A violência como propaganda imperialista nos filmes hollywoodianos
Há muito mais que distração nas megaproduções
da indústria do cinema norte-americano; este artigo nos ajuda a perceber narrativas
de dominação por trás do aparente entretenimento.
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Por Raphael Fagundes – Le Monde Diplomatique Brasil
21/04/2020
A maior parte dos filmes norte-americanos tem a intenção
de exibir a superioridade bélica do Tio Sam justificando o seu domínio
sobre o planeta. É preciso observar, entretanto, o poder mimético dos filmes
hollywoodianos para compreender essa questão. Essas mercadorias retratam situações
que dificilmente aconteceriam na vida real, realidades imaginadas, para em
seguida mostrar as formas de solucionar o problema. Se uma equipe de ladrões,
por exemplo, invadisse a minha casa e matasse minha esposa e filhos, sei que
não conseguiria me vingar fazendo justiça com as próprias mãos, mas os filmes
hollywoodianos projetam esse desejo de forma hiperbólica na tela.
O mesmo aconteceria se alienígenas invadissem a Terra, ou
se algum ciborgue do futuro viesse dizimar a humanidade. Hollywood apresenta
para o mundo as formas de resolver problemas imaginários despertando os nossos
desejos de vingança, de violência, os quais a realidade impede a concretização.
Se a realidade fosse vendida no cinema, certamente não atrairia muitos
espectadores.
É deste modo que a violência é agenciada nos filmes
produzidos pela indústria hollywoodiana. Destacam-se os americanos como os mais
aptos a resolver tais problemas, seja uma vingança familiar ou uma ameaça
global. Mostram-se, portanto, superiores na escala evolutiva. Um discurso que
se preserva velado, mas que no século XIX era a razão legítima para se usar a
violência. As ideias de Adam Smith sobre livre concorrência foram convertidas
pelos ideólogos do Oitocentos para legitimar a violência. Daí seguiram-se as
ideias de Malthus, Darwin e Spencer, que legitimavam a violência, inclusive “a
sobrevivência do mais capacitado”1. Uma das formas que os
Estados Unidos mostram-se como os mais capacitados a resolver problemas
diversos é pelo seu poder de fogo. Muitos filmes criam problemas que conduzem
para uma resolução bélica, de modo que os norte-americanos seriam (por terem um
grande arsenal) os guardiões do mundo e justiceiros por vocação.
Exterminador do Futuro: destino sombrio
Como disse E. Ann Kaplan, a representação da mulher no
cinema vem perdendo “as características femininas tradicionais – não aquelas da
sedução, mas antes as de bondade, humanidade, maternidade. Agora ela é quase
sempre fria, enérgica, ambiciosa, manipuladora, exatamente como os homens cuja
posição usurpou”. Ela assumiu a posição “masculina”, contudo, “mantendo assim a
estrutura, como um todo, intacta”2. O Exterminador do
futuro: destino sombrio é mais um no meio dessa nova forma ideológica.
Entretanto, esta produção diz algo mais.
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Seu conteúdo político é bem curioso. Como destacaram Leif
Furhammar e Folke Isaksson, “o cinema não vive num sublime estado de inocência,
sem ser afetado pelo mundo; tem também um conteúdo político, consciente ou
inconsciente, escondido ou declarado”3.
Uma das primeiras cenas do filme nos mostra um elemento
que muitos acham convincente: a introdução de uma máquina no
trabalho de Dani Ramos, a mulher que, no futuro, lideraria a resistência,
desempregou o seu irmão que em seguida é morto por uma máquina que
veio do futuro para assassinar a jovem. Esse raciocínio contempla uma formação
discursiva que circula com frequência a qual atribui às máquinas e não ao
modelo econômico neoliberal a razão pelo desemprego. Aqui cabe lembrar o que disse
Karl Marx sobre o movimento ludista: “Era mister tempo e experiência para o
trabalhador aprender a distinguir a maquinaria de sua aplicação capitalista e
atacar não os meios materiais de produção, mas a forma social em que são
explorados”4.
Mas o discurso imperialista se apresenta no poder de fogo
dos Estados Unidos, na sua capacidade incomparável de produzir violência (forma
absoluta para a resolução de problemas). Nesta aventura, duas estadunidenses
dedicam-se a salvar uma mexicana do seu país para, a partir dos Estados Unidos,
salvar a humanidade. Seria impossível salvar o mundo a partir do México, pois
as melhores armas, o poder de fogo mais potente do universo, estão ao norte do
Rio Bravo. Aliás, até o exterminador clássico, Arnold Schwarzenegger, mora lá.
John Wick 3
John Wick nos mostra o
nosso voyeurismo para com a violência. Isso é proveniente do noticiário que não
somente isola a violência do contexto político, econômico e social, como também
a espetaculariza, a dramatiza. Apenas de 5% a 10% dos crimes são aberrantes,
mas são justamente estes que excitam a multidão. À curiosidade que despertam,
ao voyeurismo do público, os filmes respondem representando-os na tela. As
imagens de terror podem não nos transformar em terroristas, mas certamente em
voyeurs5.
Aqui o mimético é ainda mais impressionante, pois a
imagem-excesso de que falam Lipovetsky e Jean Serroy é o ponto alto do filme6. Trata-se
do hipercinema. O impossível é hiperbolicamente representado, como um homem que
mata dezenas de pessoas por terem matado o seu cão e roubado o seu carro. Em
uma situação como esta, sentiríamos raiva, evidentemente, todavia, sabemos que
é impossível que uma máquina de guerra seja ativada pelas circunstâncias
geradoras da intriga do filme. Mas, como dizia Edgar Morin, deixamos a nossa
parte maldita se vingar na tela. Lá no fundo, ao ver todas as cenas brutais,
pensamos: “eles bem que mereciam” ou “John Wick é f…”. Isso explica o sucesso
do filme.
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O espectador não apenas se excita em ver a violência, mas
vê o seu ingresso sendo bem recompensado, pelo excesso de tomadas, de sangue e
de morte. Paga-se por um excesso de conteúdo. Trata-se do hiperconsumidor.
A condição planetária do cinema de que fala Massimo
Cenevacci é destacável no filme7. Várias nacionalidades são
representadas. Mas a ideia imperialista aparece de forma sucinta, pois o hotel
Continental de Nova York é o único que enfrenta a Alta Cúpula mundial dos
assassinos e ainda consegue negociar. O mundo se rende aos Estados Unidos. A
cena em que Wick pede mais poder de fogo ao gerente Winston para resistir à
invasão dos soldados da Alta Cúpula, refere-se ao poder de fogo
norte-americano, enquanto o hotel bielorrusso foi invadido por meros
espadachins. Contudo, o hotel de Nova York mostrou-se um traidor ao tentar
matar o protagonista. Vamos esperar se esse ato de traição será explicado no
próximo filme. Duvido muito que os norte-americanos sejam representados como
traidores…
Bad Boys: para sempre
Em Bad Boys: para sempre, Mike sofre um atentado a tiros que o deixa acamado à beira da morte. Marcus então vai à igreja pedir para que Deus salvasse a vida do seu parceiro de longa data, em troca, faz uma promessa: jamais voltaria a usar a violência. Contudo, em meio a uma perseguição alucinante, Mike, já
recuperado, diz para seu parceiro que a arma que estava à sua disposição foi um
presente de Deus para combater o inimigo. Marcus seria Davi, que, também, por
sua vez, usou da violência para matar Golias.
Como mostrou Danilo Angrimani, em seu provocativo estudo
sobre a imprensa sensacionalista, em termos freudianos, Hollywood usa valores e
fantasias-clichês para legitimar a violência, “senão, ninguém conseguiria
assistir a esse gênero de filme, comendo pipoca na sala do cinema”8. E
a Bíblia foi usada em Bad boys: para sempre como um valor que
legitima a matança. Mesmo que Cristo tenha fundado uma religião pacifista,
aconteceu com o cristianismo o mesmo que aconteceu com o budismo, que aceitou o
samurai como uma fonte de força e autodomínio.
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O relacionamento entre armas e religião é um forte mote
conservador nos Estados Unidos que vende tal princípio para as várias partes do
mundo.
Outro aspecto conservador do filme é a representação do
México como um território hostil. Quando os dois policiais-heróis chegam à
Cidade do México, os mexicanos olham para eles como se os estadunidenses fossem
os salvadores, os que iriam restaurar a ordem. Até a vilã mexicana é descrita
como diabólica, uma bruxa que mexia com forças sobrenaturais. A violência, portanto,
seria justa já que se está enfrentando o demônio, no mesmo estilo da doutrina
da “guerra justa” criada por Santo Agostinho no século V.
Um jovem, que fazia parte da equipe dos policiais, ficou
traumatizado tempos atrás por agredir um homem que violentava uma mulher. Desde
então, decidiu não usar a violência. Mas no ápice do filme, Mike (que se
aproxima do ateísmo ao decorrer da narrativa) disse que o rapaz precisava matar
os bandidos, depois pagaria a terapia. Há uma razão divina e uma cura terapêutica,
tanto faz, o importante é usar a violência. As indústrias de armas que bancam
as eleições conservadoras agradecem.
Rambo: até o fim
Diferente do que acontecia nos anos 1990, quando filmes
como Um dia de fúria retratavam a visão reacionária do uso da
violência contra estrangeiros em solo americano, anunciando a ideia de uma
América ameaçada, os filmes atuais buscam atacar os mexicanos em seu próprio
território.
O ataque aos vizinhos da fronteira sulista é feito de
várias maneiras. Em Exterminador do futuro: destino sombrio,
mulheres americanas salvam uma jovem mexicana do seu próprio país para que ela
possa salvar a humanidade a partir dos Estados Unidos. Em Bad Boys:
para sempre, negros vão ao México matar uma bruxa. Nesse último Rambo (“Até
o fim”), o homem branco protetor da família vai ao México destruir uma rede de
tráfico de meninas. Uma jovem, que John Rambo considera sua filha, cruza a
fronteira em direção ao México (com apenas 17 anos!) à procura do seu
verdadeiro pai. Mas ao encontrá-lo, a menina é rejeitada pelo progenitor que
diz não querer vê-la novamente. Em seguida, ela sai com uma amiga para se
distrair do choque, mas sua colega a trai entregando-a aos traficantes donos de
uma rede de prostituição. A inocência da menina bem criada nos Estados Unidos
foi destruída ao pisar em solo mexicano.
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O ápice do filme é ainda mais intrigante. Rambo usa a
própria terra, o solo estadunidense (Arizona), onde deposita várias armadilhas,
para matar todos os mexicanos que atravessam a fronteira para caçá-lo depois de
ter matado violentamente um dos irmãos traficantes que provocou a morte de sua
tão amada menina.
Tanto filmes ditos progressistas, quanto conservadores,
estão usando um discurso contra o México, velado ou abertamente. Ora são
mulheres, ora negros, ora o homem branco protetor da América tradicional, não
importa, o mexicano é o grande inimigo dos estadunidenses. Uma ideologia
ridícula, mas que Hollywood vende em massa.
Velozes e Furiosos
Somente um tolo pode acreditar que a função de um
blockbuster é apenas entreter. Na primeira cena de Velozes e Furiosos 8,
Dominick Toreto (Vin Diesel) está em Cuba com sua esposa e se depara com um
cubano marrento, dono do carro mais veloz da ilha. Toreto aposta que o venceria
em uma corrida, mesmo pilotando um carro mais lento. “Reforma” a “lata velha”
turbinando-a através de uma engenhosidade que envolve o anel de uma latinha de
Coca-Cola acoplada ao motor junto a um nitro. Pronto! Num racha espetacular,
vence o cubano que oferece o seu lindo carro como prêmio. Mas Toreto diz: “não
quero seu carro, apenas seu respeito”.
Há apenas entretenimento nisto? Ou um discurso
imperialista norte-americano de superioridade em relação à ilha comunista? Ou
um discurso de que as empresas capitalistas (Coca-Cola e cia) podem tirar Cuba
do atraso?
Além disso, é característico desses filmes descrever um
vilão como detentor de um bom discurso, mas de uma péssima solução. A vilã
Cipher (Charlize Theron), não quer que as superpotências excedam o poder que
têm, já que podem destruir o mundo em um piscar de olhos. A solução da hacker
criminosa é se apoderar de ogivas nucleares para ameaçar as superpotências. Um
clássico! Mais sugestivo ainda é o filme que se sucedeu, Velozes e Furiosos:
Hobbs e Shaw. Há um plano da inteligência artificial que manipula o
vilão Brixton Lore (Idris Elba) de criar uma nova raça, uma espécie de junção
entre humanos e máquinas, que seria a próxima etapa da humanidade, o
além-homem, bem ao estilo ubermensch de Nietzsche em Assim
falava Zaratustra. Não é à toa que o agente Hobbs cita o filósofo alemão em
certa altura do filme. O vilão diz que a humanidade preza pelo ódio e que até
2096, por causa de diversos problemas, incluindo capitalismo, terrorismo,
poluição etc., a Terra iria se destruir. O vírus, pelo qual o “bem” e o “mal”
disputam ao longo da aventura, é interpretado por Lore como sendo “um choque
necessário ao sistema”. Ou seja, a solução é mais uma vez absurda: a
transformação do homem em máquina e a disseminação de um vírus.
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Hollywood nunca apresenta uma solução possível aos
problemas criados pelo capitalismo, consumismo etc., e no final de suas
produções, os heróis salvam o mundo deixando-o exatamente do jeito que é.
Parece que a melhor solução é deixar tudo como está, de modo que, pode até ser
ruim, mas não há nada melhor no momento… Parece-me que, contudo, ao apresentar
a cena em Cuba, no início de Velozes e Furiosos 8, há um receio,
por parte de Hollywood, de uma solução real, a solução socialista, que,
inclusive, vem crescendo muito entre os estadunidenses. Por isso se esforça em
reproduzir as condições sociais de existência, omitindo soluções tangíveis,
através de seus blockbusters.
***
Nesses tempos de crise e confinamento, muitos vão
procurar os filmes de Hollywood para obter um mínimo de distração. Contudo, é
preciso tomar muito cuidado com as mensagens da indústria cultural. Manter o
senso crítico é de suma importância, procurar instrumentos sociológicos e
filosóficos para fazer a interpretação de tais mercadorias torna-se
indispensável para que não nos tornemos meros zumbis perante à tela.
1 GAY, Peter. O cultivo do
ódio: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. Trad: Sérgio Flaskman.
São Paulo: Cia das Letras, 1995, p.46.
2 KAPLAN, E. Ann. A mulher e o
cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p.52.
3 FURHAMMAR, L. e
ISAKSSON, F. Cinema e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p.6.
4 MARX, Karl. O capital:
crítica da economia política: livro 1, v.1. Trad. Reginaldo Sant’Ana, 30ed.,
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012, p.489.
5 HIKIJI, R.
Imagem-violência: Mimesis e reflexividade em alguns filmes recentes.
Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 1998, p.65.
6 LIPOVETSKY, G. e
SERROY, J. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto
Alegre: Suína, 2009, p.71.
7 HIKIJI, op.cit.
8 ANGRIMANI, D. Espreme que
sai sangue. São Paulo: Summus, 1995, p.39.
Raphael Fagundes é
autor do livro Herdeiros da Facúndia: uma análise da retórica política
nos sermões do padre António Vieira e nas celebrações do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro.
Artigo originalmente publicado em 20 de abril de 2020 pela Le Monde Diplomatique Brasil.
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