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Mulheres negras hackeiam a política

Ainda sub-representadas, elas inovam com campanhas e mandatos coletivos para superar as barreiras racistas e machistas do sistema político. 

Imagem: reprodução/AzMina

Por Letícia Ferreira - AzMina 
05/08/2020

Quando a cidade de Brumadinho foi soterrada por 12 milhões de metros cúbicos de lama da mineradora Vale, um arranjo político ousado de quatro mandatos parlamentares conectados tomou a frente de ações para garantir a vida dos sobreviventes, reduzir o risco iminente de que várias cidades ficassem sem água e para que os responsáveis pelo crime fossem responsabilizados. Em comum, dois desses quatro mandatos são comandados por mulheres negras. 

Andréia de Jesus, deputada estadual em Minas Gerais, e Áurea Carolina, deputada federal, todas eleitas pelo PSOL, trabalharam juntas de forma coordenada nas esferas municipal, estadual e nacional. E por juntas entenda-se, inclusive, compartilhando espaços de seus gabinetes e equipes, em diálogo com cidadãos e movimentos sociais, no que ficou conhecida como Gabinetona. 

“Quando você trabalha no coletivo, nas três esferas, fazendo intervenções de acordo com a capacidade de cada uma, isso é uma potência enorme”, conta Andréia, que atendeu às demandas locais. Juntas, elas puderam influenciar a CPI de Brumadinho, que levou ao indiciamento das empresas e pessoas envolvidas, e a elaboração de propostas para mudar as regras da atividade de mineração no país. 

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Essas parlamentares são o retrato da ocupação que mulheres negras estão fazendo na política institucional: trazem para suas campanhas e mandatos inovações e novas formas de fazer política vindas de estratégias do movimento antirracista e feminista negro. A partir de experiências de organização e de resistência desde o período da escravidão, elas constroem arranjos baseados no coletivo e na identidade racial e de gênero, num claro rompimento com as formas tradicionais do fazer político. 

Andréia de Jesus, deputada estadual de Minas Gerais. Foto: Mídia Ninja

As eleições de 2018 experienciam uma nova forma de concorrência por meio das candidaturas coletivas de mulheres negras e das campanhas organizadas em torno de candidaturas negras, explica a doutoranda em sociologia Andréa Franco Lima e Silva, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que estuda representatividade e os novos modos de interação política da mulher negra nos espaços institucionais de poder. 

“Existe uma estratégia de fazer política mais criativa, que inclui maneiras de inserir demandas, aprovar projetos, que amplia as condições de ter voz em um espaço organizado historicamente para silenciar mulheres negras, principalmente dentro da política institucional”, diz a socióloga. 

Esse movimento vem desde a atuação da antropóloga Lélia Gonzalez, referência na luta política de mulheres negras na década de 80, mas ganhou força após o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco. “Nós somos herdeiras delas. A história que a gente traz para a cena política contemporânea vem do acúmulo que elas nos deram”, diz a socióloga Vilma Reis, ativista do movimento de mulheres negras, que foi pré-candidata pelo PT à prefeitura de Salvador este ano. 

“Cumé qui é?”

Era assim que Lélia questionava o mundo, no que chamava de pretoguês. De forma sempre irreverente, ela convocava negras e negros a reivindicar espaços de poder e concorreu a deputada federal em 1982. “Vamos lá, negadinha”, dizia. Quarenta anos separam Lélia de suas conterrâneas mineiras da Gabinetona, mas a sub-representação de mulheres negras na política ainda persiste nos cargos executivos e legislativos. 

“Nós já temos um número razoável de pessoas negras que se candidatam, o que elas não têm são recursos [de campanha]. Seria muito importante que houvesse uma parte do fundo eleitoral dedicado ao investimento de candidaturas negras”, diz a cientista política Flávia Rios, do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro/Cebrap). Para mudar esse quadro, os partidos precisam distribuir os recursos, diz Flávia. 

“Eu sempre perdi por poucos votos, sempre ficava na primeira ou na segunda suplência. Eu estava perdendo porque na hora H o partido investia mais nos homens e menos nas mulheres”, conta a deputada estadual Olívia Santana (PCdoB-BA). O estado mais negro do país (81% da população se autodeclara negra) só viu Olivia, a primeira mulher negra eleita para a Assembleia Legislativa, em 2018. 

Em sua terceira tentativa, de cinco, Olívia diz que o que fez diferença na campanha foi o apoio do partido, que finalmente chegou. “Eu sabia que se o partido chegasse junto, liberasse bases para me apoiar, que eu poderia ganhar”. 

Olívia Santana, primeira deputada estadual negra da Bahia, eleita em 2018. Foto: divulgação

Para além do recorte do gênero, há um movimento de organizações negras reivindicando também a cota racial para a distribuição dos recursos do fundo eleitoral, que financia as campanhas. As eleições de 2018 foram a primeira em que a reserva de 30% das candidaturas para mulheres foi também exigência para os recursos do fundo. O número de mulheres eleitas na Câmara subiu de 9% para 15%, ainda bastante abaixo quando comparado aos 52% do eleitorado feminino, mas suficiente para que os partidos dessem “um jeitinho” de burlar a lei com candidaturas laranjas. 

Desde 2019, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) questiona o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em nome da ONG Educafro sobre cotas para negros no financiamento, tempo de propaganda eleitoral dos partidos e a divisão meio a meio da cota feminina do fundo eleitoral entre mulheres negras e brancas. O Instituto Marielle Franco se juntou ao movimento com a plataforma Pane Antirracista, para impulsionar candidaturas negras, cuja primeira ação é pressionar uma posição do TSE. 

Isso porque as desigualdades sociais que se vê na pirâmide social do Brasil têm na política seu espelho, com cor da pele e gênero representando barreiras para ocupar cadeiras. Barreiras que são físicas e também simbólicas. Quando chegou à Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2019, a deputada estadual Talíria Petrone (PSOL-RJ) era constantemente barrada nos acessos parlamentares, e relatou essas experiências nas redes sociais. 

“Desde que tomei posse, fui barrada todos os dias aqui – na entrada, no elevador, no plenário. Eu uso broche e vou às sessões, como todo parlamentar. É difícil pra eles entenderem, mas nós, mulheres pretas, somos tão deputadas quanto os outros. Não aceito esse tipo de tratamento”, conta. 

“A neguinha do morro”

O mesmo se repete nos legislativos municipais. Primeira mulher negra vereadora do Rio, eleita em 1982, a hoje deputada Benedita da Silva recorda como é ser a única em um espaço dominado por homens brancos. “Eu tinha um peso enorme de ser a primeira vereadora negra do Rio de Janeiro, uma cidade muito complexa, e tinha toda uma favela nas costas, com esperança, com expectativa”, conta Benedita, que é pré-candidata à prefeitura do Rio. Lidou ainda com assédio de outros parlamentares, que discutiam entre si quem ia sair com a “neguinha do morro”. 

Benedita da Silva, deputado federal e pré-candidata à prefeitura do Rio de Janeiro. Foto: PT/Gustavo Bezerra

Benedita foi ainda “a primeira mulher negra” algumas outras vezes. Foi a primeira senadora negra do Brasil, em 1994, e a primeira governadora negra, ao assumir o governo do Rio em 2002, após a renúncia de Anthony Garotinho. E ainda hoje, o país segue com apenas uma mulher negra governadora. Em 2018, Fátima Bezerra, do PT do Rio Grande do Norte, foi a única mulher e a única mulher negra eleita para o poder executivo estadual. 

No seu primeiro mandato na Assembleia de São Paulo (Alesp), a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB-SP) enfrentou o mesmo que Benedita para ser reconhecida como figura política. Pois além de mulher preta, também é sambista.  “Eles me diziam: ‘e aí Leci, como é que tá o sambinha?’ E eu dizia: não sei, aqui na Assembleia eu não trato disso, não. Eu sou artista, mas a minha atuação é lá fora. Aqui dentro eu sou tão deputada quanto você”. 

A deputada estadual Leci Brandão exerce seu 3º mandato na Alesp. Foto: Ivson Miranda

Leci foi a segunda mulher negra a ocupar uma cadeira na Alesp em 2011, 37 anos depois de Theodosina Rosário Ribeiro. A solidão legislativa de Leci só acabou em 2018 com a chegada das deputadas Erica Malunguinho, Mônica Seixas e Erika Hilton (Mônica e Erika são do mesmo mandato coletivo). 

A primeira mulher negra a ser eleita como deputada estadual no Brasil foi Antonieta de Barros, pelo estado de Santa Catarina, em 1934. Quase um século depois, suas pautas ainda são bastante atuais: democratização da educação, promoção da cultura negra e emancipação da mulher. 

“Não serei interrompida”

A icônica frase de Marielle em seu último discurso na Câmara do Rio exemplifica o tipo de disputa que mulheres negras precisam fazer na política. Marielle é um divisor de águas porque sua morte violenta é, ao mesmo tempo, vista como uma tentativa de interrupção brusca dessa renovação política liderada por mulheres negras, mas também semente dessa nova ação política, explica a sociologia Andréa. Foi a partir da trajetória de Marielle que muitas ativistas negras lançaram pela primeira vez suas candidaturas em 2018, num movimento que também dá as caras nas eleições municipais deste ano. 

“Estamos hackeando o sistema político”, diz Erika Hilton, codeputada estadual pela Bancada Ativista, mandato coletivo do PSOL que atua na Assembleia Estadual de São Paulo, e pré-candidata a vereadora pela capital. Emprestado do campo da computação, o termo define quem descobre utilidades de um sistema para além das previstas nas especificações originais. Nesse sentido, a perspectiva é usar o sistema político – historicamente racista e machista – para construir políticas públicas que combatam o racismo estrutural, conta Erika. 

Essa forma coletiva de fazer política também é uma forma de furar as barreiras. Primeira mulher trans da Assembleia Legislativa do Estado Pernambuco (Alepe), Robeyoncé Lima acredita que a inovação política é uma ferramenta para hackear o sistema político que fecha portas para pessoas que têm a sua história e características. Ela é codeputada estadual pelo mandato coletivo Juntas, que reúne cinco mulheres, sendo ela e mais duas negras: Jô Cavalcanti e Kátia Cunha. 

As mulheres do mandato Juntas (da esq. para a dir.): Joelma Carla, Kátia Cunha, Jô Cavalcanti, Robeyoncé Lima e Carla Vergolino. Foto: divulgação

“Nenhuma das cinco tinha sobrenome político. Somos mulheres, de baixo poder aquisitivo, em sua maioria negras. A política nos moldes tradicionais não abre espaço para gente”, diz Robeyoncé. Ela conta que tiveram que “se virar” para financiar sua campanha, já que não tiveram apoio financeiro do partido, que investiu em candidaturas de reeleição. 

“Os líderes partidários investem em grupos, correntes, escolhem candidaturas viáveis. As pessoas negras que se candidatam não estão no campo das pessoas que os partidos, no geral, consideram candidaturas com potencial de serem bem sucedidas. Essa avaliação prévia que o partido faz tem efeito no resultado”, diz Flávia, do Cebrap. 

É por isso que a deputada federal Áurea Carolina defende a democratização interna das legendas partidárias. “O racismo estrutural atravessa todos os partidos, inclusive os de esquerda. Embora exista uma abertura para as pautas antirracistas, a gente está distante de ter uma participação paritária nos partidos, nos processos de decisão, escolha de candidaturas e divisão de recursos”, diz a deputada, que é pré-candidata à prefeitura de Belo Horizonte. 

“Nós, mulheres negras, que viemos de lutas por direitos nos apresentamos para ocupar a política por uma necessidade, por um dever. Na nossa ausência, a violência se acentua. Se não existir a nossa perspectiva, nossas experiências nos espaços de poder, dificilmente as nossas demandas vão ser consideradas”, diz Áurea. 

Áurea Carolina, deputada federal pelo Psol de Minas Gerais: Foto: reprodução/Facebook

As parlamentares contam que as mulheres negras muitas vezes são convidadas pelas legendas por serem lideranças comunitárias nas periferias Brasil afora. O contato e a confiança que elas têm com uma potencial base eleitoral faz os partidos apresentarem a viabilidade, inicialmente, de um cargo de vereadora, mas sem qualquer contrapartida.  

“Muitas dessas candidatas saem sem uma estrutura física, psicológica ou financeira dos partidos, acreditando em uma promessa. Ela nem vai saber o que cobrar. E obviamente o partido tem interesse em manter essas pessoas nessas condições. Precisamos participar mais da política para conhecer esses processos”, diz Aline Torres, pré-candidata à vereadora pelo MDB São Paulo. 

Aline Torres, pré-candidata à vereadora em São Paulo.
Foto: divulgação

Criatividade para transpor barreiras

Os mandatos coletivos ainda não são formalmente regulamentados no Brasil. Em 2017, a deputada federal Renata Abreu (PODE-SP) apresentou uma proposta de emenda constitucional para regularizar os mandatos coletivos no país, que aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Sem respaldo legal para os cargos de co-parlamentar, os mandatos coletivos são encabeçados por uma única pessoa e os outros integrantes são formalmente registrados como assessores.  

“No contexto e perfil conservador do Congresso que nós temos hoje é muito difícil [que o projeto seja aprovado]. A eles, os mandatos coletivos não interessam”, diz a codeputada Robeyoncé. A deputada estadual Andréia de Jesus afirma que essa organização coletiva não conta, inclusive, com o apoio dos partidos. “Nós provocamos os partidos para que eles assumissem a irreverência da construção de candidaturas coletivas. Não foi o partido que fez a diferença, não tínhamos apoio ou dinheiro do partido. Foi esse processo histórico que ganhou confluência”. 

A própria identificação de raça no processo político e eleitoral é algo novo. Flávia Rios lembra que apenas em 2014 o TSE introduziu “cor” no formulário eleitoral, com a resolução nº 23.405/2014. Sem as informações raciais de quem se candidata e quem se elege, pesquisadores e legisladores não tinham informações para pensar políticas públicas para democratizar o espaço político. 

Gabrielle Abreu, do movimento de formação política Mulheres Negras Decidem, argumenta que, além dos partidos, há um trabalho a ser feito também com o eleitorado. “Vira e mexe temos um fenômeno como Marielle, mas a sociedade brasileira também tem uma resistência para eleger mulheres e homens negros”. 

Mulheres negras estão pensando em novas formas de fazer política, mostram que existem diferentes formas de organização, com redes de solidariedade, por exemplo, que não são comuns nos espaços institucionais. Um projeto de política que tem potencial para criar maior identificação entre quem elege e quem assume um cargo público. 

“É uma política que coloca um horizonte que há muito tempo a gente perdeu. Nós não conseguimos mais construir horizontes políticos, utopias. Essas mulheres, com essas novas formas de agir e se organizar, colocam esse novo horizonte”, resume a doutoranda em sociologia Andréa Franco.  

Edição: Helena Bertho e Thais Folego – AzMina 

Reportagem originalmente publicada em 22 de julho de 2020 no site AzMina.

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