Amazônia: mais de 200 terras indígenas têm alto risco para Covid-19
Estudo inédito mostra, ainda, que menos de 10% dos
municípios brasileiros com terras indígenas possuem leitos de UTI.
Foto: Alex Pazuello/Semcom - Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública |
Por Anna
Beatriz Anjos e Bruno Fonseca – Agência Pública
23/04/2020
Está na Amazônia a maioria das Terras Indígenas (TIs) em
situação crítica para a pandemia do coronavírus no Brasil. Além de sete
territórios com maior fragilidade, os estados da Amazônia Legal possuem 239 TIs
com índices de vulnerabilidade intensos ou altos em relação à Covid-19.
Os dados estão em um estudo recém-publicado pela
Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) a que a Agência
Pública teve acesso. No trabalho, demógrafos, antropólogos, geógrafos e
economistas avaliaram 471 TIs em relação à vulnerabilidade à pandemia de
coronavírus.
O estudo levou em consideração fatores como a distância
de centros com unidades de terapia intensiva (UTI), saneamento e porcentagem de
idosos na população, entre outros. E um dos dados é alarmante: de 1.228
municípios brasileiros onde há ao menos um trecho de TIs, apenas 108 possuem
algum leito de UTI. Além das TIs, os pesquisadores avaliaram que seis Distritos
Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) estão em situação crítica, todos eles
nos estados da Amazônia Legal.
Um deles é o Yanomami, em Roraima, onde está a TI de
mesmo nome. Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), submetida
ao Ministério da Saúde, o distrito já registrou uma morte: a de um menino
Yanomami de 15 anos. Alvanei Xirixana faleceu no início de abril, após seis
dias internado na UTI do Hospital Geral de Roraima (HGR), em Boa Vista.
Os indígenas estão entre as populações com mais risco
para a Covid-19 devido à própria vulnerabilidade social e histórica a que esses
povos estão submetidos, explica Marta Azevedo, demógrafa, indigenista,
ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e uma das autoras do estudo.
“Todos os indicadores demográficos de saúde são piores entre os indígenas. A
taxa de mortalidade é mais alta entre todas as raças, a de mortalidade materna,
mesmo controlando o nível socioeconômico”, afirma.
Por isso, “o ideal é que o vírus não entre nas aldeias”,
declara a médica sanitarista Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu,
programa de extensão da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que há mais
de 50 anos atua no atendimento dos povos da bacia do rio Xingu. “É preciso
interromper o acesso a essas comunidades, mas mantendo a comunicação e a
criação de estratégias junto com os indígenas”, diz. Por si mesmos, os povos
indígenas têm tomado medidas para evitar que o vírus os atinja: são vários os
casos de etnias que têm bloqueado os acessos às aldeias, por exemplo.
UTI, um gargalo ainda maior para os indígenas
O levantamento da Abep mostra que todas as TIs em
situação mais crítica para enfrentar a Covid-19 possuem um fator em comum:
estão distantes dos centros urbanos com UTIs.
Para se ter uma ideia, a TI Acapuri de Cima – a mais
crítica de todo o estado do Amazonas –, habitada pelos Kokama, está a quase 700
km em linha reta da cidade de Manaus, o único município do estado que possui
leitos de UTIs para tratamento dos casos mais graves da Covid-19. Atualmente,
mesmo Manaus já está com o sistema de saúde em colapso: o Hospital Delphina
Aziz, unidade de referência para atenção às vítimas do coronavírus, atingiu sua
capacidade máxima em 10 de abril, assim como os outros três hospitais de apoio
na cidade.
No Amazonas, indígenas são transportados até Manaus caso precisem de UTIs, onde o sistema de saúde já está em colapso. Foto: Alex Pazuello/Semcom |
No estado do Amapá, não há nenhum município com UTI; em
Roraima e no Acre, os leitos de tratamento intensivo existem apenas nas regiões
metropolitanas das capitais.
A sobrecarga do SUS é fator de risco para os indígenas
tanto quanto para a população em geral. O Subsistema de Atenção à Saúde
Indígena (SasiSUS), que engloba 34 DSEIs, cuida de ações de saneamento e da
atenção básica de saúde nas aldeias, como o acompanhamento de pacientes com
doenças crônicas. Administrado pela Sesai, ele foi instituído por lei em 1999
para que as ações e serviços de saúde voltados para os povos indígenas sejam
prestados de forma diferenciada, considerando suas especificidades culturais,
epidemiológicas e territoriais – e, inclusive, abrangendo os saberes
tradicionais dessas comunidades.
No entanto, não é atribuição dos DSEIs o atendimento de
média ou alta complexidade, que demanda profissionais especializados e recursos
tecnológicos, como no caso das internações em leitos clínicos ou UTI. Isso
significa que, se um indígena apresenta suspeita de Covid-19 e seus sintomas
são leves, ele pode ser tratado pela equipe de saúde de sua própria aldeia,
“mas será necessário, dependendo da situação clínica desse paciente,
encaminhá-lo para um serviço de referência. Ele segue então para um polo-base,
onde poderá ter acesso a exames – como a testagem para o coronavírus”, explica
a médica Sofia Mendonça. “Porém, se não estiver bem, tem que ir para uma
unidade que atenda média e alta complexidade”, afirma.
“Esse vai ser o nó dessa epidemia”, diz a também médica
Ana Lúcia Pontes. “A capacidade dos serviços de saúde é limitada, o sistema
público já vinha num contexto de estrangulamento há anos com cortes de gastos,
a população já enfrentava muitos problemas de desassistência, e agora, de uma
vez só, tem um conjunto muito grande de pessoas necessitando dessa ajuda”,
destaca a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
(Ensp/Fiocruz) e coordenadora do Grupo Temático Saúde Indígena da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Por isso, há uma preocupação especial entre os povos
indígenas com a disponibilidade dos leitos de UTI. “A partir do momento em que
foi identificado um caso e vai precisar de atendimento pelo estado, essa é a
questão. Como o município e o estado vão receber o indígena? Vai ter vaga?”,
questionou a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente
Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, em entrevista
online a jornalistas no começo do mês. “Se estão faltando leitos para os não
indígenas, imagina para os indígenas, que estão longe.”
A inquietação da deputada tem base em números: de acordo
com o Instituto Socioambiental, mais de 80% da extensão de todas as TIs do país
se concentram no Norte, justamente a região que, junto com o Nordeste, dispõe
dos maiores desertos de UTI no país. “É certo que isso torna os povos indígenas
mais vulneráveis ainda, junto com os ribeirinhos, quilombolas e populações que
vivem naquela região. Precisa-se assumir, enquanto política pública, que os
indígenas são um grupo vulnerável, um grupo de risco”, argumenta Sofia
Mendonça.
A insuficiência de leitos de terapia intensiva somada à
velocidade com que pode evoluir o quadro clínico da Covid-19 faz com que as
pesquisadoras ouvidas pela Pública chamem atenção para a importância de
estabelecer estratégias específicas para a atenção aos povos indígenas. No
início do mês, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) enviou cartas
a todos os governadores do Brasil pedindo justamente que os planos emergenciais
para atendimento dos pacientes graves de municípios e estados incluam a
população indígena, “deixando explícitos os fluxos e as referências para o atendimento
em tempo hábil, em articulação com a Secretaria Especial de Saúde Indígena
(Sesai) e DSEIs”.
Outra reivindicação da Apib, em alerta emitido no dia 18
de abril, é a construção de hospitais de campanha exclusivos para indígenas,
como o Ministério da Saúde anunciou que fará em Manaus.
Sistema de saúde indígena é focado na baixa complexidade; Ministério da Saúde adiantou vacina contra a gripe. Foto: Alex Pazuello/Semcom |
Falta de demarcação de terras é bandeira de
Bolsonaro e aumenta vulnerabilidade
Apesar de a Amazônia Legal concentrar a maior parte das
terras mais vulneráveis, há territórios indígenas em situação crítica por todo
o Brasil – e um dos fatores é falta de conclusão na demarcação das TIs. Entre
as dez terras mais vulneráveis ao coronavírus no país, sete estão com
demarcação incompleta.
A região com a maior quantidade de territórios que ainda
não passaram pela homologação – a última etapa do processo de demarcação – é o
Sul do Brasil. Fica em Santa Catarina o maior número de territórios nessa
situação: o estudo mapeou três TIs em situação de vulnerabilidade crítica que
não tiveram a regularização concluída.
Uma delas é justamente a com uma das situações mais
críticas de todo o Brasil, a Guarani do Araça’i, no extremo oeste do estado,
habitada por populações Guarani e Guarani Ñandeva. Além de três terras em
situação crítica, em Santa Catarina há dois outros territórios não demarcados
em situação de vulnerabilidade alta e intensa.
Como aponta o estudo, em territórios não demarcados é
mais fácil a entrada de não indígenas e mais difícil estabelecer o isolamento
das comunidades. Segundo os pesquisadores, nesses locais os indígenas são mais
expostos a “possíveis contaminações por outras doenças e também pelo
coronavírus”.
O governo Jair Bolsonaro não homologou nenhuma TI, apesar
de ter herdado do governo anterior mais de 50 com processo julgado e que
poderiam ter sido demarcadas. O governo Bolsonaro foi acusado pelo Ministério Público Federal de manobrar para travar a demarcação de TIs no Brasil, por meio
de pedidos de análises de estudos já realizados e a constante troca de
funcionários e atribuições da Funai. Antes mesmo de assumir, o presidente já
havia declarado que “no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra
indígena”.
Nas TIs, falta saneamento e população está
envelhecendo
Além da distância de hospitais com UTIs e falta de
demarcação, as TIs têm outro ponto de vulnerabilidade na pandemia: a falta de
saneamento. Segundo o estudo apontou, cerca de quatro em cada cinco domicílios
nos territórios indígenas não possuíam abastecimento de água, de acordo com o
último Censo, de 2010. Mais da metade das terras tinham todos os domicílios sem
acesso a tratamento de água.
Afora o baixo acesso a água tratada, o trabalho apontou
que quase um terço dos domicílios em terras indígenas não possuía banheiro de
uso exclusivo, um indicador de falta de saneamento. A falta de sanitário também
pode aumentar a possibilidade de contágio por doenças infecciosas, no caso de
banheiros compartilhados. A maior parte das terras sem banheiro de uso
exclusivo fica no Amazonas.
Outro elemento de vulnerabilidade é o envelhecimento da
população: o Censo de 2010 já havia apontado 17 TIs onde pelo menos um quinto
da população tinha mais de 50 anos de idade, fator considerado de risco para o
coronavírus. A maioria desses territórios está na Amazônia Legal, mas também há
uma grande proporção de indígenas idosos em TIs nas regiões Sul e Nordeste e no
Mato Grosso do Sul.
Por fim, há ainda seis TIs com mais de dez moradores por
domicílio, a maior parte no estado do Mato Grosso.
A morte de indígenas idosos pela Covid-19 não é só uma
consequência nefasta do ponto de vista da saúde pública, mas também no aspecto
cultural, afirma o antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da Funai. “A chegada
do coronavírus é uma ameaça muito grande da perda eventual de pessoas
detentoras de grandes conhecimentos”, declarou Meira em entrevista ao portal Amazônia
Real. “Se um ancião se for, vai com ele toda uma história. Os jovens
dependem totalmente dessas pessoas para receberem o conhecimento das tradições,
que só eles possuem. É uma população pequena, mas com importância cultural
imensa.”
Indígenas em cidades são deixados de fora da
contagem
A Sesai tem divulgado diariamente dados sobre casos
confirmados e óbitos por Covid-19 entre indígenas. No entanto, a Apib e
especialistas afirmam que os números podem estar subestimados, já que a
secretaria contabiliza e atende apenas pessoas que vivem em aldeias. Por
exemplo, no momento, enquanto a Sesai registra três mortes pela doença, a Apib
conta sete.
Em um segundo alerta, a organização “repudiou” a
diferença de contagem e classificou a situação como uma “ação de racismo
institucional que invisibiliza e desassiste os povos indígenas que vivem em
áreas urbanas”. “Somos indígenas dentro ou fora de nossos territórios. Estamos
em uma situação de grande vulnerabilidade, com risco real deste novo vírus
causar outro genocídio”, diz o texto.
De fato, uma portaria de 2004 determina que a saúde
indígena deve ser voltada para as “populações aldeadas”. Mas existe uma
discussão em torno do assunto. Para Ana Lúcia Pontes, isso pode gerar
subnotificação. “Não será possível fazer uma análise da progressão da epidemia
na população indígena brasileira. Só vamos ter dados sobre quem estava dentro
dos territórios. Nesse sentido, parte da população ficará inviabilizada”,
aponta. “Tem que haver o acompanhamento de um cenário epidemiológico indígena
amplo e plural.”
Os indígenas que vivem em áreas urbanas, mas fora de
aldeias, normalmente já encontram dificuldades para acessar os serviços de
saúde e muitas vezes precisam suprimir sua identidade para conseguir
atendimento no SUS. Com o sistema de saúde sobrecarregado por causa da pandemia
e fora da abrangência de políticas específicas, sua situação pode piorar.
“Entendemos que a Sesai não tem como garantir a assistência a essas pessoas,
mas é possível estimular as secretarias municipais e estaduais a olharem para a
população indígena urbana e garantir que esteja devidamente acompanhada e
identificada”, afirma a médica.
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