A face religiosa do terrorismo: pastores articularam caravanas e convocaram ataques em Brasília
Parlamentares religiosos bolsonaristas apoiaram criminosos nas redes sociais.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil |
“Lute agora e faça parte da história”, dizia o anúncio de uma caravana que pretendia levar bolsonaristas golpistas do Rio de Janeiro para protagonizar ataques aos Três Poderes, em Brasília, no último domingo (8). A postagem no Facebook foi apagada na segunda-feira. A excursão foi organizada pelo pastor Elias de Souza, conhecido como Elias Gaúcho. Assim como ele, outras lideranças religiosas, algumas delas políticos com mandato, participaram, ajudaram a organizar e convocar ataques aos Três Poderes.
Divulgação de caravana para atos golpistas em Brasília. Foto: reprodução |
É o caso dos parlamentares bolsonaristas e religiosos Clarissa e Júnior Tércio, ambos do PP de Pernambuco. Enquanto extremistas depredavam o Congresso Nacional, alguns deles empunhando bíblias e cantando louvores, eles demonstravam apoio público aos criminosos. No domingo, Clarissa, e o marido dela, o pastor Júnior Tércio, vereador no Recife e deputado estadual mais votado do estado, compartilharam vídeos da invasão ao Congresso nas redes sociais.
No dia seguinte, a
parlamentar recuou e divulgou uma nota em tom de retratação. Disse ser contra
“atos de violência, vandalismo ou destruição do patrimônio público”. No mesmo
tweet, Clarissa disse estar “em alinhamento com Jair Bolsonaro”.
Clarissa e Júnior pertencem
a um clã religioso que se estabeleceu como arauto do conservadorismo
bolsonarista cristão no Legislativo pernambucano nos últimos anos. A deputada
estadual é filha do pastor evangélico Francisco Tércio, presidente do
Ministério Novas de Paz da Assembleia de Deus, que comanda a Rádio Novas de Paz
(88,1 FM). Em 2020, ela esteve entre os parlamentares que invadiram o Centro
Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife, para tentar impedir o
aborto legal de uma criança de 10 anos, vítima de estupro.
O casal está na lista de acusados de coautoria de crimes contra o Estado Democrático de Direito,
entregue pela bancada do PSOL ao STF. O partido pede a investigação e
responsabilização das autoridades públicas de todo o Brasil, por participação
nos crimes. Também há pedidos de quebra de sigilo telefônico e suspensão de
redes sociais.
A caravana do pastor Elias,
que foi candidato a vereador em Teresópolis, pelo Avante, em 2020, acabou não
saindo por não atingir o quórum desejado. Um dos organizadores da excursão, o
empresário Daniel Fecher, porém, informou à reportagem que a equipe articula
uma nova viagem a Brasília, desta vez para “oferecer apoio aos patriotas que
foram detidos”.
“Discurso religioso agiu
como motivador ideológico”
“Podemos dizer que o
discurso religioso agiu como motivador ideológico dos atos violentos vistos em
Brasília, porque mobiliza pautas morais, o conservadorismo da sociedade
brasileira”, considera Nilza Valéria, coordenadora da Frente de Evangélicos
pelo Estado de Direito. A Frente conseguiu identificar algumas lideranças
evangélicas que participaram dos atos e produziu uma análise onde ressalta que,
“entre os evangélicos, como simpatizantes do movimento, podemos conferir
figuras do universo gospel e pastores de igrejas locais, sem alcance nacional”.
Segundo ela, narrativas de
embate que acionam um ideário de luta do bem contra o mal têm sido propagadas
por lideranças evangélicas bolsonaristas, capazes de mobilizar multidões de
fiéis e com grande influência política. É o caso do ex-senador Magno Malta, que
postou um vídeo no qual aponta as manifestações como o “desespero de um povo
que não foi ouvido” e do pastor e televangelista Silas Malafaia, da Assembleia
de Deus Vitória em Cristo.
Pastor e senador eleito Magno Malta afirmou que o povo não pode ser colocado no "balaio de criminosos e terroristas". Foto: reprodução |
Outro líder evangélico
influente próximo da família Bolsonaro, o pastor Josué Valandro, da Igreja
Batista Atitude da Barra da Tijuca, frequentada pela ex-primeira-dama Michelle
Bolsonaro, usou as redes sociais para demonstrar apoio aos ataques em Brasília.
No Twitter, ele compartilhou um vídeo que mostra criminosos dentro do
Congresso. Antes, já havia anunciado nas redes que era “hora de jejuar pela
pátria”.
Valandro ainda republicou
uma postagem feita por ele mesmo em 26 de dezembro do ano passado, onde diz:
“Pastor preso, índio preso, deputado preso, jornalista preso por ordem do
judiciário federal! Mas corrupto comprovado é solto! A inversão de valores
assusta”.
“Essas lideranças podem não
ter participado dos atos de depredação, mas pavimentaram o caminho, legitimando
os acampamentos bolsonaristas há meses e atos dos extremistas. Eles têm
propagado um discurso de legitimação da morte e da destruição, que é
antibíblico e anticristão”, diz Nilza. “O discurso religioso, descolado de uma
formação de base, de conceitos de cidadania, gera o cenário ideal para cenas
que a gente viu, com pessoas cantando louvores e orando, como se estivessem
ganhando uma guerra.”
A pastora Ana Marita Terra
Nova, esposa do apóstolo Renê Terra Nova, que prega para multidões no seu
ministério da Visão Celular no Modelo dos 12, publicou no Instagram no sábado,
na véspera da invasão: “Dois meses nos quartéis: valeu muito, sim! Agora… É
parar e dizer mesmo: intervenção militar!”
Post de pastora defendeu atos golpistas em Brasília. Foto: reprodução |
A convocação, divulgada na
forma de uma imagem na conta com mais de 50 mil seguidores, ainda pede que
“quem pode ir para Brasília vá! não podendo, seja a força na sua cidade” e que
os apoiadores “não se omitam”.
O casal lidera o Ministério Internacional da Restauração (MIR) e é conhecido por apoiar Bolsonaro de maneira consistente durante as eleições. Após a repercussão negativa da convocação, os líderes religiosos disseram não concordar com “vandalismo e depredação pública”.
No Whatsapp, um áudio
atribuído ao pastor aposentado Manoel Angelo Chagas, da cidade de Rolim Moura,
em Rondônia, circulou com uma convocação a Brasília. “O povo tem que partir
também lá pro Congresso, invadir e segurar para ninguém entrar. Não entra
Xandão, não entra Lula, não entra ninguém. E aí o Exército vai agir”, diz o
áudio, no qual o homem se identifica pelo primeiro nome.
“O povo pode prender,
amarrar e mandar a polícia levar”, diz o religioso. “Quando o STF ver que é por
isso que o povo vai agir e começar a quebrar tudo que tem lá, porque é nosso
mesmo, é do povo, aí eles vão entrar”.
A pastora Nubia Modista, da
Igreja Evangélica Apostólica de Itaguaí, no Rio de Janeiro, esteve entre o
grupo de invasores que fora até Brasília e publicou vídeos dentro dos prédios
públicos. “Tô aqui dentro do congresso. Os policiais querendo deixar entrar…
olha isso”, diz a religiosa. Em outro vídeo, ela caminha pelo espaço invadido
do Congresso e ironiza a segurança do local: “isso, solta fogos”, diz após
ouvir-se um ruído de bombas.
A Frente de Evangélicos pelo
Estado de Direito localizou ainda outras lideranças evangélicas que ajudaram a
mobilizar atos criminosos no domingo, entre elas o pastor Sandro Rocha, da
Igreja Porto de Cristo, de Guaratuba, no Paraná. Ele tem mais de 450 mil
seguidores no seu canal no Youtube e “profetizava em suas lives e cultos
que o exército e a polícia iriam se juntar ao povo para impedir o comunismo no
país, e que para isso era importante que as manifestações continuassem”.
O pastor goiano Thiago
Bezerra também esteve nos atos terroristas. Ele fez uma live no Youtube,
onde tem mais de cinco mil inscritos, sustentando a falsa narrativa de que as
cenas de violência foram protagonizadas por infiltrados da esquerda. Em nota, a
Frente também cita entre os participantes dos atentados os cantores gospel
Salomão Vieira, Michele Nascimento, Fernanda Oliver e Wesley Rosa os pastores
Mari Santos, de Manaus, e Ricardo Martins, porém pondera que “até o momento,
evangélicos não se envolveram com os movimentos golpistas com a mesma
intensidade com que estiveram presentes na campanha presidencial de
2022”.
O texto da Frente ainda
destaca a “postura dúbia” de lideranças evangélicas bolsonaristas no Congresso
Nacional, entre elas Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder da bancada evangélica.
Ele postou que “ver um descondenado, (sic) virar presidente causa revolta”, mas
disse não apoiar os atos violentos. O deputado federal Marco Feliciano (PL-SP
) disse que “ânimos acirrados teriam levado a depredações não
legítimas”.
Algumas igrejas lançaram
notas condenando os atentados criminosos. A Igreja Universal do Reino de Deus
disse que “nada justifica o uso da violência, invasão e destruição do
patrimônio público”. A igreja Adventista também emitiu nota pública repudiando
“ações coletivas ou individuais que promovam a destruição de patrimônio público
e privado, e que coloquem em risco a vida das pessoas”. A Aliança Cristã
Evangélica também emitiu uma nota de repúdio na qual “reafirma o compromisso
com o Estado Democrático de Direito e suas instituições”.
A reportagem tentou contato com as lideranças evangélicas citadas, mas não obteve retorno até a publicação.
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