Cuidadoras enfrentam abusos e riscos na pandemia de coronavírus
Número de profissionais cresceu 690% entre
2004 e 2017, e cerca de 85% são mulheres; em 2019, Bolsonaro vetou
regulamentação da profissão.
Foto: rawpixel.com/Freepik
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Por Maria
Martha Bruno* - Gênero e Número
04/04/2020
“Não estou perguntando se você pode. Estou dizendo que
você vai ficar”, disse uma empregadora a uma cuidadora de idosos semana passada
no Rio de Janeiro, tentando obrigá-la a permanecer na residência por dois
meses. Em tempos de pandemia de coronavírus, patrões têm usado a Covid-19
para justificar abusos.
A trabalhadora foi orientada pelo Sindicato de
Trabalhadores Domésticos de Nova Iguaçu (Região Metropolitana do estado) a não
pedir demissão nem assinar qualquer papel. A entidade afirma que a profissional
inclusive pode pedir uma rescisão indireta de contrato, justificando ameaça de
cárcere privado.
“As cuidadoras são as que mais estão sofrendo. Estão
sendo escravizadas. Há filhos que nem iam ver os pais e agora largam
cuidadoras na casa, sem poder sair”, diz Zenilda Ruiz, assessora jurídica do
Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Município de São Paulo. Ela conta que
atendeu a uma cuidadora que está sem ir a sua casa há 38 dias, mesmo com filhos
pequenos.
A presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do
município de São Paulo, Silvia Maria da Silva Santos, afirma que parte de
cuidadoras e diaristas a maioria das denúncias de abusos após o início da
quarentena na cidade: “As cuidadoras estão ficando sobrecarregadas. Além das
ameaças, empregadores acabam pedindo para fazer o jantar e outras atividades,
sem ganhos a mais por isso”.
Quem não enfrenta abusos, passa por mudanças na rotina
por causa do coronavírus. Equipamentos de proteção individual, como luvas,
máscara e jaleco, mais associados a profissionais de saúde, agora fazem parte
do dia a dia de Marlene Adão Tomaz. Quando chega à casa de uma idosa de 92
anos, para dar banho e trocar curativos, ela lava as mãos, deixa os calçados
perto da porta de entrada, troca de roupas, coloca os equipamentos e começa a
trabalhar.
Marlene pega três ônibus para chegar a esta residência,
na Zona Sul do Rio de Janeiro, e à outra, na Zona Oeste, onde cuida de uma
idosa de 82 anos. Em meio à pandemia de coronavírus e ao isolamento social em
boa parte do país, a cuidadora tem conseguido chegar aos seus destinos, ao
contrário de várias colegas que, com as restrições de mobilidade, chegaram
a ser barradas em estações de trem do Rio por não conseguirem apresentar
um documento que provasse seu vínculo empregatício.
Com funções que transitam entre as de enfermeiras e
empregadas domésticas, estas profissionais sempre tiveram que lidar com
informalidade laboral, cargas de trabalho exaustivas e rotinas
estressantes.
Em trabalhos anteriores, Marlene foi vítima de abusos
semelhantes aos enfrentados por trabalhadoras domésticas:
Na casa de um dos idosos, eu não tinha alimentação. Precisava levar a marmita, mas a filha dele não me deixava colocar na geladeira. Como almoçava muito tarde, às vezes a comida azedava.
“É cansativo, é estressante. Eu tinha muita insônia. Ia
dormir tarde, acordava 3h da manhã e ia trabalhar sem ter dormido. Acho que
estava precisando de um tratamento psicológico. São muitos pacientes com
debilidades e doenças graves. É muita coisa que cansa a mente da gente”, diz
Marlene, sobre sua saúde nos tempos em que cuidava de vários pacientes durante
a semana.
Aumento de idosos e profissão em alta
Em 2017, o extinto Ministério do Trabalho mostrou que
havia 34.051 cuidadores de idosos no país, um aumento de 690% na comparação com
2004, quando eles eram 4.313. A “Pesquisa para uma Política Nacional do Cuidado”, divulgada pelo DataSenado em
dezembro do ano passado, afirma, contudo, que não existem estimativas
confiáveis do número de cuidadores de pessoas com doenças raras e com deficiência,
grupo que também necessita destes profissionais.
Assim como enfermeiras e domésticas, a classe é
predominantemente formada por mulheres. Entre os 1.153 profissionais
cadastrados pela Associação Brasileira dos Empregadores de Cuidadores de Idosos
(Abeci), 85% são mulheres e 15% são homens. Segundo a Associação dos
Cuidadores de Idosos da Região Metropolitana de São Paulo (Acirmesp), nos
cursos de capacitação acompanhados pela instituição, salas de aula possuem, em
média, 27 mulheres em um total de 30 alunos.
No final do ano passado, o país possuía 34 milhões de
pessoas com 60 anos ou mais (16,2% da população), justamente o grupo de maior
risco durante a pandemia de coronavírus, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD) do IBGE. O órgão estima ainda
que, em 2060, o percentual de brasileiros com 65 anos ou mais chegará a um
quarto da população. De acordo com o DataSenado, 41% dos brasileiros
conhecem alguém que precisa da ajuda de um parente ou cuidador para realizar
atividades do dia a dia, como comer, tomar banho ou trocar de roupas.
Dúvida, angústia e queda nas recomendações
Cristina Alves, diretora-superintendente
da Acirmesp, conta que a pandemia de coronavírus causou outras
mudanças no dia a dia das profissionais, como a dispensa por familiares que
preferem eles mesmos cuidar de idosos e pessoas com deficiência.
“As cuidadoras estão em um momento de dúvida e angústia.
Aquelas que não têm filhos, às vezes podem ficar mais tempo na casa do idoso e
até dormir, se houver condições para isso. Mas esta decisão tem que ser da
própria cuidadora. E a pessoa não pode trabalhar 24h. Ela precisa de um período
de descanso”, alerta.
Leia também: Enfermeiras na linha de frente contra o coronavírus
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Adriano Machado, presidente da Abeci, afirma que desde o
dia 13 de março a recomendação de profissionais a familiares caiu a quase zero,
enquanto aumentaram a tensão e as dúvidas das cuidadoras, a maioria delas sobre
procedimentos de higiene no trabalho. “Há muitas profissionais que não queriam
trabalhar. Temos ainda famílias que não querem cuidadoras e outras famílias
propondo que eles durmam nas casas dos pacientes.”
Vulnerabilidade trabalhista
Em 2019, o Senado aprovou o projeto de lei 1385/2007,
que regulamentava a profissão. No entanto, o texto foi vetado pelo
presidente Jair Bolsonaro, com a alegação de que, ao criar condicionantes para
a profissão, o texto restringiria o livre exercício profissional, garantido
pela Constituição. Entre as determinações do projeto, a obrigação de que a
cuidadora tivesse ensino fundamental completo e curso de qualificação na área.
Sem a regulamentação da categoria, a classe fica em um
limbo legal e, vezes responde às regras determinadas pela PEC das Domésticas, vezes pelas normas gerais de trabalho (quando a
profissional é celetista). Há ainda as que são cooperativadas e as
microempreendedoras individuais (MEIs).
No entanto, a informalidade total é corriqueira. Em um
dos trabalhos, Marlene Adão é contratada por uma empresa. Celetista?
“Praticamente não tenho vínculo nenhum! A gente só tem vínculo quando querem
reclamar alguma coisa, mas na hora do direito não tem nada. Eles não assinam
carteira, nem pagam FGTS. Eu pago meu INSS como autônoma”, ela explica. No
outro trabalho, ela divide os rendimentos com outra cuidadora, que fica na casa
da idosa na maior parte do tempo.
A advogada Clarissa Franco, especializada em Direito
Médico e da Saúde em Brasília (DF), afirma que a maioria das profissionais
ganha por diária. “A rotatividade barateia a contratação. Ninguém quer
comprometimento com as leis trabalhistas. Após a contratação, existe ainda uma
exploração muito grande pelos tomadores de serviço, com desvios de função e
abusos”, ela diz. “Não é incomum que cuidadoras sejam obrigadas a executar
tarefas como cozinhar e limpar a casa. Há também muitos casos de assédio
sexual”, completa.
Ela afirma que a melhor forma de a profissional se
proteger é deixar as funções nitidamente estabelecidas no contrato de trabalho.
“Provar os abusos na Justiça é complicado, porque é uma palavra contra a outra.
Além do mais, muitas cuidadoras são pessoas humildes que desconhecem os limites
de suas atribuições. A melhor saída é especificar quais são essas funções no papel
e fazer um contrato com o tomador de serviços, mesmo se a pessoa for autônoma”,
aconselha.
*Maria Martha Bruno é editora da Gênero
e Número.
Reportagem originalmente publicada em 30 de março de 2020 no site da Gênero e Número.
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