“Temos uma sociedade escravocrata”, afirma única juíza negra do Rio Grande do Sul
Com 21 anos de magistratura, Karen Luise
Vilanova Batista de Souza defende um judiciário mais plural e diverso.
Por Fabiana
Reinholz e Katia Marko - Brasil de Fato | Porto Alegre
11/03/2020
"Nós somos o resultado de nossas circunstâncias, de
como nos constituímos, como vemos o mundo. Se você tem uma criação e uma
vivência que se aproxima ou se afasta desse olhar feminino, se você não tem
leitura sobre isso, se você não se interessa sobre essas questões, você vai
reproduzir comportamentos da sociedade, e a nossa é machista”, analisa a
juíza Karen Luise Vilanova Batista de Souza, da 1ª Vara do Júri
de Porto Alegre.
Karen ingressou na magistratura em 1999. Foto: Katia Marko/Brasil de Fato |
Souza, como ela mesmo pontua, não é a primeira juíza
negra do estado do Rio Grande do Sul, porém sua atuação e
representatividade crítica da magistratura faz com que seja apontada como tal. Seu
campo de atuação é similar a tantos outros, geridos predominantemente por
homens brancos.
Conforme revela a ferramenta Justa, lançada em agosto de 2019, que tem como
objetivo ser um observatório permanente do sistema de Justiça brasileiro,
para cada juíza negra há 7,4 juízes brancos no país.
“Sou uma juíza de Direito, mas sou uma juíza de Direito
negra. Isso é um fator importante, porque eu sou praticamente a única e a
sociedade tem que prestar atenção nisso, se as estruturas sociais continuarem
funcionando, poucas haverão iguais a mim”, critica.
Filha de um advogado e uma farmacêutica, trilhou o
caminho paterno e foi além. Há mais de duas décadas na magistratura gaúcha, a
mãe da Júlia e Alice, também integra a Associação dos Juízes para a
Democracia (AJD), foi diretora do Departamento de Direitos Humanos da
Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e presidente do
Instituto de Acesso à Justiça (IAJ). É formadora da Escola Nacional de Formação
de Magistrados.
Para mudar a realidade da magistratura, ela defende uma
maior pluralidade e diversidade. “Quanto mais pessoas partindo de diferentes
lugares, de diferentes espaços, mais visões diferentes sobre o mundo vamos ter.
Se você só tem homens brancos na magistratura, você vai ter a visão e a
vivência e a experiência do homem branco no mundo. A experiência de um homem
negro jamais será igual a de uma mulher negra no Brasil, a experiência de homem
branco jamais será igual de uma mulher negra no Brasil”, ressalta.
Em entrevista ao Brasil de Fato RS, para
a série especial sobre o 8 de Março, ela revela que a Karen que entrou em
1999 no Judiciário, com cabelo alisado e curto, não é mais a mesma.
Hoje, assume seus cachos e afirma cada vez mais sua identidade.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato RS: Gostaríamos de começar com
a história da tua trajetória no Judiciário.
Karen: Vou
completar 21 anos no Judiciário em abril. Ingressei em 1999, me formei em 1994
e logo em seguida prestei concurso para magistratura. Venho de uma família que,
embora de pessoas negras, sou a terceira geração com curso superior. Meu pai é
formado em Direito e minha mãe em Farmácia. Eles tiveram quatro filhos e eu
escolhi a carreira no Direito. Fui professora antes, mas iniciei uma preparação
para magistratura e logo ingressei.
Nesses 21 anos eu já trabalhei em algumas cidades no
interior do Estado, permaneci por 10 anos em Soledade, lá tinha vara criminal
especializada, cumulada com o júri. Quando eu cheguei a Porto Alegre, em 2018,
assumi na 1ª Vara do Júri da Capital e aqui eu venho jurisdicionando.
A minha formação foi em uma instituição particular,
cursei uma parte com financiamento que se tinha na época, e outra parte por
meios próprios. Fiz a escola da magistratura que colaborou com a minha formação
e ingressei nesse mundo, na justiça gaúcha que eu considero ainda uma justiça
branca.
Hoje estamos em 50% de homens e 50% mulheres, mais ou
menos. Eu não tenho os últimos dados porque tivemos o ingresso agora de
magistrados. Mas até o que eu tinha levantado, entre 800 juízes, cinco são
negros. Somos muito poucos, autodeclarados pretos eu acho que somos só dois,
dentro da classificação do IBGE de pretos e pardos.
Ao longo do tempo consegui perceber, já entrando na
questão de ser uma mulher negra na magistratura, o quanto nós mulheres acabamos
nos adequando e aceitando um estereótipo de magistrado. E aí já falamos no
masculino, magistrado, ou seja, acabamos adotando diversas condutas,
comportamentos, que nos afastam, inclusive, de um certo modo de viver como uma
mulher, para assumir, exercer uma profissão que tem a cara de homem branco, e
isso claro vai impactar na sua vida e na maneira como você se relaciona com as pessoas,
na maneira como você se relaciona com o jurisdicionado.
Com o tempo fui percebendo como essas questões
atravessaram a minha vida, minha existência, fizeram-me uma magistrada que aos
poucos foi se transformando, foi se descobrindo, se reconhecendo como uma
mulher negra da jurisdição e o quanto isso é importante no resultado final do
trabalho que realizo.
Como tu analisas a questão da
representatividade, tu és a única mulher negra juíza aqui no estado, quais são
os principais desafios?
Falando da questão da representatividade, penso que com
relação a magistrados precisamos que a política de cotas seja efetiva. Quando
eu digo que ela deve ser efetiva falo de conseguirmos preencher as vagas que
são destinadas às pessoas negras. Temos um déficit civilizatório com relação à
população negra em nosso país.
Nesse sentido, temos profissionais de Direito formados,
mas temos muitos déficits a serem preenchidos para que nos coloquemos em
condições de igualdade para competir em um concurso para magistratura, acho que
esse é um grande desafio.
E temos que compreender esse desafio como um desafio
social. A sociedade civil tem que estar comprometida com isso, se queremos um
país que não seja racista, um país onde exista uma verdadeira democracia, temos
que ter um compromisso em colocar nesses espaços de poder pessoas negras, que
esses espaços sejam mais plurais e diversos possíveis. Por outro lado, esse é
um desafio do Estado também.
Eu acho que o poder Judiciário, quando faz um concurso
público e não tem preenchidas todas as suas vagas, que são destinadas aos
cotistas, ele tem que olhar para isso e entender como um problema, construir
uma hipótese em cima dessa situação e buscar soluções para que realmente ele se
mostre comprometido com isso. Esse é um outro desafio no que diz respeito à
representatividade.
Ainda sobre a representatividade, é muito importante que
compreendamos que não basta apenas termos pessoas negras nesses espaços, essa
representatividade tem que ser uma representatividade crítica. Alguém que,
enquanto ser humano negro, entenda toda a nossa história, esse déficit que eu
referi anteriormente.
E seja alguém que possa focalizar as demandas que sejam
da população negra e fazer uma narrativa a partir do lugar que ele ocupa na
sociedade, trazer isso para a jurisdição, para a relação com seus
jurisdicionados.
E fazer isso nas questões mais simples, desde o que diz
respeito ao tratamento de alguém quando chega ao poder Judiciário, e apontar
que esse tratamento não está ok, que precisamos repensar essa filtragem racial
que acabamos fazendo quando se trata de pessoas negras.
Como também o exercício da jurisdição poder perceber no
julgamento de um processo que, para além, talvez, de uma questão relativa
à guarda, para além de uma questão relativa ao reconhecimento de um réu, de uma
pessoa que pratica um crime, pode existir uma questão racial por trás de tudo
isso. Ou seja, poder fazer um julgamento com a perspectiva do gênero, com a
perspectiva da raça. Acho que esses são os grandes desafios no Judiciário.
E para completar, um exercício de escuta. Eu tenho ouvido
muito isso das pessoas que me procuram por diferentes motivos. Elas me dizem,
eu quero alguém que me ouça, seja capaz de me ouvir. Ouvir essas histórias que
não estão escritas em lugar nenhum, que não são objetos de pergunta por um
homem branco que desde que iniciou a Justiça nesse país é quem faz a
jurisdição. Para ele tem questões que ele nunca viveu e, portanto, não precisa
ser objeto de perguntas e não são relevantes para o julgamento. Mas talvez para
o outro que está ali do outro lado seja relevante para sua vida, para sua
existência.
Como tu vês a questão do encarceramento
feminino?
Eu percebo que a mulher que chega ao cárcere não chega
pelos mesmos motivos que chega o homem, embora tenha praticado os mesmos
crimes, os mesmos delitos. São razões bastante diversas que as levam até lá, a
maioria delas, isso deve ser referido, tem um único ingresso, quando sai não
retorna, e a sua relação, principalmente no que diz respeito ao tráfico com o
companheiro, irmão, pai, o filho, a coloca exposta à criminalidade, a torna
mais vulnerável, faz com que ela entre para esse sistema.
E nessa medida eu não consigo compreender que o sistema
de justiça deva dar a ela o mesmo tratamento. Há tempos atrás, tivemos um
habeas corpus (HC) das presas, com o qual a decisão do STF permitiu que a
prisão fosse domiciliar, e são essas questões relativas a gênero que têm que
ser consideradas.
Muitas vezes, temos ingresso de uma mulher porque estava
traficando sim, mas as circunstâncias que a levaram a isso têm que ser muito
bem consideradas, principalmente com relação ao resultado que um encarceramento
vai produzir não só na vida dela, como no seu entorno familiar.
Se formos falar de mulher negra vamos falar de muito mais
ainda. As mulheres negras são mais solitárias na criação dos filhos e na
condução das suas famílias. Então elas são de extrema importância fora do
sistema prisional, para dar o sustentáculo, para serem o pilar de muitas
famílias.
Em Soledade, onde eu trabalhava, tínhamos uma cela
específica para mulheres e o contato que tivemos durante aquele período foi
muito profícuo, exatamente nesse sentido de compreender que o que as leva até
ali são outros fatores, que as suas necessidades são outras das dos homens e as
suas preocupações são completamente diferentes.
Elas têm uma preocupação muito grande com a família, com
os filhos, com o sustento, com o prover, sempre preocupadas em conquistar para
além dos muros. Acho que isso tem que ser considerado na jurisdição, no
julgamento, no apenamento da mulher.
Em outra entrevista, ao abordarmos o
encarceramento, foi colocada a questão de que em crimes, delitos leves, as
penas poderiam ser transformadas em trabalhos voluntários, por exemplo, não seria
uma solução?
Na verdade, sim. Acho que a legislação agora, com a
modificação que recentemente foi editada, é possível, só que não basta
adotarmos uma substituição de uma pena privativa de liberdade se não existir
todo um aparato social que vai dar conta de oferecer suporte para essa mulher
que ela possa cumprir essa pena substitutiva.
Digamos, uma prestação de serviço à comunidade, o que vai
adiantar eu aplicar PSC (Prestação de Serviço à Comunidade) para uma mulher que
tem, por exemplo, três filhos, e não tem uma creche para colocar os filhos para
cumprir a PSC? O que vai adiantar eu aplicar uma prestação pecuniária se
eu não tenho como colocar essa mulher no mercado de trabalho para que ela possa
ter a renda suficiente para se efetuar o pagamento do que foi proposto e o
acordo que ela aceitou, e aceitou porque ela não quer ficar presa, e ela vai
aceitar qualquer coisa?
Acho que o sistema de justiça também tem que dar conta
disso, o Estado tem que dar conta disso, como viabilizar as vidas, as
existências dessas pessoas para que elas realmente possam viver dignamente na
sociedade e não chegar nesse ponto de novo. Se queremos ressocialização,
reeducação, temos que dar o suporte suficiente para que isso aconteça.
Porque, via de regra, não só nos crimes patrimoniais, de
tráfico, essas pessoas que chegam a esse ponto são pessoas que, boa parte das
vezes, não tiveram um suporte do Estado, não tiveram condições de vida dignas
que a levassem para outro caminho. É preciso ter um aparato antes e depois, tem
que ter o tempo todo.
Não adianta eu conceder liberdade para alguém e esperar
que essa pessoa cumpra o que é exigido. Eu até coloco na minha decisão, mas eu
tenho que ser realista e compreender que eu não posso exigir de uma pessoa que
em sete dias ela chegue, retorne a mim e apresente uma comprovação que está
trabalhando licitamente.
Quantos desempregados nós temos no nosso país? E aí eu
vou querer que um desencarcerado em sete, 15 dias, comprove que está
trabalhando. Ou seja, a nossa legislação é muito perversa nesse sentido, porque
socialmente não damos conta de prevenir e de reparar essas faltas.
"Temos uma maioria de encarcerados negros, (que são) descendentes de escravizados. Foto: Katia Marko/Brasil de Fato |
Ao que tu atribuis o fato de não conseguirmos
superar esse ciclo?
Eu atribuo ao racismo. Nós temos uma sociedade
escravocrata, ainda, o legado da escravidão é muito forte no nosso país. Temos
uma maioria de encarcerados negros, esses encarcerados são descendentes de
escravizados, que 1888 e antes disso, também foram às ruas, saíram das
fazendas sem nenhuma reparação e nem um suporte para que realmente se
inserissem.
Quando o Estado se dá conta disso ele modifica as leis
penais para encarcerar essas pessoas desde logo. E aí começa se encarcerar a
vadiagem. Quem é que não estava trabalhando naquele tempo, quem não tinha
emprego? Negro.
Criminaliza-se a religião, a embriaguez, trata-se como
contravenção mais adiante. São uma série de medidas estabelecidas e
que foram adotadas pelo Estado, pós-escravidão, que tornaram essa
população marginalizada, na condição de submissão, de subalternidade,
compreendidos como incapazes de estar em diferentes espaços, em outros espaços.
E o Estado durante muito tempo viveu um mito da
democracia racial, nosso país viveu sob o mito da democracia racial, nunca se
discutiu o racismo, nunca se discutiu o legado da escravidão, e nunca se
tratou, portanto, de resolver essas questões.
E como se observa a questão do machismo no
meio Judiciário?
Para vocês terem uma ideia, entre o meu ingresso na
magistratura e o ingresso da próxima pessoa negra passaram mais de 10 anos,
talvez uns 13, 14. Com a política de cotas o ingresso passou a ser maior. De
mulheres, tivemos ingresso expressivo a partir da época que eu entrei na
magistratura, a partir de 1994 mais ou menos, as mulheres começaram a
ingressar.
Mas o que que temos de dados? Até então nós tínhamos uma
maioria massiva de homens no Judiciário. Temos um período de pouco mais de
20, 30 anos em que mulheres ocupam o Judiciário, e a partir de agora estamos
fazendo essa virada. Mas com um dado muito importante que até no início da
última década, as questões de gênero não eram consideradas como relevantes.
Os comitês de equidade de gênero, raça e diversidade são
recentes, tem um, dois anos. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) agora, no ano
de 2018, é que ditou uma resolução pretendendo promover a participação das
mulheres na magistratura, porque ainda os cargos da alta administração dos
tribunais eram ocupados predominantemente por homens. E aí o exercício da
jurisdição era pensado a partir de uma perspectiva masculina.
Mulheres ainda são vistas com alguma reserva na magistratura, porque mulher engravida, porque mulher vai deixar a comarca sem um magistrado para substituí-la por tempo integral, porque mulher vai dar um outro olhar na jurisdição de família. São questões que ainda estão sendo pensadas e amadurecidas, e passam a ser compreendidas como relevantes na magistratura.
Mulheres ainda são vistas com alguma reserva na magistratura, porque mulher engravida, porque mulher vai deixar a comarca sem um magistrado para substituí-la por tempo integral, porque mulher vai dar um outro olhar na jurisdição de família. São questões que ainda estão sendo pensadas e amadurecidas, e passam a ser compreendidas como relevantes na magistratura.
Quando você pensa sobre o melhor profissional no
Judiciário, se nós perguntarmos o que vem à mente duma pessoa? Ela vai imaginar
que seja um juiz homem, branco. Ela não vai imaginar que o melhor profissional
dentro de determinado espaço do Judiciário seja uma mulher.
Mas essas mulheres ainda, quando conseguem caminhar na
carreira e ascender na carreira, ocupar outros espaços acabam tendo outro
comportamento. Existem códigos não falados que nos impõe condutas e
comportamentos que mais se aproximam do gênero masculino do que o feminino. E
aí a mulher quando é mais dura em uma audiência, ela é tida como uma mulher
agressiva, destemperada, ou como se diz no ambiente doméstico, "você está
louca", ouvimos muito isso.
Ocupar espaços de poder ainda é um desafio e faz parte de
uma caminhada que não tem narrativas pretéritas para se mostrar como fazer, não
se tem know-how. Temos tribunais no país que não tem mulheres, tribunais
superiores, no segundo grau. Isso é simbólico, isso demonstra o quanto não se
pensa na questão.
Nos próprios tribunais superiores nós temos poucas
mulheres, o STF tem duas, nenhuma negra, STJ também tem poucas, nenhuma negra.
Isso tudo acaba se revelando, se traduzindo em práticas, em comportamentos.
Um exemplo, o crachá, o meu crachá diz Karen, juiz de
direito; muitos funcionários têm, Maria Júlia assessor de juiz, ou seja, é um
olhar masculino para um exercício feminino de um cargo, de uma função. Com
isso, claro, acabam se impondo condutas, comportamentos nos quais não se
consideram a existência e a humanidade uma mulher.
Esse machismo também se revela em algumas decisões,
comentamos em off, por exemplo, o caso de São Paulo, onde uma juíza culpou o feminismo por degradar a sociedade.
Nós somos o resultado de nossas circunstâncias, de como
nos constituímos, como vemos o mundo. Se você tem uma criação e uma vivência
que se aproxima ou se afasta desse olhar feminino, se você não tem leitura
sobre isso, se você não se interessa sobre essas questões, você vai reproduzir
comportamentos da sociedade, e a nossa é machista.
Por isso defendemos que a magistratura seja plural e
diversa, porque quanto mais pessoas partindo de diferentes lugares, de
diferentes espaços, mais visões diferentes sobre o mundo vamos ter. Se você só
tem homens brancos na magistratura, você vai ter a visão, a vivência e a
experiência do homem branco no mundo.
A experiência de um homem negro jamais será igual a de
uma mulher negra no Brasil, a experiência de homem branco jamais será igual de
uma mulher negra no Brasil, ele (homem branco) não tem um legado de escravidão
na sua existência. Pode ter um legado de migração com várias outras
circunstâncias que também são importantes e relevantes, mas ele não tem e não
carrega a história da escravidão, as privações que viveu uma mulher, como ela é
tratada socialmente, como ela é excluída socialmente, como ela é vista pelo
outro nos espaços, como isso impacta a sua existência.
Muitas vezes nos importamos como as pessoas reagem diante
de fatos e não se importa com o que elas sentem. Então assim, como uma pessoa
sente o racismo, como uma pessoa vive isso no seu dia a dia, o que ela
experimenta e a constitui como ser humano ou não. Acho que tudo isso tem que
ser considerado e por isso a necessidade de uma magistratura mais plural.
Tu és mulher, mãe, como tu vês o feminicídio,
a violência doméstica, como ela se reflete no Judiciário?
Avançamos muito, o sistema de Justiça como um todo, as
varas de violência doméstica colaboraram para isso, temos magistrados
preocupados, estudando essas questões. Mas sempre podemos melhorar. É muito
importante pensarmos, quando se fala em violência doméstica, em avaliar, dentro
do Judiciário o que faz, por exemplo, no caso de feminicídio, ou de uma
tentativa de feminicídio, aquela família, aquela mulher, chegar até ali.
Se houve uma morte acho que temos que tentar entender
essa história familiar. Quando o fato chega no sistema de Justiça, vamos nos
preocupar se morreu a mulher, foi morta sim, vamos nos preocupar em segregar
aquela pessoa que praticou aquela conduta contrária à lei e dar o devido
andamento ao processo para que ela tenha a punição e isso sirva de exemplo à
sociedade. Acho que temos que ir além, temos que entender o que fez aquela
família chegar até ali, ou aquele casal chegar até ali, mais do que isso, onde
falhamos enquanto Estado, enquanto sistema de Justiça e como podemos melhorar.
Quando recebemos uma vítima, quando o processo termina,
como fica o acompanhamento dessa mulher, dos seus filhos? Uma família que
perdeu uma mulher vítima de violência doméstica, vítima de feminicídio, como
fica esse entorno? Acho que temos que avançar nesse sentido para realmente
poder prevenir que isso aconteça.
As notificações vêm aumentando, isso é importante, acho
que se deve muito à globalização, como as comunicações hoje evoluíram, redes
sociais enfim, o conhecimento chega a essas mulheres, elas se sentem
encorajadas e falam e por isso as notificações aumentaram, de registros. Mas
precisamos chegar em um ponto em que se possa efetivamente compreender esse
fato social de violência doméstica e fazer com que exista uma redução, criar
mecanismos para que isso se reduza.
E esse clima de ódio que se vive no país?
Temos uma divisão muito forte. Estamos vendo a questão das fake news,
uma disseminação de uma cultura de ódio de classe, um ódio contra as ditas
minorias, indígenas, negros, mulheres, pobres, isso também contribui?
Na verdade eu vejo que hoje as pessoas se sentem mais
encorajadas, mais autorizadas a falarem o que sempre pensaram porque ninguém
acorda e passa a odiar alguém, isso é uma construção. Ao mesmo tempo, por trás
de um celular, por trás de um computador, é muito mais fácil dizer e
procurar disseminar algumas coisas. Temos uma sociedade que de um certo modo é
capturada por todas essas informações e se deixa absorver por tudo isso. Penso
que a inteligência artificial colabora para que isso se cole na gente.
Você tem que fazer um exercício muito grande para
enxergar algumas coisas, e aí o ódio vem à tona, as reações vêm à tona. Mas eu
acredito que, com relação à questão desse ódio, ele não é de hoje, não nasceu
hoje, ele sempre existiu. As pessoas só se sentem mais autorizadas a colocar
para fora tudo isso. O meu medo é com quem está chegando, e está se
constituindo em um momento da nossa sociedade, onde isso tudo está muito
aflorado nas pessoas.
Preocupa-me a educação, preocupo-me com as crianças,
adolescentes que estão vivendo esse momento social, e aí sim estão se
constituindo enquanto ser humano com nível de tolerância muito menor com
relação ao outro. Constituindo-se mais racistas, sexistas, machistas,
agressivos, violentos, não só fisicamente, mas por palavras. Vemos tantos
amigos sendo atacados virtualmente por expressarem suas posições e seu modo de
ver o mundo, e isso me preocupa.
Como sairemos disso, como enfrentaremos essas situações,
acho que não existe uma fórmula, se não acho que não teríamos chegado a esse
ponto. É preciso estar sempre atento para compreender os movimentos das placas
para ver para que lado elas estão indo e fazer uma leitura, uma análise de
conjuntura, o que está acontecendo com a nossa sociedade, para onde ela está
caminhando, para poder a partir daí construir outras narrativas e outros
olhares.
Eu sou muito esperançosa. Conversando com alguns colegas,
principalmente em momentos de maior tensão, onde a questão desse ódio começou a
se expressar com mais frequência, eu disse para eles, olha, a população negra
sempre viveu em clima de resistência, em clima de luta. E as pessoas não têm
essa compreensão de que nunca paramos de brigar, de lutar por um espaço. Então
esse momento que vivemos hoje é apenas mais um capítulo dessa história de
opressão, de reclusão social que estamos vivendo, nunca foi muito diferente
para nós.
Dentro disso, estamos vendo um extermínio da
juventude negra, nas periferias, nos morros, nas favelas.
Eu vivo uma realidade na vara do Júri, aqui no Rio Grande
do Sul não temos uma maioria da população negra, temos menos de 20% de negros.
Então autores de fato e vítimas que chegam até mim são brancos, negros, pardos,
todas as raças. Tínhamos no presídio Central quando foi gravado o filme Central,
30% de negros encarcerados, que é um número expressivo já que maior do que a
própria população do estado. Mas as estatísticas demonstram que a população
negra é o alvo.
E temos sim o extermínio da juventude negra, não sou eu
que estou dizendo isso, são os números, são as pesquisas, são os dados. E isso
é racismo, isso é resultado de um perfilamento racial, para começar. Porque
dentro do sistema de Justiça quando se vai tratar o processo criminal, ou fato
crime, existe um perfilamento racial.
Temos, como exemplo, o que acontecia nos Estados Unidos,
o que acontece ainda, onde várias pessoas já escreveram sobre isso, Michelle
Alexander escreveu muito bem, e ela fala que dentro da discricionariedade que
se dá aos agentes do Estado, o perfilamento racial vai agir negativamente sobre
um determinado grupo racial; dentro desse poder discricionário, elege-se
quem ele vai abordar, revistar, quem ele vai prender e quem ele vai acusar.
O espaço de discricionariedade acaba fazendo com que, por
causa do racismo, se tenha um perfilamento racial. Então o Estado tem um alvo,
e isso é construção social, não estou acusando o agente A ou o agente B, isso é
decorrência de construção social. Nós somos racistas, nós vivemos em uma
sociedade racista. Em uma sociedade racista uma pessoa negra, um homem negro,
um jovem negro é visto em primeiro lugar como um criminoso, para depois ser
enxergado como cidadão.
Isso é uma questão, então tu abordas, tu revistas, tu
prendes. E ao mesmo tempo é com esse que tu vais entrar em confronto policial,
é esse que vai ser o teu alvo para morrer, é esse que é o homem jovem excluído
socialmente, e ele que vai estar na periferia exposto, hoje, predominantemente,
ao tráfico e vivendo dentro dessa guerra de facções que acaba por eliminar um
grupo racial específico.
Mesmo aqui no Rio Grande do Sul, onde temos uma maioria
de população branca, teremos sim um grupo racial que está na base da pirâmide,
que está excluído socialmente, e que está mais exposto à criminalidade, e aí
ele será eliminado também em maior proporção que o grupo branco. E mesmo sendo
uma parcela um pouco maior de pessoas brancas, a maioria encarcerada são os
pobres, seja no presídio feminino quanto masculino.
São as mulheres pobres, os jovens pobres, os jovens
negros são os pobres, os que são mais expostos, que passam por mais privações,
que não recebem visitas, que a família tem mais dificuldade de fazer um
deslocamento para ir no presídio, porque o Estado não fornece, não tem a roupa,
não tem escova de dente, não tem a pasta de dente, não tem o mínimo para
sobreviver naquele mundo.
E aí o que acaba acontecendo, temos uma sociedade
paralela dentro do sistema prisional, e ele acaba se envolvendo naquele mundo,
sendo obrigado a fazer trocas, a contrair dívidas para serem pagas como um
chefe, um patrão entende como necessário.
Voltando à questão das mulheres, as leis de
proteção a elas, como Maria da Penha, a própria lei do feminicídio são
suficientes?
Elas são importantíssimas. Fizemos uma virada com essa
legislação que veio imposta para o Brasil, no que diz respeito à Lei Maria
da Penha, porque Maria da Penha teve que ir até a Corte de Direitos Humanos para
poder ver punido o seu agressor. Mas temos que caminhar, ir adiante. Como
disse anteriormente, pensar em outras questões que possam fazer com que essa
legislação um dia entre em desuso, temos que trabalhar para além do processo
judicial.
Compreender o fato social, compreender porque aquela
mulher está ali, e a partir disso, da história dessa mulher, tentar refazer a
história de outras mulheres, para que elas não sejam submetidas a relações
abusivas, violentas e para que elas tenham condições, autonomia econômica para
viverem sozinhas quando um relacionamento chega ao fim, não retornem a conviver
com esses homens, esses agressores, para que elas não se retratem, não tenham
medo, não silenciem. Para que elas possam ensinar as suas filhas um outro modo
de viver, para que essas meninas mulheres não enxerguem como única maneira de
estar no mundo seja estar ao lado de um companheiro ou de uma companheira.
Por isso acho que temos que ir além. Muitas pessoas
pensam que o Judiciário, que o juiz não é assistente social, psicólogo. Eu não
consigo compreender o exercício da jurisdição sem um olhar multidisciplinar
sobre os fatos que chegam. Se eu me limitar à aplicação da lei, eu vou estar
aplicando um instrumento jurídico que foi criado por alguém, para alguém em um
determinado momento da história que pode não servir mais para aquele fato que
está ali na minha frente.
E quando são o Código Penal, o Código Civil e tantas
outras leis temos que pensar o quanto a sociedade é dinâmica, o quanto as
relações sociais são dinâmicas. Então acho que temos que ter uma
compreensão do todo, e aceitar esse diálogo com outros profissionais para que o
resultado da jurisdição seja melhor, para que possamos ter um Direito
construído a partir de muitos olhares.
Quando falamos em racismo e machismo, como
isso se apresentou para ti, a questão do despertar?
Tem muitas coisas que dizem respeito ao racismo e ao
machismo que não percebemos quando muito jovens, não percebíamos. Essas novas
gerações já percebem, eu passo isso para as minhas filhas. Mas com o tempo, fui
percebendo como eu me formatei num padrão masculino e branco dentro do poder
Judiciário, e aí as minhas leituras, as minhas reflexões, os meus contatos com
vários movimentos e organizações é que me fizeram ter uma consciência sobre
quem eu sou, e como eu posso existir nesse mundo de maneira que seja contra
majoritária, digamos assim.
Eu fui me constituindo ao longo do tempo e me
transformando enquanto magistrada. A magistrada que ingressou há 21 anos no
Judiciário não é a mesma de hoje, ninguém é o mesmo. Mas no caso de uma mulher
negra isso é mais forte ainda, por isso eu chego aqui e consigo exercer essa
representatividade crítica com mais conforto.
Primeiro precisei ter consciência acerca da minha imagem,
da cor da minha pele, entender que o meu nariz não era um nariz feio, que os
meus lábios grossos eram decorrentes da minha raça, que meu cabelo crespo é um
cabelo bonito, que a minha existência é uma existência importante, que eu não
preciso eliminá-la para poder ser aceita socialmente, que eu posso ser assim
com sou.
Queria comentar como deve ser importante para
uma pessoa negra estar sendo julgada por uma juíza negra, se enxergar...
Isso está ligado à questão do reconhecimento, se
reconhecer e se enxergar no outro. Muito interessante porque muitas vezes as
pessoas chegam a mim em situações bastante difíceis, mas elas conseguem até
sorrir e se surpreendem quando me veem. Se surpreendem os negros positivamente.
Não raras vezes, em outras situações, estudantes me olham
com os olhos marejados e dizem como é bom lhe ver aqui nesse espaço, porque
agora eu posso acreditar. Uma questão inclusive de credibilidade do poder, como
é que eu, pessoa negra, vivendo em um Estado de opressão, de exclusão social,
vou compreender que um poder predominantemente branco vai entender a minha
humanidade, se toda a sociedade não entende.
Quando se vê alguém negro ocupando esse espaço há maior
credibilidade, legitimidade para o próprio poder. Eu venho insistindo nisso, às
vezes a gente recebe algumas críticas, que é uma questão de democracia,
democracia racial passa por isso. A decisão pode ser desfavorável ao indivíduo,
mas ele vai compreender o espaço como plural e diverso, estando representado
nele.
Outras leituras dos fatos, do fato social como ele
acontece. Dia desses, sentou na minha frente uma mulher, ela chorava a morte do
filho, era mãe de uma vítima. Falo chorava como uma figura de linguagem, ela
estava ali, mãe de vítima. Mas víamos que ela guardava uma certa frieza com relação
àquela situação.
Aí no meio do depoimento, ela, uma mulher negra, e eu
falo isso porque eu acho que é muito importante a questão da dentição, ela
tinha só um dente na boca, para que possam perceber onde ela estava, que lugar
da sociedade ela está ocupando. Oito filhos, e aí todo mundo se espanta, com
oito filhos, sozinha, sem um companheiro, e nesse momento enquanto a gente se
espantava por ela estar tão fria com relação à perda do filho, embora
demonstrasse dor, achei que era o momento de podermos ouvir um pouquinho da
história dela.
Eu peço para que conte aquela história. Isso não iria
interferir no resultado do processo, mas eu acho que a gente tem que aprender a
ouvir, de onde veio essa mulher, porque esse filho chegou a essa situação,
porque ele morreu dessa forma, o que a fez ter oito filhos sozinha, os
companheiros para onde foram. Acho que o Judiciário tem que estar permeável a
essas questões, tem que absorver essas histórias para que elas informem a
decisão judicial, preciso me informar na decisão judicial disso também, não tem
como eu decidir sobre o mundo se eu não o conheço.
O que significa o dia 8 de Março pra ti?
Para mim, como mulher negra, ele é um dia no qual é
claro, é um dia de luta, não tem que comemorar o 8 de Março, temos que tentar compreender
essas lutas que foram realizadas e tantas conquistas que foram realizadas por
mulheres. Mas não posso deixar de chamar atenção que o dia 8 de Março para uma
mulher negra é um 8 de Março completamente diferente daquele de uma mulher
branca.
Enquanto as mulheres brancas pretendiam algumas
conquistas, como, por exemplo, espaço no mercado de trabalho, as mulheres
negras e a escola de samba Viradouro contou a história das ganhadeiras, estavam lavando roupa, passando,
eram as negras de tabuleiro, falando só do nosso país, para não falarmos no
cenário internacional.
Então para mim marca um dia no qual temos muito a pensar
sobre como nós mulheres negras temos que nos colocar socialmente e ainda lutar
para ter as mesmas conquistas das mulheres brancas, para que um dia uma mulher
negra não ganhe menos que um homem negro, que uma mulher branca, que um homem
branco, para que um dia uma mulher negra não seja o alvo preferido nos feminicídios
e nas violências domésticas, para que um dia uma mulher negra tenha mais
educação, para que um dia uma mulher negra possa deixar os seus filhos em boas
condições e sair para trabalhar.
Para que um dia uma mulher negra não tenha que sentir a
dor por perder o seu companheiro, seu filho, seu irmão, porque é essa mulher
que chora todas as suas perdas, enquanto os jovens e os homens são os
alvos preferidos e as vítimas prediletas nesse genocídio que vivemos. As
mulheres negras são as que restam solitárias com as suas famílias e vivem as
dores dessas perdas.
Se a população brasileira é composta em sua maioria por
pessoas negras, todas essas pessoas negras vieram de uma mulher negra, e
lamentavelmente a nossa sociedade ainda não tem colocado essas mulheres no
lugar que lhes é devido.
Então o dia 8 de Março para mim é um dia de muita
reflexão, de esperança sempre, mas também de muito lamento pelo quanto ainda
nós somos oprimidas e excluídas socialmente. Se eu represento, acho que as
represento criticamente dentro do Judiciário, isso me orgulha muito.
Ser uma mulher que estou aqui e não estou exercendo uma
jurisdição sem fazer a crítica social e sem ter a consciência do meu papel,
porque eu sei também que eu sou a referência para tantas outras mulheres que me
dizem claramente que tem hoje a esperança de poder ocupar um espaço como o meu.
Nesse sentido acho que é uma data importante por isso, para que eu possa
referenciar a outras mulheres.
Edição: Katia Marko e Leandro Melito – Brasil de Fato Rio Grande do Sul
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