada de 36 milhões da pobreza extrema, assim como a saída
do Brasil do Mapa da Fome.
A ex-presidente Dilma e o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, também participaram do evento. Foto: Ricardo Stuckert |
"Meu dever"
O petista aproveitou para falar sobre os retrocessos da
atual conjuntura política brasileira e denunciar as ameaças ao Estado
Democrático de Direito promovido pelo governo Bolsonaro.
“O que está ocorrendo no Brasil é o resultado de um
processo de enfraquecimento do processo democrático, estimulado pela ganância
de uns poucos e por um desprezo mesquinho pelos direitos do povo; desprezo que
tem raízes profundas, fincadas em 350 anos de escravagismo”, alertou, seguido
por aplausos.
“É meu dever falar aqui em nome dos que sofrem, em meu
país, com o desemprego e a pobreza, com a revogação de direitos históricos dos
trabalhadores e a destruição das bases de um projeto de desenvolvimento
sustentável, capaz de oferecer inclusão e oportunidades para todos. É meu dever
falar em nome de milhões de famílias de agricultores, das populações que vivem
à margem dos rios e nas florestas, dos indígenas e dos povos da Amazônia, para
denunciar a deliberada destruição das fontes de vida em nosso país, por causa
das políticas irresponsáveis e criminosas de um governo que ameaça o planeta”,
denunciou o ex-presidente.
Também em Paris, Lula se encontrou com o renomado fotógrafo Sebastião Salgado. Foto: Ricardo Stuckert |
Justamente para discutir questões relacionadas ao meio
ambiente e ao território Amazônico, o petista se reuniu com o renomado
fotógrafo Sebastião Salgado. Em seguida, almoçou com o ex-presidente
francês, François Hollande.
Lula ainda se encontrou com o ex-presidente francês, François Hollande. Foto: Ricardo Stuckert |
Agenda europeia
O petista iniciou seus compromissos na França no domingo
(1), reunindo-se com políticos como deputado francês Eric Coquerel e o líder do
grupo França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, que visitou Lula em Curitiba
quando o ex-presidente estava preso na sede da Polícia Federal.
A agenda do ex-presidente seguirá por outros países
europeus. Em visita a Genebra, no dia 6, por exemplo, Lula se encontrará com
representantes do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), que congrega mais de 340
igrejas em mais de 120 países. Na pauta, o ex-presidente deve abordar a desigualdade
social, tema central do encontro com o papa Francisco no Vaticano. Ainda na
Suíça, o ex-presidente participa de encontro com representantes de sindicatos
globais.
Já em Berlim, na Alemanha, o petista se reunirá com
lideranças políticas e com representantes do movimento sindical alemão. No dia
9, participa de encontro em defesa da democracia no Brasil. Será um ato público
em que encontrará representantes dos comitês internacionais Lula Livre.
Confira o discurso de Lula na íntegra:
"Senhora Anne Hidalgo,
Senhoras e senhores representantes do
Conselho de Paris,
Minhas amigas e meus amigos,
Agradeço de coração o título que a cidade de
Paris me concede, por meio de seus representantes. Agradeço especialmente à
prefeita Anne Hidalgo, pela generosa indicação, e ao Conselho de Paris que a
aprovou.
Este título teria de se estender, na
realidade, às mulheres e homens que defendem a democracia e os direitos da
pessoa humana, às brasileiras e brasileiros que lutam por um mundo melhor.
Receber este privilégio me emociona,
primeiramente, porque a cidade de Paris é universalmente reconhecida como
símbolo perpétuo dos Direitos do Homem e da mais elevada tradição de
solidariedade aos perseguidos.
E me emociona de maneira especial porque foi
concedido num dos momentos mais difíceis da nossa luta, quando me encontrava
preso de forma ilegal, uma prisão política num processo que ainda não se
encerrou.
Era o momento em que mais precisávamos da
solidariedade internacional, para denunciar as injustiças que vinham sendo
cometidas contra o povo brasileiro e as agressões ao estado de direito em meu
país.
E o povo de Paris, como em tantas outras
ocasiões, estendeu a nós sua proteção fraternal. Recordo-me de ter escrito,
numa carta de agradecimento em outubro passado, que Paris estava rompendo o
muro de silêncio que ocultava os crimes contra a democracia no Brasil.
Gostaria de estar nesta cidade libertária
para simplesmente celebrar a fraternidade entre os povos e recordar os laços de
solidariedade que nos unem ao longo da História. Afinal, sempre houve lugar
para brasileiros e latino-americanos entre os lutadores da liberdade que Paris
acolheu.
Mas é meu dever falar aqui em nome dos que
sofrem, em meu país, com o desemprego e a pobreza, com a revogação de direitos
históricos dos trabalhadores e a destruição das bases de um projeto de
desenvolvimento sustentável, capaz de oferecer inclusão e oportunidades para
todos.
É meu dever falar em nome de milhões de
famílias de agricultores, das populações que vivem à margem dos rios e nas
florestas, dos indígenas e dos povos da Amazônia, para denunciar a deliberada
destruição das fontes de vida em nosso país, por causa das políticas
irresponsáveis e criminosas de um governo que ameaça o planeta.
O que está ocorrendo no Brasil é o resultado
de um processo de enfraquecimento do processo democrático, estimulado pela
ganância de uns poucos e por um desprezo mesquinho pelos direitos do povo;
desprezo que tem raízes profundas, fincadas em 350 anos de escravagismo.
No período historicamente breve em que o
Partido dos Trabalhadores governou o Brasil, muitos desses direitos foram
colocados em prática pela primeira vez. Dentre eles, o direito fundamental de
alimentar a família todos os dias, o que se tornou possível graças à combinação
do Bolsa Família com outras políticas públicas, com a valorização do salário e
a geração de empregos.
Temos especial orgulho de ter aberto as
portas da Universidade para 4 milhões de jovens, na maioria negros, moradores
da periferia e dos rincões mais isolados de nosso imenso país; quase sempre os
primeiros a conquistar um diploma universitário em gerações de suas famílias.
Milhares desses jovens tiveram a oportunidade
de estudar nas melhores universidades do mundo, graças a um programa da
presidenta Dilma Rousseff. Certamente alguns deles se encontram em Paris.
Bastaram 13 anos de governos que olharam o
povo em primeiro lugar, para começarmos a reverter a doença secular da
desigualdade em nosso país.
Foram passos ainda pequenos para a dimensão
do desafio, mas estávamos no caminho certo, porque 36 milhões saíram da pobreza
extrema e o Brasil saiu do tristemente conhecido Mapa da Fome da ONU.
Este processo, ao longo do qual cometemos
erros, certamente, porém muito mais acertos, foi interrompido em 2016 por um
golpe parlamentar, sustentado por poderosos interesses econômicos e
geopolíticos, com apoio de seus porta-vozes na mídia e em postos-chave das
instituições.
Como sabem, a presidenta Dilma, uma mulher
honrada, foi afastada pelo Congresso sem ter cometido crime nenhum, num
processo em que as formalidades encobriram acusações vazias.
A este primeiro golpe contra a Constituição e
a democracia, seguiu-se a farsa judicial em que fui condenado, também sem ter
cometido crime algum, por um juiz que hoje é ministro do presidente que ele
ajudou a eleger com minha prisão.
Quando a Justiça Eleitoral cassou minha
candidatura, contrariando uma determinação da ONU baseada em tratados
internacionais assinados pelo Brasil, lançamos a candidatura do companheiro
Fernando Haddad.
Ele foi vítima de uma das mais perversas
campanhas de mentiras por meio das redes sociais, disparadas e financiadas ilegalmente
pelo adversário, num crime eleitoral que denunciamos e que até hoje, passados
quase 18 meses, não foi julgado pelo tribunal competente.
O candidato que venceu aquelas eleições, dono
de um histórico de ataques à democracia e aos direitos humanos, foi poupado
pelas grandes redes de televisão de enfrentar em debates o companheiro Haddad.
Essa mídia, portanto, é corresponsável pela ascensão de um presidente fascista
ao governo do Brasil.
A triste situação em que se encontra meu país
e o sofrimento do nosso povo são consequência de repetidos ataques, maiores e
menores, ao estado de direito, à Constituição e à democracia.
Se hoje estou aqui, num estado provisório de
liberdade e ainda sem direitos políticos, é porque em novembro passado, num
julgamento por maioria, o Supremo Tribunal Federal do Brasil reconheceu, para
todos os cidadãos, o direito constitucional à presunção de inocência que havia
sido negado ao cidadão Lula, às vésperas de minha prisão.
Aqui na Europa, quero me encontrar e
agradecer a todos que nos apoiaram nesses momentos tão duros. Mas quero
especialmente dialogar com os que trabalham para enfrentar a desigualdade, essa
doença criada pelo homem e que está corroendo o próprio conceito de humanidade.
Quero compartilhar as políticas exitosas que
tivemos no Brasil, conhecer a experiência, os projetos de outros países e dos
que estudam e lutam contra a desigualdade no mundo.
No recente encontro que tive com Sua
Santidade papa Francisco, fiquei contagiado pelo entusiasmo com que ele convoca
os jovens economistas a debater e buscar saídas para essa questão, que é
crucial para o presente e o futuro.
Quero propor aos dirigentes políticos, aos
governantes e à sociedade civil dos mais diversos países que promovam, não
apenas o debate, mas ações concretas em conjunto, para reverter a desigualdade.
Sei que é possível. Temos de ter fé na
juventude, como tem o papa Francisco. Temos de ter fé na humanidade e na nossa
capacidade de construir, pelo diálogo e pela política, as bases de um mundo
mais justo.
Sei o quanto tem sido importante a
solidariedade internacional, na Europa, nos Estados Unidos e ao redor do mundo,
para que se restaure plenamente o processo democrático, o estado de direito e a
justiça para todos em meu país. E mais uma vez agradeço, em nome dos que sofrem
com a atual situação.
O povo de Paris me acolhe hoje entre seus
cidadãos, como um reconhecimento pelo que fizemos, junto com tantos
companheiros e com intensa participação social, para reduzir a desigualdade e
combater a fome no Brasil.
Quero me despedir afirmando que nossa luta
prosseguirá, com a participação de todos vocês, porque é a luta pela
democracia, pela igualdade, pelos direitos dos desprotegidos, pela humanidade e
pela paz.
Muito obrigado."
Edição: Rodrigo Chagas – Brasil de Fato
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