EUA destruíram gasodutos russos, diz jornalista vencedor do prêmio Pulitzer
Reportagem de Seymour Hersh revela plano terrorista da inteligência estadunidense, com participação direta do presidente Biden.
Joe Biden em visita à Ucrânia, em 20 de fevereiro de 2023. Foto: reprodução/via Fotos Públicas |
“A decisão de Biden de sabotar os gasodutos ocorreu após mais de nove meses de debates altamente secretos dentro da comunidade de segurança nacional de Washington sobre a melhor forma de atingir esse objetivo. Durante grande parte desse tempo, a questão não era se missão deveria ser feita, mas como realizá-la sem deixar nenhuma pista clara de quem é o responsável.”
Esse é o trecho de uma reportagem avassaladora para os interesses dos EUA na guerra travada na Ucrânia. Seu autor é Seymour Hersh, um dos mais experientes e prestigiados jornalistas do mundo. O texto foi publicado em fevereiro, sem nenhum alarde da mídia ocidental, e foi praticamente ignorado pela imprensa hegemônica brasileira.
Nascido em Chicago, Hersh tem 86 anos de idade e mais de 60 dedicados ao jornalismo. Ele coleciona dezenas de reportagens impactantes, como a revelação do projeto Jennifer, com o qual a inteligência norte-americana objetivava resgatar os destroços de um submarino soviético para roubar dados e tecnologias; a revelação de atividades ilegais da CIA contra organizações pacifistas e movimentos políticos de oposição, em 1974; e a revelação do massacre de My Lai, no Vietnã, em novembro de 1969, que lhe valeu o prêmio Pulitzer de 1970.
Hersh colaborou com diversas publicações estadunidenses, como a The New Republic e The New Yorker. Também trabalhou para as agências de notícias United Press Internacional e Associated Press. Atualmente mantem um site na internet em que divulga suas reportagens investigativas, entre as quais a que revela o plano da Inteligência estadunidense para explodir dutos do Nord Stream – gasoduto russo responsável por fornecer gás a países da Europa. A estratégia era enfraquecer o país rival no contexto da Guerra da Ucrânia e manipular a opinião pública. Os EUA tentaram desqualificar a reportagem e agora adotam uma estratégia de lançar suspeitas sobre outros supostos sabotadores enquanto barram iniciativas de investigação independente para saber o que ocorreu nas profundezas do Mar Báltico.
Foto: Nord Stream 2/Nicolai Ryutin |
O Crítica21 republica abaixo a reportagem na íntegra, com tradução de Maurício Ayer, a partir do site Outras Palavras. O texto original, em inglês, pode ser conferido AQUI.
OS EUA EXPLODIRAM OS GASODUTOS NORD STREAM
O Centro de Mergulho e Salvamento da Marinha dos EUA pode ser encontrado em um local tão obscuro quanto seu nome – no que antes era uma estrada na zona rural de Panama City, uma cidade turística em expansão no sudoeste da Flórida, pouco mais de 100 quilômetros ao sul da fronteira com o estado do Alabama. A estrutura física do centro é tão indefinida quanto sua localização – uma estrutura monótona de concreto estilo pós-Segunda Guerra Mundial que tem a aparência de uma escola vocacional no lado oeste de Chicago. Uma lavanderia operada por moedas e uma escola de dança ficam do outro lado do que hoje é uma estrada de quatro pistas.
O centro tem treinado
mergulhadores de águas profundas altamente qualificados há décadas que, uma vez
designados para unidades militares americanas em todo o mundo, são treinados
para realizar mergulhos técnicos para fazer o bem – usando explosivos C4 para
limpar portos e praias de detritos e munições não detonadas – bem como o mal,
como explodir plataformas de petróleo estrangeiras, entupir válvulas de
admissão de usinas submarinas, destruir eclusas em canais de navegação
cruciais. O Centro de Mergulho de Panama City, que possui a segunda maior
piscina coberta dos Estados Unidos, foi o lugar perfeito para recrutar os
melhores e mais discretos graduados da escola de mergulho – que fizeram com
sucesso no verão passado o que haviam sido autorizados a fazer a 80 metros de
profundidade no Mar Báltico.
Em junho passado, os
mergulhadores da Marinha dos EUA, operando sob a cobertura de um exercício de
treinamento da OTAN amplamente divulgado em pleno verão, conhecido como BALTOP22, plantou os explosivos acionados remotamente que, três meses depois,
destruíram três dos quatro gasodutos Nord Stream, segundo uma fonte com
conhecimento direto do planejamento operacional.
Dois dos gasodutos,
conhecidos coletivamente como Nord Stream 1, vinham fornecendo à Alemanha e
grande parte da Europa Ocidental gás natural russo barato por mais de uma
década. Um segundo par de gasodutos, chamado Nord Stream 2, foi construído, mas
ainda não estava operacional. Agora, conforme as tropas russas se concentram na
fronteira ucraniana e a guerra mais sangrenta na Europa desde 1945 se aproxima,
o presidente Joseph Biden viu os gasodutos como um veículo para Vladimir Putin
transformar o gás natural em armas para suas ambições políticas e territoriais.
Solicitada a comentar,
Adrienne Watson, porta-voz da Casa Branca, disse em um e-mail: “Isso é uma
ficção falsa e completa”. Tammy Thorp, porta-voz da Agência Central de
Inteligência (CIA), escreveu da mesma forma: “Esta afirmação é totalmente
falsa”.
A decisão de Biden de
sabotar os gasodutos ocorreu após mais de nove meses de debates altamente
secretos dentro da comunidade de segurança nacional de Washington sobre a
melhor forma de atingir esse objetivo. Durante grande parte desse tempo, a
questão não era se missão deveria ser feita, mas como realizá-la sem deixar
nenhuma pista clara de quem é o responsável.
Havia uma razão burocrática
vital para confiar nos graduados da escola de mergulho do centro de Panama
City. Os mergulhadores eram apenas da Marinha, e não membros do Comando de
Operações Especiais dos Estados Unidos, cujas operações secretas devem ser
relatadas ao Congresso e informadas com antecedência à liderança do Senado e da
Câmara – a chamada Gangue dos Oito [que reúne quatro membros de cada
uma das casas]. A administração Biden estava fazendo todo o possível para
evitar vazamentos, pois o planejamento ocorreu entre o final de 2021 e os
primeiros meses de 2022.
Da esquerda para a direita, Victoria Nuland, Anthony Blinken e Jake Sullivan. Fotos: reprodução |
O presidente Biden e sua equipe de política externa – o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan, o secretário de Estado Tony Blinken e Victoria Nuland, a subsecretária de Estado para Políticas – manifestaram consistentemente sua hostilidade aos dois gasodutos, que funcionaram lado a lado por 1.200 quilômetros sob o Mar Báltico ligando dois portos diferentes no nordeste da Rússia, perto da fronteira com a Estônia, passando perto da ilha dinamarquesa de Bornholm antes de chegar ao norte da Alemanha.
A rota direta, que evitou
qualquer necessidade de passar pela Ucrânia, foi uma benção para a economia
alemã, que desfrutou de uma abundância de gás natural russo barato – o
suficiente para operar suas fábricas e aquecer suas casas enquanto permitia que
os distribuidores alemães vendessem o excesso de gás, a preços acessíveis, com
lucro, para toda a Europa Ocidental. Uma ação que pudesse ser atribuída ao
governo estadunidense seria uma violação das promessas dos EUA de minimizar o
conflito direto com a Rússia. O sigilo era essencial.
Desde seus primeiros dias, o
Nord Stream 1 foi visto por Washington e seus parceiros antirrussos da OTAN
como uma ameaça ao domínio ocidental. A holding que estava por trás, Nord
Stream AG, foi constituída na Suíça em 2005 em parceria com a Gazprom, uma
empresa russa de capital aberto que entrega enormes lucros para os acionistas e
é dominada por oligarcas conhecidos por serem da corte de Putin. A Gazprom
controlava 51% da empresa, com quatro empresas europeias de energia – uma na
França, uma na Holanda e duas na Alemanha – compartilhando os 49% restantes das
ações e tendo o direito de controlar as vendas do gás natural barato para
distribuidores locais na Alemanha e na Europa Ocidental. Os lucros da Gazprom
foram compartilhados com o governo russo, e as receitas estatais de gás e
petróleo, em alguns anos, foram estimadas em não menos que 45% do
orçamento anual da Rússia.
Os temores políticos dos
Estados Unidos eram reais: Putin teria agora uma enorme e desejada fonte de
renda adicional, e a Alemanha e toda a Europa Ocidental ficariam viciadas em
gás natural barato fornecido pela Rússia – diminuindo a dependência europeia dos
Estados Unidos. Na verdade, foi exatamente isso que aconteceu. Muitos alemães
viram o Nord Stream 1 como parte da libertação da famosa Teoria da Ostpolitik do
ex-chanceler Willy Brandt, o que permitiria à Alemanha do pós-guerra reabilitar
a si mesma e a outras nações europeias destruídas na Segunda Guerra Mundial,
entre outras iniciativas, utilizando gás russo barato para abastecer o próspero
mercado e economia da Europa Ocidental.
O Nord Stream 1 era bastante
perigoso, na opinião da OTAN e de Washington, mas o Nord Stream 2, cuja
construção foi concluída em setembro de 2021, se fosse aprovado pelos
reguladores alemães, dobraria a quantidade de gás barato que estaria disponível
para a Alemanha e a Europa Ocidental. O segundo gasoduto também forneceria gás
suficiente para mais de 50% do consumo anual da Alemanha. As tensões aumentavam
constantemente entre a Rússia e a OTAN, apoiadas pela agressiva política
externa do governo Biden.
A oposição ao Nord Stream 2
explodiu na véspera da posse de Biden em janeiro de 2021, quando os republicanos
do Senado, liderados por Ted Cruz, do Texas, levantaram repetidamente a ameaça
política do gás natural russo barato durante a audiência de confirmação de
Blinken como Secretário de Estado. A essa altura, um Senado unificado havia
aprovado com sucesso uma lei que, como Cruz disse a Blinken, “interrompeu [o
gasoduto] em seu caminho”. Haveria uma enorme pressão política e econômica do
governo alemão, então chefiado por Angela Merkel, para colocar o segundo
gasoduto em operação.
Biden enfrentaria os alemães?
Blinken disse que sim, mas acrescentou que não tinha discutido os
detalhes das opiniões do novo presidente. “Eu conheço sua forte convicção de
que esta é uma má ideia, o Nord Stream 2”, disse ele. “Eu sei que ele quer que
usemos todas as ferramentas persuasivas que temos para convencer nossos amigos
e parceiros, incluindo a Alemanha, a não seguir em frente com isso.”
Alguns meses depois, quando
a construção do segundo oleoduto estava quase concluída, Biden pestanejou [blinked].
Naquele mês de maio, em uma reviravolta impressionante, o governo
renunciou às sanções contra a Nord Stream AG, e um funcionário do
Departamento de Estado reconheceu que tentar barrar o oleoduto por meio de
sanções e diplomacia “sempre foi uma hipótese remota”. Nos bastidores,
funcionários do governo supostamente instaram o presidente ucraniano
Volodymyr Zelensky, então diante da ameaça de invasão russa, a não criticar
essa medida.
Houve consequências
imediatas. Os senadores republicanos, liderados por Cruz, anunciaram um
bloqueio imediato de todos os indicados de política externa de Biden e
atrasaram a aprovação do projeto de lei anual de defesa por meses. O site Politico mais
tarde retratou a reviravolta de Biden relativa ao segundo gasoduto
russo como “a decisão, mais até do que a caótica retirada militar do
Afeganistão, que colocou em perigo a agenda de Biden”.
O governo seguia aos
solavancos, apesar de ter conseguido um adiamento da crise em meados de
novembro, quando os reguladores de energia da Alemanha suspenderam a
aprovação do gasoduto Nord Stream 2. O preço do gás natural subiu 8%
em poucos dias, em meio a temores crescentes na Alemanha e na Europa de que a
suspensão do gasoduto e a crescente possibilidade de uma guerra entre a Rússia
e a Ucrânia levariam a um muito indesejado inverno frio. Não estava claro para
Washington exatamente qual era a posição de Olaf Scholz, o recém-nomeado
chanceler da Alemanha. Meses antes, após a queda do Afeganistão, Scholtz havia
endossado publicamente o apelo do presidente francês Emmanuel Macron por uma
política externa europeia mais autônoma em um discurso em Praga – sugerindo
claramente menos confiança em Washington e suas ações intempestivas.
Por todo esse tempo, as
tropas russas foram se acumulando de forma constante e ameaçadora nas
fronteiras da Ucrânia e, no final de dezembro, mais de 100 mil soldados estavam
em posição de atacar da Bielo-Rússia e da Crimeia. O alarme estava crescendo em
Washington, incluindo uma avaliação de Blinken de que o número de combatentes
poderia ser “dobrado em curto prazo”.
A atenção da administração
mais uma vez se concentrou no Nord Stream. Enquanto a Europa permanecesse
dependente dos gasodutos de gás natural barato, Washington temia que países
como a Alemanha relutassem em fornecer à Ucrânia o dinheiro e as armas
necessárias para derrotar a Rússia.
Foi nesse momento agitado
que Biden autorizou Jake Sullivan a reunir um grupo interagências para elaborar
um plano.
Todas as opções deveriam
estar sobre a mesa. Mas apenas uma surgiria.
Planejamento
Em dezembro de 2021, dois
meses antes dos primeiros tanques russos adentrarem a Ucrânia, Jake Sullivan
convocou uma reunião de uma força-tarefa recém-criada – homens e mulheres do
Estado-Maior Conjunto, da CIA e dos Departamentos de Estado e do Tesouro – e
pediu recomendações sobre como responder à iminente invasão de Putin.
Seria a primeira de uma
série de reuniões ultrassecretas, em uma sala segura no último andar do Old
Executive Office Building, adjacente à Casa Branca, que também abrigava o
Conselho Consultivo do Presidente para Inteligência sobre Assuntos Estrangeiros
(PFIAB). Houve a habitual conversa introdutória que acabou levando a uma
questão preliminar crucial: a recomendação encaminhada pelo grupo ao presidente
deveria ser reversível – como outra camada de sanções e restrições monetárias –
ou irreversível – isto é, ações cinéticas, algo que não poderia ser desfeito?
O que ficou claro para os
participantes, de acordo com a fonte com conhecimento direto do processo, é que
Sullivan pretendia que o grupo apresentasse um plano para a destruição dos dois
gasodutos Nord Stream – e que ele cumpria os desejos do Presidente.
Nas várias reuniões que se
seguiram, os participantes debateram as alternativas de ataque. A Marinha
propôs o uso de um submarino recém-comissionado para atacar diretamente o
gasoduto. A Força Aérea discutiu o lançamento de bombas com fusíveis retardados
que poderiam ser ativados remotamente. A CIA argumentou que o que quer que
fosse feito, teria que ser secreto. Todos os envolvidos entenderam o que estava
em jogo. “Isso não é coisa de criança”, disse a fonte. Se fosse possível
rastrear o ataque chegando aos Estados Unidos, seria “um ato de guerra”.
Na época, a CIA era dirigida
por William Burns, um delicado ex-embaixador na Rússia que havia servido como
vice-secretário de Estado no governo Obama. Burns rapidamente autorizou um
grupo de trabalho da agência, tendo entre os membros ad hoc – por
acaso – alguém que era familiarizado com as capacidades dos mergulhadores de
águas profundas da Marinha do centro de Panama City. Nas semanas seguintes,
membros do grupo de trabalho da CIA começaram a elaborar um plano para uma
operação secreta que usaria mergulhadores de águas profundas para desencadear
uma explosão ao longo do oleoduto.
Algo assim já havia sido
feito antes. Em 1971, o a comunidade de inteligência estadunidense soube por
meio de fontes ainda não reveladas que duas importantes unidades da Marinha
russa estavam se comunicando através de um cabo submarino enterrado no Mar de
Okhotsk, na costa leste da Rússia. O cabo ligava um comando regional da Marinha
ao quartel-general continental em Vladivostok.
Uma equipe de agentes da CIA
e da NSA [Agência Nacional de Segurança] escolhidos a dedo foi reunida em algum
lugar na área de Washington, sob profundo sigilo, e elaborou um plano – usando
mergulhadores da Marinha, submarinos modificados e um veículo de resgate submarino
em águas profundas – que teve sucesso, após muita tentativa e erro, na
localização do cabo russo. Os mergulhadores plantaram um sofisticado
dispositivo de escuta no cabo que interceptou com sucesso as mensagens russas,
que passaram a ser gravadas em um sistema de fita.
A NSA descobriu que oficiais
superiores da marinha russa, convencidos da segurança de seu canal de
comunicação, conversavam com seus pares sem criptografia. O dispositivo de
gravação e sua fita tiveram que ser substituídos mensalmente e o projeto
prosseguiu alegremente por uma década, até que foi arruinado por um técnico
civil da NSA, de 44 anos, chamado Ronald Pelton, que era fluente em russo.
Pelton foi traído por um desertor russo em 1985 e condenado à prisão. Ele
recebeu apenas US$ 5 mil dos russos por suas revelações sobre a operação, além
de US$ 35 mil por outros dados operacionais russos que ele forneceu e
nunca foram tornados públicos.
Esse sucesso subaquático, de
codinome Ivy Bells, foi inovador e arriscado, e produziu inteligência
inestimável sobre as intenções e os planos da Marinha russa.
Ainda assim, o grupo
interagências estava inicialmente cético em relação ao entusiasmo da CIA por um
ataque secreto em alto mar. Havia muitas perguntas sem resposta. As águas do
Mar Báltico eram fortemente patrulhadas pela Marinha russa e não havia
plataformas de petróleo que pudessem servir como cobertura para uma operação de
mergulho. Os mergulhadores teriam que ir para a Estônia, do outro lado da
fronteira das docas de carregamento de gás natural da Rússia, para treinar para
a missão? “Seria um fiasco”, disseram à CIA.
Durante “toda essa
maquinação”, disse a fonte, “alguns funcionários da CIA e do Departamento de
Estado diziam: ‘Não façam isso. É estúpido e será um pesadelo político se vier
a público’.”
No entanto, no início de 2022,
o grupo de trabalho da CIA relatou ao grupo interagências de Sullivan: “Temos
uma maneira de explodir os oleodutos”.
O que veio a seguir foi
impressionante. Em 7 de fevereiro, menos de três semanas antes da aparentemente
inevitável invasão russa da Ucrânia, Biden se reuniu em seu escritório na Casa
Branca com o chanceler alemão Olaf Scholz, que, depois de vacilar um pouco,
agora se posicionava firmemente no time americano. Na coletiva de imprensa que
se seguiu, Biden disse desafiadoramente: “Se a Rússia invadir… não haverá mais
Nord Stream 2. Vamos acabar com isso.”
Vinte dias antes, a
subsecretária Victoria Nuland manifestara essencialmente a mesma mensagem em
uma reunião do Departamento de Estado, com pouca cobertura da imprensa. “Quero
ser muito clara com vocês hoje”, disse ela em resposta a uma pergunta. “Se a Rússia
invadir a Ucrânia, de uma forma ou de outra o Nord Stream 2 não avançará.”
Vários dos envolvidos no
planejamento da missão do gasoduto ficaram consternados com o que consideraram
referências indiretas ao ataque.
“Foi como colocar uma bomba
atômica no solo de Tóquio e dizer aos japoneses que vamos detoná-la”, disse a
fonte. “O plano era que as alternativas fossem executadas após a invasão e não
anunciadas publicamente. Biden simplesmente não entendeu ou ignorou”.
A indiscrição de Biden e
Nuland, se é que se tratou disso, pode ter frustrado alguns no grupo de
planejamento. Mas também criou uma oportunidade. Segundo a fonte, alguns dos
altos funcionários da CIA determinaram que explodir o gasoduto “não poderia
mais ser considerado uma alternativa secreta porque o presidente acabava de
anunciar que sabíamos como fazê-lo”.
O plano para explodir os
Nord Stream 1 e 2 foi repentinamente rebaixado de operação secreta que exigia
que o Congresso fosse informado para ser considerada uma operação de
inteligência de classificação alta com apoio militar dos EUA. De acordo com a
lei, explicou a fonte, “Não havia mais uma exigência legal de relatar a
operação ao Congresso. Tudo o que eles tinham que fazer agora era apenas
realizá-la – mas ainda assim tinha que ser secreta. Os russos têm uma
vigilância superlativa do Mar Báltico”.
Os membros do grupo de
trabalho da CIA não tinham contato direto com a Casa Branca e estavam ansiosos
para descobrir se o presidente estava falando sério – ou seja, se a missão
estava em andamento. A fonte recordou: “Bill Burns volta e diz: ‘Vão em
frente’.”
A operação
A Noruega era o lugar
perfeito para basear a missão.
Nos últimos anos da crise
entre Oriente e Ocidente, os militares dos EUA expandiram enormemente sua
presença na Noruega, cuja fronteira ocidental se estende por 2.250 quilômetros
ao longo do norte do Oceano Atlântico e se funde acima do Círculo Polar Ártico
com a Rússia. O Pentágono criou empregos e contratos com altos salários, em
meio a alguma controvérsia local, investindo centenas de milhões de dólares
para atualizar e expandir as instalações da Marinha e da Força Aérea americana
na Noruega. Os novos trabalhos incluíam, com a maior importância, um avançado
radar de abertura sintética bem ao norte que era capaz de penetrar
profundamente na Rússia e foi conectado no momento em que a comunidade de
inteligência estadunidense perdeu o acesso a uma série de pontos de escuta de
longo alcance no território da China.
Uma base submarina
estadunidense recém-reformada, que estava em construção há anos, tornou-se
operacional e mais submarinos estadunidenses agora poderiam de
trabalhar em cooperação com seus colegas noruegueses para monitorar e
espionar um importante reduto nuclear russo localizado 400 quilômetros a leste,
na península de Kola. Os EUA também expandiram vastamente uma base aérea
norueguesa no norte e entregaram à força aérea norueguesa uma frota de aviões
de patrulha P8 Poseidon construídos pela Boeing para reforçar sua
espionagem de longo alcance em tudo o que se refere à Rússia.
Em troca, o governo
norueguês irritou os liberais e alguns moderados em seu parlamento em novembro
passado ao aprovar o Acordo Suplementar de Cooperação em Defesa (SDCA). Pelo
novo acordo, o sistema legal dos EUA teria jurisdição em certas “áreas
acordadas” no norte sobre os soldados americanos acusados de
crimes fora da base, bem como sobre os cidadãos noruegueses acusados ou
suspeitos de interferir no trabalho na base.
A Noruega foi um dos
signatários originais do Tratado da OTAN em 1949, nos primeiros dias da Guerra
Fria. Hoje, o comandante supremo da OTAN é Jens Stoltenberg, um anticomunista
convicto, que serviu como primeiro-ministro da Noruega por oito anos antes de
se mudar para seu alto posto na OTAN, com apoio americano, em 2014. Ele era
linha-dura em tudo relacionado a Putin e Rússia, e cooperou com a comunidade de
inteligência dos EUA desde a Guerra do Vietnã. Ele tem sido considerado
absolutamente confiável desde então. “Ele é a luva que serve à mão americana”,
disse a fonte.
De volta a Washington, os
planejadores sabiam que tinham que chegar à Noruega. “Eles odiavam os russos, e
a marinha norueguesa é cheia de excelentes marinheiros e mergulhadores com
experiência de gerações na exploração altamente lucrativa de petróleo e gás em
alto mar”, disse a fonte. Eles também poderiam ser confiáveis para
manter a missão em
segredo. (Os noruegueses também podem ter tido outros interesses. A destruição
do Nord Stream — se os americanos conseguissem — permitiria à Noruega vender
substancialmente mais de seu próprio gás natural para a Europa.)
Em algum momento de março,
membros da equipe voaram para a Noruega para se encontrar com o Serviço Secreto
e a Marinha noruegueses. Uma das questões-chave era onde exatamente no mar
Báltico era o melhor lugar para plantar os explosivos. Os Nord Stream 1 e 2,
cada um com dois conjuntos de gasodutos, foram separados por pouco mais de um
quilômetro e meio em seu percurso até o porto de Greifswald, no extremo
nordeste da Alemanha.
A Marinha norueguesa foi
rápida em encontrar o local certo, nas águas rasas do mar Báltico, a poucos
quilômetros da ilha dinamarquesa de Bornholm. Os gasodutos se estendiam por
mais de um quilômetro e meio ao longo de um leito oceânico de apenas 80 metros
de profundidade. Isso estaria bem dentro do alcance dos mergulhadores, que,
operando a partir de um caçador de minas norueguês da categoria Alta,
mergulhariam com uma mistura de oxigênio, nitrogênio e hélio fluindo de seus
tanques e colocariam cargas C4 em forma de planta nos quatro dutos com capas
protetoras de concreto. Seria um trabalho tedioso, demorado e perigoso, mas as
águas de Bornholm tinham outra vantagem: não havia grandes correntes de maré, o
que tornaria a tarefa de mergulhar muito mais difícil.
Depois de alguma pesquisa,
os estadunidenses estavam todos de acordo.
A essa altura, o obscuro
grupo de mergulho profundo da Marinha de Panama City mais uma vez entrou em
ação. As escolas de alto mar de Panama City, cujos formandos participaram de
Ivy Bells, são vistas como um remanso malquisto pelos graduados de elite da
Academia Naval de Annapolis, que normalmente buscam a glória de serem
designados como Seal, piloto de caça ou submarinista. Se alguém tiver que
se tornar um “Black Shoe” – isto é, um membro do menos almejado comando
de navios de superfície – ainda há pelo menos o serviço em um contratorpedeiro,
cruzador ou navio anfíbio. O serviço menos glamoroso de todos é na guerra de
minas. Seus mergulhadores nunca aparecem em filmes de Hollywood ou na capa de
revistas.
“Os melhores mergulhadores
com qualificações de mergulho profundo são uma comunidade restrita, e apenas os
melhores são recrutados para a operação e instruídos a se preparar para serem
convocados pela CIA em Washington”, disse a fonte.
Os noruegueses e americanos
tinham localização e agentes, mas havia outra preocupação: qualquer atividade
subaquática incomum nas águas de Bornholm poderia chamar a atenção das marinhas
sueca ou dinamarquesa, que poderiam denunciá-la.
A Dinamarca também foi um
dos signatários originais da OTAN e era conhecida na comunidade de inteligência
por seus laços especiais com o Reino Unido. A Suécia se candidatou à adesão à
OTAN e demonstrou sua grande habilidade no gerenciamento de seus sistemas de
sensores magnéticos e sonoros subaquáticos que rastreavam com sucesso
submarinos russos que ocasionalmente apareciam em águas remotas do arquipélago
sueco e eram forçados a subir à superfície.
Os noruegueses juntaram-se
aos estadunidenses ao insistir que alguns altos funcionários da Dinamarca e da
Suécia deveriam ser informados em termos gerais sobre a possível atividade de
mergulho na área. Dessa forma, alguém superior poderia intervir e manter a
informação fora da cadeia de comando, isolando assim a operação do gasoduto. “O
que eles ouviram e o que eles sabiam era propositalmente diferente”, disse a
fonte. (A embaixada norueguesa, solicitada a comentar esta história, não respondeu.)
Os noruegueses foram
fundamentais para resolver outros obstáculos. A Marinha russa era conhecida por
possuir tecnologia de vigilância capaz de detectar e acionar minas
subaquáticas. Os artefatos explosivos americanos precisavam ser camuflados de
forma a fazê-los parecer ao sistema russo como parte do cenário natural – algo
que exigia adaptação à salinidade específica da água. Os noruegueses tiveram
uma solução.
Os noruegueses também tinham
uma solução para a questão crucial de quando a operação deveria
ocorrer. Todo mês de junho, nos últimos 21 anos, a Sexta Frota americana, cujo
navio-almirante está baseado em Gaeta, Itália, ao sul de Roma, tem patrocinado
um grande exercício da OTAN no mar Báltico envolvendo dezenas de navios aliados
em toda a região. O exercício então, realizado em junho, seria conhecido
como Baltic Operations 22, ou BALTOPS 22. Os noruegueses propuseram que esta
seria a cobertura ideal para plantar as minas.
Os americanos forneceram um
elemento vital: eles convenceram os planejadores da Sexta Frota a acrescentar
um exercício de pesquisa e desenvolvimento ao programa. O exercício, como divulgado
pela Marinha, envolveu a Sexta Frota em colaboração com os “centros de pesquisa
e guerra” da Marinha. O evento no mar seria realizado na costa da ilha de
Bornholm e envolveria equipes da OTAN de mergulhadores que iriam plantar minas,
com equipes concorrentes usando a mais recente tecnologia subaquática para
encontrá-las e destruí-las.
Foi um exercício útil e uma
cobertura engenhosa. Os meninos de Panama City fariam o que sabem e os
explosivos C4 estariam no local no final do BALTOPS 22, com um timer de
48 horas anexado. Todos os americanos e noruegueses já teriam ido embora na
primeira explosão.
Os dias estavam em contagem
regressiva. “O tempo estava passando e estávamos quase cumprindo a missão”,
disse a fonte.
E então: Washington teve
dúvidas. As bombas ainda seriam plantadas durante o BALTOPS 22, mas a Casa
Branca temia que uma janela de dois dias para sua detonação fosse muito próxima
do final do exercício e ficaria óbvio que os Estados Unidos estavam envolvidos.
Em vez disso, a Casa Branca
fez um novo pedido: “Os caras em campo podem descobrir uma maneira de explodir
os gasodutos mais tarde sob comando?”.
Alguns membros da equipe de
planejamento ficaram irritados e frustrados com a aparente indecisão do
presidente. Os mergulhadores de Panama City haviam praticado repetidamente o
plantio do C4 em gasodutos, como fariam durante o BALTOPS 22, mas agora a
equipe na Noruega precisava encontrar uma maneira de dar a Biden o que ele
queria – a capacidade de emitir cada ordem de execução bem-sucedida a cada vez,
conforme sua escolha.
Ter que lidar com mudanças
arbitrárias de última hora era algo que a CIA estava acostumada a administrar.
Mas também se renovaram as preocupações que alguns compartilhavam sobre a
necessidade e a legalidade de toda a operação.
As ordens secretas do
presidente também evocaram o dilema da CIA nos dias da Guerra do Vietnã, quando
o presidente Johnson, confrontado com o crescente sentimento antiguerra do
Vietnã, ordenou que a CIA violasse seu estatuto – que especificamente a proibia
de operar dentro dos Estados Unidos – espionando líderes antiguerra para
determinar se eles estavam sendo controlados pela Rússia comunista.
A CIA acabou concordando e,
ao longo da década de 1970, ficou claro até onde estava disposta a ir. Houve
revelações subsequentes em jornais após os escândalos de Watergate sobre a
espionagem da CIA a cidadãos estadunidenses, seu envolvimento no assassinato de
líderes estrangeiros e seu enfraquecimento do governo socialista de Salvador
Allende.
Essas revelações levaram a
uma dramática série de audiências no Senado em meados da década de 1970,
lideradas pelo senador Frank Church, de Idaho, que deixou claro que Richard
Helms, o diretor da CIA na época, entendeu que tinha a obrigação de fazer o que
o presidente queria, mesmo que isso significasse violar a lei.
Em depoimento inédito e a
portas fechadas, Helms explicou com pesar que “você quase tem uma Imaculada
Conceição quando faz alguma coisa” sob ordens secretas de um presidente. “Se é
certo que você deve tê-las, ou errado que você deve tê-las, [a CIA] trabalha
sob regras e bases diferentes de qualquer outro setor do governo.” Ele estava
basicamente dizendo aos senadores que ele, como chefe da CIA, entendia que
estava trabalhando para a Coroa, e não para a Constituição.
Os estadunidenses em missão
na Noruega operaram sob a mesma dinâmica, e obedientemente começaram a
trabalhar no novo problema – como detonar remotamente os explosivos C4 por
ordem de Biden. Era uma tarefa muito mais complicada do que Washington
imaginava. Não havia como a equipe da Noruega saber quando o presidente poderia
apertar o botão. Seria em algumas semanas, em muitos meses ou ainda mais?
O C4 ligado aos gasodutos
seria acionado por uma boia de sonar lançada por um avião rapidamente, mas o
procedimento envolvia a mais avançada tecnologia de processamento de sinal. Uma
vez instalados, os dispositivos de contagem regressiva conectados
a qualquer um dos quatro gasodutos poderia ser acionado acidentalmente pela
complexa mistura de ruídos
de fundo do oceano em uma mar de tráfego
intenso, como é o Báltico – de navios próximos
e distantes, perfuração subaquática, eventos sísmicos, ondas e até criaturas
marinhas. Para evitar isso, a boia do sonar, uma vez instalada, emitiria uma
sequência de sons tonais únicos de baixa frequência – muito parecidos com os
emitidos por uma flauta ou um piano – que seriam reconhecidos pelo dispositivo
de contagem regressiva e, após um tempo predefinido de atraso, acionariam os
explosivos. (“O que se quer é um sinal robusto o suficiente para que nenhum
outro sinal possa enviar acidentalmente um pulso que detone os explosivos”,
disse-me o Dr. Theodore Postol, professor emérito de ciência, tecnologia e
política de segurança nacional no MIT. Postol, que atuou como consultor
científico do Chefe de Operações Navais do Pentágono, disse que o problema
enfrentado pelo grupo na Noruega por causa do atraso de Biden era uma questão
de sorte: “Quanto mais tempo os explosivos estiverem na água, maior o risco de
um sinal aleatório que venha a detonar as bombas.”)
Em 26 de setembro de 2022,
um avião de vigilância P8 da Marinha norueguesa fez um voo aparentemente de
rotina e lançou uma boia de sonar. O sinal se espalhou debaixo d’água,
inicialmente para Nord Stream 2 e depois para Nord Stream 1. Algumas horas
depois, os explosivos C4 de alta potência foram acionados e três dos quatro
gasodutos foram tirados de operação. Em poucos minutos, poças de gás metano que
estavam nos dutos fechados puderam ser vistas se espalhando na superfície da
água e o mundo soube que algo irreversível havia acontecido.
Desentendimentos
Imediatamente após o
bombardeio do gasoduto, a mídia estadunidense tratou o evento como um mistério
não resolvido. A Rússia era repetidamente citada como provável culpada, hipótese
estimulada por vazamentos calculados da Casa Branca – mas sem nunca estabelecer
um motivo claro para tal ato de autossabotagem, além de uma simples represália.
Alguns meses depois, quando se soube que as autoridades russas vinham
discretamente obtendo estimativas do custo do reparo dos gasodutos, o New
York Times descreveu a notícia como algo que “complica as teorias
sobre quem está por trás” do ataque. Nenhum grande jornal estadunidense
investigou as ameaças anteriores aos gasodutos feitas por Biden e a
subsecretária de Estado, Nuland.
Ao mesmo tempo que nunca
ficou claro por que a Rússia tentaria destruir seu próprio lucrativo gasoduto,
uma justificativa mais reveladora para a ação do presidente veio do secretário
de Estado, Blinken.
Questionado em uma coletiva
de imprensa em setembro passado sobre as consequências do agravamento da crise
energética na Europa Ocidental, Blinken descreveu o momento como
potencialmente bom:
“É uma tremenda oportunidade
de apagar de uma vez por todas a dependência da energia russa e, assim, tirar
de Vladimir Putin a belicização da energia como meio de avançar em seus
desígnios imperiais. Isso é muito significativo e oferece uma tremenda
oportunidade estratégica para os próximos anos, mas enquanto isso estamos
determinados a fazer todo o possível para garantir que os cidadãos de nossos
países ou, aliás, ao redor do mundo, não tenham que aguentar as consequências
de tudo isso.”
Mais recentemente, Victoria
Nuland expressou satisfação com o fim do mais novo dos gasodutos. Em um
depoimento em uma audiência do Comitê de Relações Exteriores do Senado no final
de janeiro, ela disse ao senador Ted Cruz: “Como você, eu estou, e acho que o
governo também está muito satisfeito em saber que o Nord Stream 2 é agora, como
você gosta de dizer, uma tralha de metal no fundo do mar.”
A fonte tinha uma visão
muito mais inteligente da decisão de Biden de sabotar mais de 2.400 quilômetros
de gasoduto da Gazprom com a aproximação do inverno. “Bem”, disse ele, falando
do presidente, “tenho que admitir que o cara tem culhão. Ele disse que ia fazer
isso e fez”.
Questionado sobre por que
achava que os russos não responderam, ele disse cinicamente: “Talvez eles
quisessem ter a capacidade de fazer as mesmas coisas que os EUA fazem”.
“Era uma bela reportagem de
capa”, continuou ele. “Por trás dela havia uma operação secreta que colocava
especialistas em campo e equipamentos que operavam por um sinal secreto.”
“A única falha foi a decisão de fazê-la.”
SEYMOUR HERSH - Jornalista investigativo independente
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