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Como um governo comunista no sul da Índia se tornou referência no combate à Covid-19

Kerala foi o primeiro estado a identificar casos de coronavírus no país e tem o maior índice de recuperação de pacientes.

Por Praveen S.
Brasil de Fato | Nova Delhi (Índia)
10/04/2020

Aglomerações, fome, falta de água para lavar as mãos. As notícias sobre a Índia que mais repercutem no exterior durante a pandemia retratam uma nação em plena crise humanitária. Embora sejam verdadeiras, elas não refletem a realidade de todos os 29 estados do país.

Trabalho em uma unidade de fiação de fibra de coco em Kollam, Kerala, em 2005. Foto: Albert/Flickr 

O cenário mais grave se encontra na região nordeste da Índia, em vilarejos isolados e nas favelas das grandes metrópoles. Por outro lado, há territórios em que o acesso à saúde pública e a bens de consumo é comparável a países desenvolvidos – e não se trata apenas dos bairros ricos da capital Nova Delhi.

O estado de Kerala, no extremo sul, por exemplo, tem o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país: 0,790, considerado elevado pela Organização das Nações Unidas (ONU). A média indiana é 0,467 e a brasileira, 0,699. Quanto mais próximo de 1, melhores os índices de renda, educação e expectativa de vida.

Praia de Kovalam, Kerala. Foto: Mehul Antani/Flickr

Durante a pandemia, Kerala foi o primeiro estado a diagnosticar pacientes com coronavírus, e possui o melhor índice de recuperação de pacientes na Índia – 84%, considerando diagnósticos realizados entre 9 e 20 de março. O índice de recuperação em Delhi, por exemplo, é inferior a 5%. 

Kerala fica a 2,6 mil km da capital e registrou três mortes em um total de 345 pacientes diagnosticados com o novo coronavírus.

Para entender por que as condições de enfrentamento à pandemia no estado destoam de outras regiões da Índia, o Brasil de Fato ouviu membros do Conselho de Planejamento de Kerala. O órgão foi criado em 1967 e reúne pesquisadores e cientistas de diferentes áreas para auxiliar o governo local na tomada de decisões.

Os conselheiros explicam que o sucesso no combate à Covid-19 é resultado de medidas emergenciais tomadas nas últimas semanas, mas também de políticas públicas adotadas ao longo de décadas.

Na fila para distribuição de comida, cidadãos esperam sentados a uma distância segura para evitar cansaço e aglomeração. Foto: divulgação/CPI-M
Legado
Doutor em Economia, o professor R. Ramakumar conta que Kerala foi o berço de vários movimentos sociais reformistas que questionaram as superstições e a opressão de castaclasse e gênero que dominavam a política indiana no final do século 19.

“Entre 1930 e 1940, esse legado se converteu na formação de partidos comunistas, que logo se tornaram muito populares”, lembra o membro do conselho. “Eles institucionalizaram uma mudança de consciência que já havia ocorrido em muitas comunidades, de dentro para fora”.

Kerala foi o primeiro território a eleger um governo comunista em toda a história, em 1947. Segundo Ramakumar, a prioridade na época eram os investimentos em educação, saúde e segurança nutricional. Para isso, o governo avançou em processos de reforma agrária, criando um sistema público de compra e distribuição de alimentos.

“Essas mudanças foram tão profundas que, mesmo quando governos não comunistas assumiram o estado – nos anos 1980, por exemplo –, eles precisaram manter as políticas públicas de caráter progressista, porque essa demanda já estava enraizada na sociedade”, acrescenta o professor.

O modelo de desenvolvimento adotado em Kerala desde então é elogiado por intelectuais como Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia. O atual ministro-chefe do estado – cargo equivalente a governador – é Pinarayi Vijayan, do Partido Comunista Indiano Marxista (CPI-M).

“É um governo de esquerda, muito responsivo às necessidades das pessoas, preocupado em proteger a economia e garantir a subsistência, especialmente, dos pequenos produtores”, orgulha-se Ramakumar. “E esse compromisso político foi rapidamente traduzido em respostas econômicas, logo nos primeiros dias [de pandemia]”.

Investimento público
Considerado um dos estados “mais globalizados” da Índia, Kerala tem 40 milhões de habitantes e quase meio milhão de trabalhadores fora do país. Para se ter uma ideia, o estado dispõe de quatro aeroportos internacionais, dois a mais que Delhi.

O fluxo intenso de passageiros ajuda a explicar por que os primeiros casos de coronavírus da Índia ocorreram em Kerala – vindos da China e da Itália. O estado foi pioneiro não só no diagnóstico, mas nas respostas econômicas à pandemia: um pacote de 20 bilhões de rúpias, o equivalente a R$ 1,3 bilhão.

Um dos principais aeroportos de Kerala está em Cochin. Foto: Wikipédia
Ramakumar diz que o governo local nunca subestimou a Covid-19 porque tem experiência recente com epidemias. Em 2018, um surto do vírus Nipah matou 17 pessoas no estado, que foi obrigado a decretar quarentenas em alguns distritos.

“Kerala enfrentou o Nipah e também já viveu várias inundações ao longo da história. Por isso, as pessoas são disciplinadas e o governo sabe do impacto que esse tipo de calamidade causa à economia”, analisa.

A estratégia foi abrir os cofres e gastar o necessário, da maneira mais ágil possível, para impedir demissões, garantir a sobrevivência das empresas e renda mínima aos trabalhadores. Basicamente, o governo investirá nos próximos três meses o valor que estava previsto para o ano todo.

“Esse investimento substancial vai valer a pena para a economia continuar girando e não quebrar lá na frente. Quem já passou por esse tipo de situação sabe que é este o momento de colocar dinheiro na mão das pessoas”, completa Ramakumar. “Quanto antes isso acontece, mais rápido a economia se recupera”.

Professor do Instituto de Tecnologia de Delhi e também membro do conselho, Jayan Jose Thomas é especialista em temas relativos à indústria. Sobre as medidas emergenciais adotadas pelo governo de Kerala durante a pandemia, ele enaltece a decisão de distribuir uma quantidade mínima de alimentos para todos os cidadãos, não só os mais pobres, e o crédito liberado a pequenas empresas para evitar demissões.

Thomas diz que não se trata apenas de números, mas de uma abordagem humanizada que tem no bem-estar social um de seus pilares. Ele cita como exemplo as filas para distribuição de alimento durante a pandemia: em Kerala, as pessoas aguardam sentadas, e não em pé. Além disso, as cadeiras são dispostas a dois metros uma da outra, para evitar aglomeração e contágio.

Perspectivas
O pacote de mais de R$ 110 bilhões anunciado pelo governo central da Índia, na interpretação do professor Ramakumar, é insuficiente para suprir as necessidades dos estados. “De 5% a 6% naquele pacote são novos investimentos. O resto já estava previsto, em forma de crédito e auxílios, mas eles somaram para parecer maior do que é”, explica. “Por isso, os estados devem seguir o exemplo de Kerala e lançar seus próprios planos econômicos”.

Outro membro do conselho, especialista em políticas de descentralização, K. N. Harilal diz que mesmo os estados mais pobres não podem se negar a garantir a subsistência dos trabalhadores: “O que se deve fazer é fornecer subsídios e renda mínima. Isso muitos estados poderiam tentar adotar. Não é preciso liberar grandes montantes, mas ao menos garantir que todos tenham acesso aos serviços básicos e alimentação”, ressalta.

Embora o governo da Índia seja de extrema direita, as divergências com os ministros-chefes durante a pandemia não transparecem como no Brasil.

“Temos nossas discordâncias, mas, quando se trata de combater a Covid-19, o governo central está assumindo uma posição diplomática e contribuindo para evitar conflitos”, enfatiza Harilal. “Os problemas que temos são de ordem financeira. Se fôssemos autorizados a emprestar um montante maior a juros baixos, seria muito melhor”.

A Índia investe apenas 1,28% do Produto Interno Bruto (PIB) em saúde, e a gestão é de responsabilidade dos estados. No pacote liberado pelo governo central, os benefícios de alimentação se restringem aos portadores de cartões de racionamento, deixando quase 40 milhões de indianos pobres sem assistência.

quarentena na Índia está prevista até a próxima terça-feira (14), mas a maioria dos ministros-chefes solicitou ao governo central que o período de restrições seja prolongado. A Índia contabiliza 6.725 casos de coronavírus e 226 mortes até o momento.

Edição: Leandro Melito – Brasil de Fato

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