Por um futuro que não repita o passado
A crise da Covid-19 impõe novos desafios ao Brasil,
um dos países mais desiguais do mundo; este artigo traz dados e propõe ações para
enfrentar a pandemia e a extrema desigualdade.
Favela da Rocinha, Rio de Janeiro. Foto: Chensiyuan/Wikipédia
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Por Danielle
Klintowitz e Felipe Moreira – Le Monde Diplomatique Brasil
04/04/2020
O mundo mudou. A pandemia do novo coronavírus (Covid-19)
parece ser aquele momento de inflexão, de marco, no curso da história da
humanidade. Havia um mundo pré coronavírus e, agora, abre-se uma janela de
incertezas e oportunidades sobre como será este novo futuro. Tudo está instável
e qualquer previsão a mais longo prazo será pontual, incompleta e requerirá
atualizações e complementações constantes. Mas para tatearmos este novo futuro
é preciso entender o passado que ainda se faz presente.
Até bem pouco tempo atrás, a grosso modo, havia dois
mundos que se retroalimentam: um era globalizado, conectado por aeroportos,
ferrovias, estradas, cabos de fibra ótica e de telefonia. Nele, mercadorias de
toda sorte e pessoas com renda circulavam com uma liberdade nunca vista até
então. Mas este mundo “livre” não era para todas as pessoas. Ele era reduzido e
sustentado pela exploração e acumulação desigual da força de trabalho,
sobretudo de pessoas que, muitas vezes, não só não tinham acesso à mesma renda
e liberdade, como também a itens básicos como água encanada, banheiro no
próprio domicílio e energia elétrica.
Para termos uma ideia do nível de desigualdade: o 1% mais
rico do mundo concentrava mais do que o dobro de riqueza de 6,9 bilhões de
pessoas juntas, o que equivale a cerca de 85% da população mundial (OXFAM, 2019); 1,2 bilhões de pessoas encontrava-se em situação de déficit
habitacional (WRI, 2017); um terço (2,1 bilhão de pessoas) não tinha acesso a água e sessenta
por cento (4,3 bilhões) a saneamento básico (UNESCO, 2019).
E é justamente na dependência deste tripé moradia (para
isolamento social), água e saneamento (para higienização) que se estruturam as
principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para contenção
do coronavírus no mundo. O resultado dessas recomendações tem colocado muitas
cidades – e muitos países – em quarentena, fechando comércios, serviços,
aeroportos e restringindo a circulação de pessoas nos parques e ruas.
Efeitos da pandemia
Nesse sentido, a sociedade já mudou. E diversos especialistas
vêm apontando que a centralidade dos efeitos da pandemia não está só na agenda
da saúde, mas também na economia e na organização social. Afinal, o que
acontece quando, para evitar um colapso no sistema de saúde, parte
significativa da força de trabalho é recomendada a ficar em casa? Em um
cenário de austeridade dos gastos do Estado e corte de benefícios sociais, quem
conseguirá manter as contas da moradia, da alimentação e dos serviços básicos
sem a renda vinda do trabalho?
Em reportagem para o Jornal Independent, o economista Omar Hassan afirma que “tão importante quanto
combater o vírus – senão até mais importante – é vacinar as nossas economias
contra a vindoura pandemia de pânico. O sofrimento humano pode vir na forma de
doença e morte. Mas também pode ser experimentado como o fato de não ser capaz
de pagar as contas ou de perder a própria casa”. Mas, e quem já não tem casa,
como fará?
Deste modo, combater os efeitos da pandemia pressupõe
também enfrentar os desafios econômicos, sociais e territoriais, sobre os quais
construímos nossas sociedades. Se o Brasil, um dos países mais desiguais do
mundo (PNUD, 2019), quiser sair desta crise melhor que entrou, deverá combater
efetivamente as desigualdades históricas promovidas pelo capitalismo que, aqui,
operam fortemente a partir dos marcadores de raça, gênero e classe. E esta
mudança passará, dentre outras frentes, por ações mais estratégicas do Estado
para distribuir renda, infraestrutura e utensílios básicos, além de desonerar
famílias de baixa renda das contas com moradia, água e luz.
No Brasil, mais austeridade
Mas não tem sido este o posicionamento dos nossos
governantes. No início da pandemia, a principal resposta dos agentes
federativos brasileiros teve duas chaves. A primeira foi a de continuar com a
agenda de austeridade econômica – diminuindo a capacidade de ação do Estado. A
segunda foi alinhar-se às recomendações de isolamento da OMS bem timidamente,
desconfiando da gravidade da Covid-19. Tanto que, no dia 15 de março, a
liderança do executivo federal compareceu a uma mobilização que ocorreu em Brasília apertando a mão, abraçando e tirando selfies com os manifestantes.
Evidentemente, a realidade nos mostra que tais medidas
não foram suficientemente adequadas à realidade brasileira. Primeiro porque a Covid-19
chegou ao Brasil no início de março e está em franco crescimento duplicando os
casos registrados a cada 2 ou 3 dias. Segundo porque, até o momento, não houve
propostas de prevenção suficientemente alinhadas às realidades do nosso país
onde há um déficit habitacional de mais de 7 milhões de moradias, onde
existem cerca de 4 milhões de famílias que moram em domicílios sem banheiro, 35
milhões vivendo sem acesso a água tratada e 100 milhões sem rede esgoto
(SNIS,2018).
Esgoto a céu aberto em bairro da periferia do Distrito Federal. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil |
Este cenário é mais crítico no norte do país, onde cerca
de 80% dos domicílios não estão conectados à rede geral de esgoto e no nordeste,
onde quase 30% dos domicílios não têm acesso diário à rede de água. São elas
também que abrigam a maior porcentagem de pessoas negras no país (cerca de 79%
da população da região norte e 64,5% da região nordeste é negra, o que inclui
as categorias pretos e pardos do IBGE).
Pelas favelas e periferias do Brasil
Em todas as regiões brasileiras, famílias residentes em
favelas e cortiços, onde, não coincidentemente, cerca de 70% delas é negra
(TETO, 2017), também têm menos acesso a estas infraestruturas e têm o agravante
de concentrarem muitas das 3 milhões de famílias em situação de coabitação
(quando mais de uma família divide a mesma casa) e das quase 320 mil famílias
que vivem com mais de 3 moradores dormindo no mesmo cômodo (FGV, 2015).
Em uma reportagem da BBC,
Gilson Rodrigues, uma das lideranças da favela de Paraisópolis, em São Paulo,
alerta: “Como é que você vai isolar uma pessoa que mora em uma casa com um
cômodo ou dois e tem dez pessoas na família? (…). Vai ficar em isolamento onde?
Em que condições?” Esta não é uma preocupação só de Paraisópolis, lideranças de
favelas do Rio de Janeiro, como Raul Santiago, e de outras favelas e
comunidades do país têm apontado também que, mesmo aqueles domicílios que estão
conectados à rede de água, o serviço é intermitente e está acessível apenas algumas
vezes na semana.
Para além da situação das favelas e comunidades, também é
emergencial que o Poder Público apresente alternativas concretas para pessoas
em situação de rua. Só na cidade de São Paulo, há 24 mil pessoas nesta situação
das quais 3 mil mais suscetíveis a complicações, por terem mais de 60 anos e
estarem no grupo de risco da Covid-19. Além disso, há também grande incidência
de outros complicadores como pessoas soropositivas, com tuberculose e outras
comorbidades. Se não for oferecido abrigo com distanciamento adequado entre as
camas, com banheiro, bebedouro, torneira, papel higiênico, papel toalha e os
demais itens recomendados pela OMS, como estas pessoas poderão se proteger e
evitar a disseminação da pandemia e suas mortes?
Ações emergenciais
Atentas a estas preocupações, diversas lideranças,
entidades, coletivos e instituições da sociedade civil têm se mobilizado para
pressionar para que o poder público implemente não só medidas concretas e
emergenciais, mas também aquelas mais estruturantes para a construção de
uma sociedade mais justa e socioambientalmente responsável.
A carta redigida pelo Fórum Mundaréu da Luz, por exemplo, da qual o Instituto Pólis é uma das
instituições signatárias, exige ações emergenciais como as supracitadas e ainda
defendem outras medidas como a utilização de edifícios públicos vazios para
abrigar idosos e pessoas em situação de rua, suspensão dos despejos forçados,
disponibilização e distribuição de sabonetes e álcool gel às famílias
vulneráveis etc.
Já a Defensoria Pública da União recomenda que equipamentos públicos educacionais e
esportivos que estejam fechados e disponham de banheiros e vestiários, sejam
utilizados para acomodar a população em situação de rua.
No entanto, algumas medidas mais concretas vêm da própria
comunidade. Nas favelas, famílias com maior frequência no abastecimento de água
têm compartilhado suas torneiras com a vizinhança. Diversas entidades e
lideranças locais têm feito postagens nas redes sociais com dados e
recomendações mais alinhadas usando as hashtags #coronanasperiferias e
#covid19nafavela. São ações pontuais que precisam do apoio e do capital do
Estado para alcançar a escala necessária para enfrentar os desafios.
No entanto, até o momento, as instâncias de governo têm
avançado pouco. Um destes avanços vem de alguns juízes de São Paulo que
decidiram suspender ações de despejo e de reintegração de posse. Ao fazê-lo, o
judiciário previne que mais pessoas fiquem em situação de rua e,
possivelmente, ajudam a diminuir a cadeia de contágio não só das famílias que
seriam despejadas, mas da população como um todo. Para que esta se torne uma
medida geral, o Ministério Público Federal solicitou ao Conselho Nacional de
Justiça que recomendasse a suspensão imediata de todos os mandados de
reintegração de posse no país, mas até então nada foi feito nesta
direção.
Houve também o anúncio de mais 400
vagas em abrigos para população em situação de rua na cidade de São
Paulo e a decisão de utilizar dois grandes equipamentos públicos de domínio da
prefeitura – o Anhembi e o Pacaembu – como hospitais
de campanha. Entretanto, é fundamental lembrar que outros 11 distritos da
mesma cidade não dispõe de nenhum leito hospitalar (Mapa da Desigualdade, 2019) e que, até o momento, não há previsão concreta de
distribuir mais igualitariamente os leitos na cidade.
A ausência de equipamentos de saúde próximos é uma
realidade de muitas pessoas no Brasil. Sessenta
por cento dos municípios não têm aparelhos respiradores (item
fundamental no tratamento do coronavírus) em seus equipamentos de saúde; cerca
de 30 milhões de pessoas distam 100km de um leito hospitalar e 14 milhões estão
a mais de 120 km de leitos em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A população
negra e indígena são as mais afetadas por esta má distribuição. Assim, não
basta apenas criar novos leitos e equipamentos, é preciso também distribuí-los
de forma mais igualitária pelo território encurtando as distâncias.
Agenda de austeridade em pauta
Do ponto de vista econômico, a agenda de austeridade do
governo brasileiro parece continuar em pauta, mas está sofrendo maior pressão
para que haja mudanças no seu escopo.
Haja visto que metade da população brasileira vive mensalmente com R$ 413 por pessoa (PNAD,
2018); que o rendimento médio mensal das pessoas brancas foi 73,9% superior ao das pessoas negras; que a taxa de informalidade das pessoas
ocupadas é da ordem de 40%; que a flexibilização das leis trabalhistas
reduziram direitos, e que houve cortes nos benefícios sociais, muitas pessoas
se veem obrigadas a contrariar as recomendações e ir para as ruas trabalhar
para conseguir alguma renda.
Como muitas delas moram distantes dos locais de trabalho,
deslocam-se fazendo baldeações e gastando mais de 2 horas no transporte
público, justamente um dos locais de maior possibilidade de contágio, expondo a
si mesma e a seus familiares em risco.
Embora a Covid-19 tenha chegado ao Brasil por meio
daquelas pessoas que estavam viajando no exterior, e portanto com mais
recursos, tudo indica que é a população mais vulnerável que, como sempre,
sofrerá as principais consequências. Como nos alerta Djamila Ribeiro, na excelente coluna sobre uma das primeiras vítimas fatais do
coronavírus no Brasil – uma idosa de 63 anos que que trabalhava como empregada
doméstica e que foi infectada pela patroa contaminada em viagem à Itália – não
serão apenas os efeitos do vírus no corpo, mas também as consequências
econômicas e institucionais que afetarão sobretudo as pessoas mais
vulneráveis.
A situação imposta ao mundo pela Covid-19 é tão grave que
mesmo governos com agendas mais à direita ou de centro direita, como o da
França, já tem emitido declarações como “há bens e serviços que têm que estar
colocados fora dos interesses do mercado”. Segundo Rafael Araújo, professor da PUC de São Paulo: “Uma crise como essa reivindica
ações que apenas o Estado pode empreender, porque implica assumir prejuízos e
implica ter recursos para atitudes em nível macro. Veja a iniciativa do governo
de fechar o comércio, os shoppings centers (…) Qual empreendedor tomaria (…),
uma medida como essa?”
A sociedade civil tem cobrado do Estado ações mais
energéticas nesse sentido e apresentado propostas contundentes e emergências
que precisam ser tomadas o quanto antes. São medidas como as que garantem
de renda mínima emergencial,
alimentação de qualidade, e a suspensão da cobrança das contas de água e
energia elétrica para as famílias em situação de vulnerabilidade social, a
taxação das grandes fortunas, por exemplo.
Cabe destacar que a renda mínima tem sido inclusive uma
recomendação do especialista independente da ONU sobre os efeitos da dívida
externa nos direitos humanos, Juan Pablo Bohoslavsky, para vários países do mundo e também de diversas
entidades e lideranças que iniciaram uma campanha pela renda básica universal no Brasil Este
conjunto de ações colocam o Estado como um dos principais agentes e põe em
xeque a ideia de Estado mínimo.
Não há dúvidas de que a pandemia da Covid-19 produzirá
mudanças estruturais em diversas áreas da nossa sociedade. Tudo indica que
teremos a curto prazo um futuro desolador. No entanto, caberá à nossa geração e
ao nosso tempo decidir se consolidaremos um “futuro que repete o passado” ou se
iremos, coletivamente, enfrentar os desafios de acabar com esta pandemia e com
a extrema desigualdade. O que será que vamos construir?
Danielle Klintowitz é
urbanista e Coordenadora Geral do Instituto Pólis. Felipe Moreira é
urbanista e pesquisador do Instituto Pólis.
Artigo originalmente publicado em 31 de março de 2020 no site da Le Monde Diplomatique Brasil.
Artigo originalmente publicado em 31 de março de 2020 no site da Le Monde Diplomatique Brasil.
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