De Camus a Frida Kahlo, escritores e artistas criaram obras-primas no isolamento
Grandes livros, pinturas e peças de teatro
surgiram em função do confinamento de seus autores.
Por Maria Laura López – Jornal da USP
06/04/2020
Frida pintou Coluna Partida quando se recuperava de um acidente. Foto: divulgação |
“O homem é um animal político.” Essa frase, escrita pelo
filósofo grego Aristóteles na sua Política e repetida tantas
vezes ao longo da história por diversos autores, mostra como a necessidade de
socialização do ser humano é consenso. Assim também, sabe-se como são
prejudiciais a solidão e o isolamento social, a exemplo da prisão, do exílio e
da quarentena, como a que vivemos hoje por causa do coronavírus. No entanto,
foi justamente por causa de momentos como esse que grandes obras foram
produzidas.
No Brasil, o maior exemplo talvez seja o escritor
alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), que, embora não tenha escrito em
confinamento, contou depois, em Memórias do Cárcere, o que viveu
como prisioneiro de Getúlio Vargas. “Ele foi preso em março de 1936, sem
nenhuma acusação formal, e só saiu em janeiro de 1937”, conta o professor Fábio
Cesar Alves, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
USP. “Por ser um opositor político na época da ditadura Vargas, Graciliano, que
já era um escritor consagrado, passou por várias prisões, onde foi encarcerado
com presos comuns.”
Capa da 1ª edição de Memórias do Cárcere. Foto: reprodução |
De acordo com o professor, essa experiência permitiu ao
escritor repensar o Estado brasileiro pela perspectiva de quem sempre conviveu
com esse caráter brutal da justiça no Brasil. “Ele vê o lugar dos pobres na
sociedade, os equívocos do Partido Comunista, e escreve o livro depois,
retomando tudo isso, embebido de uma nova orientação política, transformada a
partir daquela vivência”, afirma Alves.
As produções posteriores também foram afetadas pelo
encarceramento, acrescenta o professor. “Vidas Secas trata de um
mundo concentracionário onde, além da seca, a família também é esmagada pelo
Estado. Em Infância, ele recupera a memória do menino acossado pela
educação patriarcal e pela justiça burguesa”, diz Alves. Para ele, a
experiência da prisão foi muito importante na trajetória de Graciliano, porque
o colocou em contato com um mundo do qual, até então, era distante. “É
paradoxal, mas foi justamente essa retirada forçada que permitiu a ele ver
melhor a situação da sociedade brasileira.”
O escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), por
sua vez, experimentou o isolamento por conta da tuberculose que tinha desde os
17 anos. “Essa distância imposta pela doença vai também ser imposta pela
Segunda Guerra e o escritor vai se habituar a construir um espaço solitário”,
afirma Raphael Araujo, doutor em Letras pela USP e tradutor de Camus. “Durante
uma parte importante da redação de A Peste, Camus está sozinho e
recluso. Ele projeta parte do sentimento de isolamento dos franceses nos
prisioneiros da peste na cidade de Orã, onde se passa a história.”
Camus escreveu A Peste confinado por causa da tuberculose. Foto:divulgação |
O livro, produzido nessas circunstâncias e logo após o
surto de peste bubônica que atingiu a Argélia, em 1944, voltou à lista de
livros mais vendidos nas últimas semanas na Europa. A narrativa simboliza a
luta de um médico envolvido nos esforços para combater a epidemia que causou
desespero na cidade. Considerando a pandemia de coronavírus que assola o mundo
hoje, a obra não poderia ser mais atual.
Além desses nomes, ainda é possível citar a artista
mexicana Frida Kahlo (1907-1954), que iniciou sua trajetória como pintora no
confinamento de sua própria cama, depois de um acidente que sofreu aos 18 anos.
Foram várias cirurgias para a reconstrução de partes do seu corpo, e meses de
recuperação. Naquele momento, a arte surgiu como uma válvula de escape e ela
começou a pintar autorretratos com a ajuda do espelho, que ficava logo à sua
frente. Coluna Partida, uma das obras que pintou nesse período,
retrata o colete ortopédico que precisava usar.
O dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) foi
outro autor que produziu uma obra-prima durante o isolamento, quando estava de
quarentena por conta da peste bubônica que atingiu Londres entre 1603 e 1613.
Nessa época, vários teatros fecharam suas portas por vários meses, mas isso coincidiu com o apogeu da escrita de Shakespeare, levando-o a escrever a peça O Rei Lear em 1605. O texto representa o caos vivido naquele momento e, talvez, até um pouco do que o mundo enfrenta agora, com o coronavírus.
Nessa época, vários teatros fecharam suas portas por vários meses, mas isso coincidiu com o apogeu da escrita de Shakespeare, levando-o a escrever a peça O Rei Lear em 1605. O texto representa o caos vivido naquele momento e, talvez, até um pouco do que o mundo enfrenta agora, com o coronavírus.
O épico romance Os Miseráveis também foi
escrito em reclusão, mas por conta da oposição que seu autor, o escritor
francês Victor Hugo (1802-1885), fazia ao império de Napoleão III.
Hugo foi exilado de sua terra natal e, depois, banido da Bélgica e da ilha de Jersey, só encontrando asilo em Guernsey. Ele viveu nessa ilha britânica por 15 anos, a 48 quilômetros da costa da Normandia, na França, e passou lá o período mais produtivo de sua vida, ainda que com muitas dificuldades. “O exílio não me retirou somente da França, mas quase me exilou da Terra”, disse ele em uma carta.
Hugo foi exilado de sua terra natal e, depois, banido da Bélgica e da ilha de Jersey, só encontrando asilo em Guernsey. Ele viveu nessa ilha britânica por 15 anos, a 48 quilômetros da costa da Normandia, na França, e passou lá o período mais produtivo de sua vida, ainda que com muitas dificuldades. “O exílio não me retirou somente da França, mas quase me exilou da Terra”, disse ele em uma carta.
Isolados pelo vírus
A psicanalista Sandra Leticia Berta, mestre e doutora
pelo Instituto de Psicologia da USP, alerta para a necessidade de diferenciar
exílio e isolamento. “O exilado é exilado porque os outros não são, ele é
sozinho, não tem como generalizar o exílio. O que estamos vivendo agora é um
isolamento coletivo, estamos isolados e conectados”, afirma ela. Mas, de acordo
com Sandra, existem alguns denominadores comuns entre as situações, como o
perigo, que se apresenta tanto na forma do Estado de exceção quanto na do
vírus.
Ainda segundo ela, lidar com a morte era algo muito
presente nos exilados de regimes ditatoriais, que viam seus companheiros de
luta morrerem, e tem se tornado algo cada vez mais comum com o avanço da
covid-19 pelo mundo. “Quando você vive muitos lutos, há certas consequências.
Mas, com tantos mortos, talvez não tenhamos lugar para o luto agora e as
consequências disso podem ser diversas”, diz Sandra.
“Não podemos generalizar os efeitos dessa crise porque é
tudo muito novo. Mas muitos relatam angústia por não poder encontrar os entes
queridos, sendo privados do encontro corpo a corpo”, afirma a psicanalista
sobre a dificuldade de lidar com algo que faz dos encontros e dos gestos de
afeto uma ameaça. E é ainda mais complicado quando se trata de proporções
mundiais. “O trauma tem diferentes manifestações, mas hoje ele tem uma dimensão
global. Contudo, o trauma exige considerar a dimensão singular e os laços.”
Tendo tudo isso em vista, é de se esperar que a pandemia
do coronavírus transforme a vida das pessoas ao redor do mundo. O que não quer
dizer que os próximos Albert Camus, Frida Kahlo e Victor Hugo vão aparecer.
Entretanto, a perspectiva de que coisas boas podem surgir neste período ajuda a
renovar as esperanças.
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