Como a China descobriu o novo coronavírus semanas antes de anúncio da pandemia
De início, médicos chineses acreditavam se tratar
de pneumonia, mas os pacientes não estavam respondendo aos tratamentos normais.
Por Du Xiaojun, Vijay Prashad e Weiyan Zhu
Tradução:
Ítalo Piva
Via Brasil de Fato
08/04/2020
A Organização Mundial da Saúde declarou uma pandemia global no dia 11 de março, a "primeira
pandemia causada por um coronavírus”, segundo Tedros Adhanom Ghebreyesus,
diretor-geral da OMS. "Nas últimas duas semanas, o número de casos de Covid-19
fora da China aumentou 13 vezes, e o número de países afetados triplicou”,
anunciou na ocasião.
Visita do presidente Xi Jinping a Wuhan, primeiro epicentro da Covid-19, em 10/03/2020. Foto: Governo da China/Foto Públicas |
A partir do dia 11 de março, ficou claro que o vírus era
letal e tinha a capacidade de se alastrar pela sociedade com facilidade. Mas
isso nem sempre foi tão claro.
No dia 17 de março, Kristian Andersen do Instituto
Scripps de Pesquisa (EUA) e sua equipe demonstraram que o novo coronavírus,
SARS-Cov-2, possuía uma mutação genética conhecida como clivagem polibásica
local, jamais vista em outros coronavírus encontrados em morcegos ou pangolins.
Andersen apontou também que é possível que o vírus já
teria sido contraído por humanos, e não necessariamente na cidade
chinesa de Wuhan, primeiro epicentro do contágio. Em uma pesquisa
publicada no dia 20 de fevereiro, Chen Jinping e seus colegas do Instituto
Aplicado de Recursos Biológicos de Guandong, mostram que seus dados não
indicavam que o novo coronavírus encontrado em humanos teria evoluído
diretamente daqueles encontrados em pangolins.
“Embora a Covid-19 tenha aparecido primeiro na China, não quer dizer que originou lá”, disse
o renomado epidemiologista chinês Zhong Nanshan.
Estudos científicos continuarão e eventualmente nos darão
um entendimento conclusivo sobre o vírus. Por enquanto, não há clareza de que
a origem seja um mercado em Wuhan. A mídia ocidental tem
constantemente feito declarações sobre a procedência do vírus, sem fundamentos
científicos, embora cientistas ocidentais alertem contra isso. Com certeza,
essa mídia não estava escutando os médicos em Wuhan, ou os profissionais da
saúde chineses.
Quando médicos em Wuhan se depararam com os primeiros
pacientes da doença em dezembro, acreditavam que eles tinham pneumonia, mesmo
com os Raios X mostrando danos pulmonares severos. Os pacientes não estavam
respondendo aos tratamentos normais. Especialistas estavam alarmados, mas não
havia razão para acreditar que isso se tornaria uma epidemia local e, na
sequência, uma pandemia global.
Paciente sendo atendido na UTI do Hospital Zhongnan, da Universidade de Wuhan, em 30/01/2020. Foto: Governo da China/Fotos Públicas |
No momento em que as autoridades médicas de Wuhan
finalmente entenderam o que estavam enfrentando, assim que ficou claro que esse
era uma vírus novo que se espalhava rapidamente, eles entraram em contato com o
Centro de Controle de Doenças da China (CDC) e a Organização Mundial da
Saúde.
Seria difícil saber disso lendo apenas jornais
ocidentais, notavelmente o jornal estadunidense New York Times, que
sugeriu em uma matéria que o governo chinês havia escondido informações sobre a
epidemia, e que os sistemas de alerta preventivos chineses não funcionavam.
Nossa investigação concluiu que nenhum destes argumentos
é verídico. Não há nenhum indício de que o governo chinês sistematicamente
reprimiu dados sobre o surto. O que existe são provas de que alguns
médicos foram advertidos por seus hospitais, e polícias locais, por divulgarem
informações ao público sem usar os protocolos formais.
Também não existem provas de que o sistema de alerta e
registros chinês não funcionou; apenas que, como qualquer sistema, este não se
adequou a algo novo e não facilmente classificável.
O sistema de saúde da China, possui procedimentos rigorosos
para a divulgação de informações em uma emergência sanitária. Trabalhadores
médicos relatam o que descobrem para seus administradores, que por sua parte
entram em contato com as diversas entidades governamentais, desde o
município, ao nível federal. Não demorou para os profissionais relatarem o
problema, e menos tempo ainda para uma equipe de investigação chegar em
Wuhan.
O governo chinês escondeu informações?
A diretora do centro de Medicina Respiratória do Hospital
Provincial de Hubei, atendeu um casal de idosos no dia 26 de dezembro. A
condição deles a preocupou. Ela fez exames pulmonares no casal que parecia
saudável. O resultado, porém, demonstrou danos extensos aos órgãos.
Incerta sobre as causas, Zhang relatou a situação ao
vice-presidente do hospital, Xia Wenguang, e outros departamentos médicos. O
hospital rapidamente informou a cede local do Centro de Controle de Doenças
Chinês. Tudo isso decorreu em 24 horas.
Mais pacientes foram admitidos ao Hospital Provincial de
Hubei nos dias 28 e 29 de dezembro. Os médicos ainda não sabiam nada além de
que esses pacientes apresentavam sintomas de pneumonia, e tinham danos
pulmonares extensivos.
Ficou claro muito cedo que o local imediato da
disseminação do vírus era o Mercado de Frutos do Mar do Sul da China. No dia 29
de dezembro, conforme os casos foram aumentando, o vice-presidente do hospital,
Xia Wenguang, informou diretamente a comissão de saúde provincial,
que instruiu o Centro de Controle de Doenças do distrito de Jianghan, a
visitar o Hospital Provincial de Hubei e conduzir uma investigação
epidemiológica.
No dia 31 de dezembro, um grupo de peritos da Comissão
Nacional de Saúde, vindos de Pequim, chegou em Wuhan. Ou seja, oficiais do
governo central chegaram ao epicentro apenas 5 dias após os primeiros sinais de
problema.
No dia antes da chegada do grupo de peritos, a médica Ai
Fen expressou a alguns colegas acadêmicos sua frustração em relação ao novo e
misterioso vírus. Ai Fen viu um resultado de exame que dizia “pneumonia
não identificada”. Ela grifou as palavras “SARS coronavírus” em vermelho, tirou
uma foto, e enviou para seus colegas.
Sua frustração se espalhou entre os médicos de Wuhan,
incluindo Li Wenliang (membro do Partido Comunista) e sete outros que,
posteriormente, também foram advertidos pela polícia. Dia 2 de janeiro, o chefe
do Hospital Central de Wuhan alertou Ai Fen a não divulgar informações fora dos
canais internos do hospital.
A repreensão que esses médicos levaram é
utilizada como prova da repressão de informações sobre o vírus, o que não faz
sentido. As advertências ocorreram no começo de janeiro. No dia 31 de dezembro
um grupo de peritos de Pequim havia chegado a Wuhan e a OMS já havia sido
informada. Tanto o Centro de Controle de Prevenção e Doenças da China
(CDC) quanto a OMS haviam sido notificados antes dos médicos serem
advertidos.
No dia 7 de fevereiro, a Comissão Nacional de Supervisão
decidiu enviar uma equipe investigativa a Wuhan. No dia 19 de março, eles
divulgaram os resultados de sua investigação em coletiva de imprensa. As
descobertas levaram o Bureau de Segurança de Wuhan a circular uma nota para
retirar as repreensões contra Li Wenliang. No dia 2 de abril, Li e outros 13
médicos que morreram combatendo o vírus, foram honrados pelo governo com o
título de “Mártires” (a maior honra concedida pelo Partido Comunista e o
Governo Chinês aos seus cidadãos).
Não há provas de que oficiais locais tiveram medo de
informar o governo central sobre a epidemia. Não há provas de que “delatores”
foram necessários para a informação se tornar pública, como aponta o New
York Times. Zhang não era uma delatora, ela também seguiu os protocolos
estabelecidos, o que levou a informação às mãos da OMS em poucos dias.
Sistema de alerta chinês
Em meados de novembro de 2002, houve um surto de SARS em
Foshan, na província de Guandong, China. Os médicos não conseguiam entender o
que estava acontecendo. Eventualmente, no meio de fevereiro, o Ministério da
Saúde da China escreveu um e-mail para o escritório da OMS em Pequim,
“descrevendo” uma “estranha e contagiosa doença” que “já deixou mais de cem
mortos” em uma semana.
Na mensagem, oficiais também mencionaram a “atitude de
pânico onde pessoas estão esvaziando prateleiras de qualquer medicamento que
acham que pode ajudar”. Demorou oito meses para conter a epidemia de SARS.
Nos anos decorrentes, o governo chinês estabeleceu um
sistema central de alerta preventivo, para que emergências sanitárias não
saíssem do controle. O sistema funciona bem para doenças infecciosas claramente
definidas. O médico Hu Shanlian, professor de economia da saúde na Universidade
de Fudan, descreve dois incidentes que elucidam isso.
Uma vez, ele e sua equipe descobriram dois casos de
poliomelite em Qinghai. O governo local relatou os casos ao governo central,
que imediatamente iniciou um programa de imunização emergencial, dando vacinas
para crianças em cubos de açúcar, para impedir que a doença espalhasse.
Além disso, houve dois casos de peste bubônica em Pequim,
que tiveram origem na Região Autônoma da Mongólia Interior. “Doenças como essas
podem ser identificadas rapidamente e absorvidas pelo sistema de
alerta”, escreveu Shanlian.
Enfermidades conhecidas como polio e a peste bubônica
podem facilmente ser identificadas num sistema de alerta preventivo. Porém, se
médicos estão confusos sobre vírus, o sistema não funciona tão fácil assim. A
médica Ai Fen, que compartilhou seus registros com colegas, disse que o sistema
de alerta é muito eficaz para coisas comuns, como hepatite e tuberculose.
“Dessa vez era algo desconhecido”, ela disse. Quando se depararam com um vírus
inédito, profissionais médicos e o sistema de alerta preventivo ficaram sem
saber o que fazer.
Desde o dia 21 de janeiro, a OMS tem feito um relatório
diário sobre a situação. O primeiro desses, destacou os eventos entre os dias
31 de dezembro e 20 de janeiro. O primeiro item do relatório diz que, no dia
31, o escritório regional da Organização Mundial da Saúde foi informado sobre
“casos de pneumonia de etiologia desconhecida, na cidade de Wuhan, na província
chinesa de Hubei”.
As autoridades isolaram o novo tipo de coronavírus no dia
7 de janeiro, e logo depois, no dia 12, compartilharam a sequência genética,
para ser usada em kits de teste. Informações concretas sobre como a doença era
transmitida não viriam até mais tarde.
O sistema de alerta preventivo foi revisado no dia 24 de
janeiro de 2020, com informações sobre o novo coronavírus, aprimorado com a
experiência.
Fatos e Ideologia
O senador da Flórida, Marco Rubio, acusou a OMS de “subserviência
ao Partido Comunista Chinês”. Ele escreveu que os Estados Unidos iriam
“investigar a inaceitável demora no processo de decidir declarar ou não
uma pandemia global, e como a China comprometeu a integridade da OMS”. Verbas
norte-americanas destinadas à organização estão em jogo. Como era de se
esperar, Rubio não ofereceu nenhuma prova para apoiar suas acusações.
A declaração de uma pandemia global da OMS veio tarde
demais? Em 2009, o primeiro caso de H1N1 foi detectado na Califórnia (EUA) no
dia 15 de abril; a Organização Mundial da Saúde declarou uma pandemia global no
dia 11 de junho, dois meses depois. No caso da SARS-CoV-2, o primeiro caso foi
detectado em janeiro de 2020; a OMS declarou uma pandemia global dia 11 de
março – um mês e meio depois.
Nesse período, a organização enviou equipes
investigativas para Wuhan (dias 20-21 de janeiro) e para Pequim, Guandong,
Sichuan e mais uma vez Wuhan, entre os dias 16 e 24 de fevereiro; as investigações,
que vieram antes da declaração, foram cirúrgicas. O tempo entre os primeiros
casos e a declaração da pandemia é parecido com o de 2009, porém mais rápido em
2020.
Posicionamentos como os do New York Times e
do senador Marco Rubio mostram uma urgência para concluir que o governo e
sociedade da China são culpados
pela pandemia global, e que seus erros não apenas comprometem a OMS,
mas são a causa da pandemia. Fatos se tornam irrelevantes.
O que demonstramos nessa reportagem é que não houve nem a
repressão de fatos, nem medo por parte de profissionais da saúde em informar o
governo central de Pequim; de fato, o sistema de alerta também não estava
quebrado. A epidemia de coronavírus foi misteriosa e complexa, as autoridades e
médicos chineses identificaram o que estava acontecendo rapidamente e depois –
com base nos fatos – tomaram decisões racionais.
(Esta é a segunda parte de uma série de três, que estarão
disponíveis na íntegra aqui).
*Vijay Prashad é historiador,
jornalista e diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social; Du
Xiaojun é pesquisador na área de Relações Internacionais, Comunicação
intercultural e Linguística aplicada (Xangai) e Weiyan Zhu é
advogada (Beijing).
**Este artigo é uma tradução do Independent
Media Institute e o primeiro de uma série de três artigos que serão
publicados nos próximos dias.
Edição: Ítalo Piva e Leandro Melito
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