Como um governo comunista no sul da Índia se tornou referência no combate à Covid-19
Kerala foi o primeiro estado a identificar
casos de coronavírus no país e tem o maior índice de recuperação de pacientes.
Kerala fica a 2,6 mil km da capital e registrou três mortes em um total de 345 pacientes diagnosticados com o novo coronavírus.
Para entender por que as condições de enfrentamento à pandemia no estado destoam de outras regiões da Índia, o Brasil de Fato ouviu membros do Conselho de Planejamento de Kerala. O órgão foi criado em 1967 e reúne pesquisadores e cientistas de diferentes áreas para auxiliar o governo local na tomada de decisões.
Por Praveen
S.
Brasil de Fato | Nova Delhi
(Índia)
10/04/2020
Aglomerações, fome, falta
de água para lavar as mãos. As notícias sobre a Índia que mais
repercutem no exterior durante a pandemia retratam uma nação em plena crise
humanitária. Embora sejam verdadeiras, elas não refletem a realidade de todos
os 29 estados do país.
Trabalho em uma unidade de fiação de fibra de coco em Kollam, Kerala, em 2005. Foto: Albert/Flickr |
O cenário mais grave se encontra na região nordeste da
Índia, em vilarejos isolados e nas favelas das grandes metrópoles. Por outro
lado, há territórios em que o acesso à saúde pública e a bens de consumo é
comparável a países desenvolvidos – e não se trata apenas dos bairros ricos da
capital Nova Delhi.
O estado de Kerala, no extremo sul, por exemplo, tem o
maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país: 0,790, considerado
elevado pela Organização das Nações Unidas (ONU). A média indiana é 0,467 e a
brasileira, 0,699. Quanto mais próximo de 1, melhores os índices de renda,
educação e expectativa de vida.
Praia de Kovalam, Kerala. Foto: Mehul Antani/Flickr |
Durante a pandemia, Kerala foi o primeiro estado a
diagnosticar pacientes com coronavírus, e possui o melhor índice de recuperação
de pacientes na Índia – 84%, considerando diagnósticos realizados entre 9 e 20
de março. O índice de recuperação em Delhi, por exemplo, é inferior a 5%.
Kerala fica a 2,6 mil km da capital e registrou três mortes em um total de 345 pacientes diagnosticados com o novo coronavírus.
Para entender por que as condições de enfrentamento à pandemia no estado destoam de outras regiões da Índia, o Brasil de Fato ouviu membros do Conselho de Planejamento de Kerala. O órgão foi criado em 1967 e reúne pesquisadores e cientistas de diferentes áreas para auxiliar o governo local na tomada de decisões.
Os conselheiros explicam que o sucesso no combate à Covid-19
é resultado de medidas emergenciais tomadas nas últimas semanas, mas
também de políticas públicas adotadas ao longo de décadas.
Na fila para distribuição de comida, cidadãos esperam sentados a uma distância segura para evitar cansaço e aglomeração. Foto: divulgação/CPI-M |
Legado
Doutor em Economia, o professor R. Ramakumar conta que
Kerala foi o berço de vários movimentos sociais reformistas que questionaram
as superstições e a opressão de casta, classe e gênero que dominavam a política indiana no
final do século 19.
“Entre 1930 e 1940, esse legado se converteu na formação
de partidos comunistas, que logo se tornaram muito populares”, lembra o membro
do conselho. “Eles institucionalizaram uma mudança de consciência que já havia
ocorrido em muitas comunidades, de dentro para fora”.
Kerala foi o primeiro território a eleger um governo
comunista em toda a história, em 1947. Segundo Ramakumar, a prioridade na época
eram os investimentos em educação, saúde e segurança nutricional. Para isso, o
governo avançou em processos de reforma agrária, criando um sistema público de
compra e distribuição de alimentos.
“Essas mudanças foram tão profundas que, mesmo quando
governos não comunistas assumiram o estado – nos anos 1980, por exemplo –, eles
precisaram manter as políticas públicas de caráter progressista, porque essa
demanda já estava enraizada na sociedade”, acrescenta o professor.
O modelo de desenvolvimento adotado em Kerala desde então
é elogiado por intelectuais como Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia. O atual ministro-chefe do estado – cargo equivalente a governador
– é Pinarayi Vijayan, do Partido Comunista Indiano Marxista (CPI-M).
“É um governo de esquerda, muito responsivo às
necessidades das pessoas, preocupado em proteger a economia e garantir a
subsistência, especialmente, dos pequenos produtores”, orgulha-se Ramakumar. “E
esse compromisso político foi rapidamente traduzido em respostas econômicas,
logo nos primeiros dias [de pandemia]”.
Investimento público
Considerado um dos estados “mais globalizados” da Índia,
Kerala tem 40 milhões de habitantes e quase meio milhão de trabalhadores fora
do país. Para se ter uma ideia, o estado dispõe de quatro aeroportos
internacionais, dois a mais que Delhi.
O fluxo intenso de passageiros ajuda a explicar por que
os primeiros casos de coronavírus da Índia ocorreram em Kerala – vindos da
China e da Itália. O estado foi pioneiro não só no diagnóstico, mas nas
respostas econômicas à pandemia: um pacote de 20 bilhões de rúpias, o
equivalente a R$ 1,3 bilhão.
Um dos principais aeroportos de Kerala está em Cochin. Foto: Wikipédia |
Ramakumar diz que o governo local nunca subestimou a Covid-19
porque tem experiência recente com epidemias. Em 2018, um surto do vírus Nipah
matou 17 pessoas no estado, que foi obrigado a decretar quarentenas em alguns
distritos.
“Kerala enfrentou o Nipah e também já viveu várias
inundações ao longo da história. Por isso, as pessoas são disciplinadas e o
governo sabe do impacto que esse tipo de calamidade causa à economia”, analisa.
A estratégia foi abrir os cofres e gastar o necessário,
da maneira mais ágil possível, para impedir demissões, garantir a sobrevivência
das empresas e renda mínima aos trabalhadores. Basicamente, o governo investirá
nos próximos três meses o valor que estava previsto para o ano todo.
“Esse investimento substancial vai valer a pena para a economia
continuar girando e não quebrar lá na frente. Quem já passou por esse tipo de
situação sabe que é este o momento de colocar dinheiro na mão das pessoas”,
completa Ramakumar. “Quanto antes isso acontece, mais rápido a economia se
recupera”.
Professor do Instituto de Tecnologia de Delhi e também
membro do conselho, Jayan Jose Thomas é especialista em temas relativos à
indústria. Sobre as medidas emergenciais adotadas pelo governo de Kerala
durante a pandemia, ele enaltece a decisão de distribuir uma quantidade mínima
de alimentos para todos os cidadãos, não só os mais pobres, e o crédito
liberado a pequenas empresas para evitar demissões.
Thomas diz que não se trata apenas de números, mas de uma
abordagem humanizada que tem no bem-estar social um de seus pilares. Ele cita como
exemplo as filas para distribuição de alimento durante a pandemia: em Kerala,
as pessoas aguardam sentadas, e não em pé. Além disso, as cadeiras são
dispostas a dois metros uma da outra, para evitar aglomeração e contágio.
Perspectivas
O pacote de mais de R$ 110 bilhões anunciado pelo governo
central da Índia, na interpretação do professor Ramakumar, é insuficiente para
suprir as necessidades dos estados. “De 5% a 6% naquele pacote são novos
investimentos. O resto já estava previsto, em forma de crédito e auxílios, mas
eles somaram para parecer maior do que é”, explica. “Por isso, os estados devem
seguir o exemplo de Kerala e lançar seus próprios planos econômicos”.
Outro membro do conselho, especialista em políticas de
descentralização, K. N. Harilal diz que mesmo os estados mais pobres não podem
se negar a garantir a subsistência dos trabalhadores: “O que se deve fazer é
fornecer subsídios e renda mínima. Isso muitos estados poderiam tentar adotar.
Não é preciso liberar grandes montantes, mas ao menos garantir que todos tenham
acesso aos serviços básicos e alimentação”, ressalta.
Embora o governo da Índia seja de extrema direita, as
divergências com os ministros-chefes durante a pandemia não transparecem como
no Brasil.
“Temos nossas discordâncias, mas, quando se trata de
combater a Covid-19, o governo central está assumindo uma posição diplomática e
contribuindo para evitar conflitos”, enfatiza Harilal. “Os problemas que temos
são de ordem financeira. Se fôssemos autorizados a emprestar um montante maior
a juros baixos, seria muito melhor”.
A Índia investe apenas 1,28% do Produto Interno Bruto
(PIB) em saúde, e a gestão é de responsabilidade dos estados. No pacote
liberado pelo governo central, os benefícios de alimentação se restringem aos
portadores de cartões de racionamento, deixando quase 40 milhões de indianos
pobres sem assistência.
A quarentena na Índia está prevista até a próxima terça-feira (14), mas a maioria dos
ministros-chefes solicitou ao governo central que o período de restrições seja
prolongado. A Índia contabiliza 6.725 casos de coronavírus e 226 mortes
até o momento.
Edição: Leandro Melito – Brasil de Fato
Nenhum comentário