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‘Lanche envenenado’: 60% dos alimentos ultraprocessados têm agrotóxicos; Anvisa não fiscaliza

Pesquisa detectou pesticidas em pães, bolachas e bebidas lácteas; em 51,8% dos produtos analisados, foi verificada a presença de glifosato, potencialmente cancerígeno, ou glufosinato, relacionado à má formação embrionária. 

Foto: Unsplash

Por Hélen Freitas - Repórter Brasil/Agência Pública
02/07/2021

Que há doses de agrotóxicos acima do permitido em boa parte da laranja, da cenoura e de outras frutas e verduras que chegam à nossa mesa já é público. Mas uma pesquisa inédita revelou que também há pesticidas em alimentos que pouca gente imagina, como cereais matinais, bolachas, bebidas lácteas e pães. 

O estudo ‘Tem veneno nesse pacote’, realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), mostrou que 59% dos produtos ultraprocessados mais consumidos no país tinham resíduos de agrotóxicos. Foram testados 27 produtos, divididos em 8 categorias de alimentos e bebidas (veja tabela abaixo). Todos os que tinham trigo em sua composição apresentaram resíduos de algum agrotóxico. 

Em 51,8% foi possível verificar a presença de glifosato, considerado potencialmente cancerígeno, ou glufosinato, herbicida relacionado à má formação embrionária e a problemas no sistema nervoso central em ratos. 

Os produtos campeões de agrotóxicos foram o biscoito de água e sal Vitarella Tradicional e Bisnaguinhas Originais, que apresentaram resíduos de nove venenos cada, além do butóxido de piperonila, ingrediente potencializador dos princípios ativos dos agrotóxicos. 

Mas tão ruim quanto o alto número de pesticidas em alimentos – muitos deles consumidos por crianças – é o fato de não haver padrões claros do limite permitido. Isso porque no caso de cenouras ou laranjas, mesmo o limite autorizado ser considerado alto demais por especialistas, existe um parâmetro: o chamado limite máximo de resíduos (LMR), definido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No caso de ultraprocessados – produtos vendidos como alimentos, mas que são formulações industriais cheias de aditivos e de substâncias em excesso, como aromatizantes, gorduras, açúcar e sódio –, nem isso, o que acaba dificultando a fiscalização e a responsabilização das empresas que os produzem. 

Sem uma regulamentação específica para os alimentos ultraprocessados, abre-se margem para que os fabricantes justifiquem, com regras próprias, que seus produtos são seguros. Os argumentos se baseiam no LMR dos alimentos in natura usados nos produtos, como o trigo presentes nos biscoitos e nas bisnaguinhas. 

A Anvisa alega que se os produtos tiverem seus alimentos in natura com quantidades de agrotóxicos dentro dos limites definidos por ela, há segurança para o consumidor. “A autorização de LMR de um determinado agrotóxico para trigo ou soja, por exemplo, oferece segurança no consumo do alimento in natura e demais produtos contendo resíduos compatíveis com o LMR durante todos os dias da vida”, afirmou a agência. 

O Idec, no entanto, afirma que esse parâmetro é insuficiente. Um dos motivos é o número de processos industriais pelos quais esses alimentos passam. Enquanto a Anvisa afirma que esse processamento pode degradar as moléculas de pesticidas presentes em uma bisnaguinha, por exemplo, o Idec defende que pode ocorrer o contrário. Ou seja, processos como lavagem, descascamento, fermentação e cozimento podem aumentar a concentração de agrotóxicos. Um exemplo é o próprio trigo: estudos demonstram que o processo de produção do farelo de trigo mais que dobra a concentração de determinados agrotóxicos, quando comparado ao grão integral. 

O fato de, mesmo com todos os processos industriais, ainda ser possível verificar resíduos de agrotóxicos preocupa o nutricionista Rafael Rioja, um dos responsáveis pela pesquisa do Idec. “Estamos falando de alimentos que passaram por uma longa cadeia de processamento. Esse é um primeiro indicador que essa é uma questão problemática”, afirma. “A população vem sendo exposta a agrotóxicos por diferentes lugares, e a gente encontrou mais um: os ultraprocessados; então é um risco a mais de exposição crônica da população a agrotóxicos”. 

Além disso, pesquisadores discordam de que haja limites seguros de pesticidas em alimentos. Um estudo divulgado em 2019 mostrou que não há dose segura de agrotóxicos, sendo extremamente tóxicos ao meio ambiente e à vida em qualquer concentração. Os resultados foram tão estrondosos que a pesquisadora virou alvo de perseguições. 

Rioja também defende que mais pesquisas sejam realizadas, para que os consumidores de fato sejam informados da quantidade real de pesticidas que estão comendo no cereal vendido como saudável ou no biscoito que dão para seus filhos. “O que fizemos foi um primeiro teste exploratório, para jogar luz em algo pouco investigado. Existem uma infinidade de ultraprocessados e precisamos fazer mais testes, em outros lotes, em diferentes épocas, para avaliar a presença e quantidade em outros produtos e em outros períodos”, afirma Rioja. 

Uma pesquisa semelhante foi realizada nos Estados Unidos, onde também não há limite de agrotóxicos permitido em ultraprocessados: de 45 produtos feitos com aveia testados, em apenas dois não foram encontrados resíduos de glifosato. 

Falta de análise

Alguns produtos de elevado consumo e com determinado nível de processamento já estão na listagem de alimentos monitorados pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), produzido pela Anvisa – caso da farinha de trigo e da bebida de soja. No entanto, ainda é pequena a gama de ultraprocessados analisados. 

A Anvisa diz que prioriza a análise de produtos in natura, pois, via de regra, o nível de resíduos é maior nesses alimentos que não sofreram nenhum tipo de processamento. Mesmo assim, afirma que a intenção é que aos poucos possam ser inseridos novos produtos. 

“A inclusão de produtos ultraprocessados requer um estudo preliminar, a fim de verificar quais produtos melhor representam o consumo do alimento pela população brasileira e ainda a possibilidade de detecção de resíduos nesses produtos, observando fatores de processamento, que retratam a proporção do ingrediente ativo e metabólitos que permanecem no alimento processado”. Confira a resposta na íntegra 

Os alimentos ultraprocessados têm ganhado cada vez mais espaço na mesa dos brasileiros. De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, nos últimos 15 anos, houve um aumento de 56% do consumo desses produtos. A cada 100kg de alimentos, um brasileiro médio consome 18kg de ultraprocessados. 

O crescimento do consumo desses alimentos está diretamente relacionado ao aumento de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, pressão alta e até alguns tipos de câncer, principais causas de mortes entre os brasileiros. Além disso, causam danos ao meio ambiente ao terem sua produção dependente do uso intensivo de recursos naturais e ao utilizarem como ingredientes principais soja, trigo e outras commodities que baseiam suas produções em monoculturas. 

Novidade pra quem?

A Anvisa, questionada pela reportagem, afirmou que já era esperado que resíduos de agrotóxicos fossem encontrados nos ultraprocessados, visto que diversos venenos são autorizados para aplicação em culturas que servem de matéria-prima para esses produtos. Além disso, a agência informou que a concentração e os tipos de agrotóxicos podem ser ainda maiores. Isso porque, já que um mesmo ultraprocessado pode contar vários alimentos in natura, cada um com a sua “dose” de pesticida. 

As empresas também não parecem desconhecer o assunto. A Panco e a M. Dias Branco, detentoras das marcas campeãs de agrotóxicos, dizem que possuem programas de monitoramento e testagem de resíduos de agrotóxicos nas matérias-primas adquiridas. Elas não são as únicas que afirmam realizar suas próprias análises, a maioria das empresas que aparecem no estudo também comunicaram que adotam esse tipo de procedimento. Confira os posicionamentos das empresas. 

Apesar de as fabricantes e a agência reguladora demonstrarem ter conhecimento sobre a presença de agrotóxicos nos ultraprocessados, os consumidores, que são o elo mais vulnerável, não têm total ideia de quais venenos estão nos seus pratos. “Se as empresas conduzem esses testes e sabem que seus produtos podem ter resíduos, o mínimo que podia ser feito então é dar transparência e tornar esses dados públicos”, comenta Rioja.

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Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de agrotóxicos. Clique para ler a cobertura completa no site do projeto. 

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