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O que pode e o que não pode em uma abordagem policial

A Ponte Jornalismo selecionou as principais dúvidas sobre o assunto, o que a legislação diz a respeito e como os contextos social e racial interferem na aplicação das regras.

Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

Por Jeniffer Mendonça - Ponte Jornalismo
14/07/2023

Policial de folga pode abordar? Policial pode mexer no meu celular? Policial pode abordar qualquer um? Esses são alguns dos questionamentos mais frequentes feitos em buscadores na internet quando o assunto é abordagem policial, também popularmente conhecido como geral, enquadro, baculejo ou dura. 

Os termos pesquisados mostram que a população ainda desconhece direitos e deveres quando se trata da atuação de agentes públicos, em especial das polícias. Por isso, a Ponte selecionou as principais perguntas buscadas para responder o que pode e o que não pode nesses casos, o que a legislação diz a respeito e como os contextos social e racial interferem na aplicação das regras. 

Quais são os tipos de abordagem policial?

Não existem tipos de abordagem. A abordagem é o contato e aproximação do policial a uma pessoa. Já a busca ou revista pessoal é o ato de revistar o corpo e os pertences. 

A revista ou busca pessoal pode acontecer em duas situações. A primeira passa por uma autorização judicial, quando a Polícia Civil ou a Polícia Federal pede ao tribunal de justiça um mandado para fazer busca e apreensão a partir de um trabalho investigativo. Necessariamente, um magistrado tem de autorizar essa busca para que a polícia entre e vistorie sua casa, por exemplo. 

A segunda é a revista a partir do “enquadro”, que geralmente acontece em via pública e que não depende de ordem judicial, desde que o policial tenha “fundada suspeita”, ou seja, que ele tenha a suspeita “de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”, conforme prevê o artigo 244 do Código de Processo Penal (CPP). Corpo de delito é o mesmo que produto relacionado a algum crime ou infração. 

Em regra, são as polícias ostensivas que fazem esse tipo de abordagem, ou seja, aquelas que estão em patrulhamento nas ruas, que são a Polícia Militar e a Polícia Rodoviária estadual ou federal. 

A polícia pode abordar qualquer um?

Sim. Qualquer um pode ser abordado na rua sem a necessidade de ordem judicial desde que o policial tenha a suspeita “de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”, conforme prevê o artigo 244 do CPP. 

A pessoa abordada também tem o direito de saber o motivo da abordagem e a identificação do policial, com nome visível na farda. Se for mulher cisgênero ou pessoa trans que se identifica com o gênero feminino, é direito dela ser revistada por uma policial feminina (além de ter sua identidade respeitada). O policial deve agir com respeito e educação em um enquadro, sem proferir xingamentos ou fazer humilhações. 

Uma pessoa não pode ser abordada pela forma como se veste, pela cor da pele, pela região onde mora, porque ficou nervosa com a presença da polícia, por ser egressa do sistema prisional ou por estar em situação de rua, por exemplo. 

Porém, um dos problemas da “fundada suspeita” é justamente o uso de critérios subjetivos dos policiais nos enquadros: na prática, o alvo, em maioria apontada em pesquisas, é a população negra, pobre e periférica. Especialistas já apontaram que os enquadros acabam servindo como meio de controle social e/ou estão vinculados a metas de produtividade, como no caso do estado de São Paulo, que em 17 anos já deu geral no equivalente a toda a população brasileira. 

Com a falta de regulamentação, algumas decisões no judiciário e em cortes internacionais têm impactado a jurisprudência desse assunto, ou seja, servindo de base para que prisões baseadas em abordagens e revistas discriminatórias possam ser contestadas na justiça. 

Uma delas foi proferida em 2022 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ao analisar uma prisão de um homem por tráfico de drogas que aconteceu na Bahia, o ministro e relator Rogerio Schietti Cruz afirmou que a busca pessoal não pode ser baseada nas impressões do policial sobre a aparência ou “atitude suspeita” de alguém. Ele argumentou que a suspeita do policial precisa ser justificada “pelos indícios e circunstâncias do caso concreto” de que a pessoa tenha drogas ou armas e não pode servir como desculpa para autorizar “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”. 

GCM pode abordar? E policial penal?

Essa não é questão pacífica e há divergências de posicionamento.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144, parágrafo 8º, estabelece que as guardas civis municipais (GCM) têm prerrogativa de proteção de bens, serviços e instalações públicas. Cabe apenas às polícias estaduais (Civil, Militar, Penal) e federais o exercício da segurança pública, ou seja, guardas não são policiais. Em regra, apenas policiais podem enquadrar. 

Contudo, cada vez mais municípios têm incentivado uma atuação militarizada das guardas, com atribuições que acabam se aproximando das polícias, como, por exemplo, a criação de tropas de elite dentro da corporação que são treinadas por PMs e que acabam realizando abordagens, prisões e apreensões de droga, embora não sejam atribuições da competência original. 

Em São Paulo, o Ministério Público e a Defensoria entraram com ação civil pública, em 2021, argumentando que a GCM deixou de fazer seu papel constitucional de proteção do patrimônio para ocupar de forma militarizada o território conhecido pejorativamente como “Cracolândia”, cena aberta de uso e venda de drogas no centro da capital paulista. Os órgãos sustentam que que os guardas estão fazendo revistas pessoais e prisões sem ter prerrogativa nem formação para isso e, consequentemente, praticando abusos. 

Para Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e tenente-coronel da reserva da PM paulista, o Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei 13.022/2014), sancionado durante o governo Dilma Rousseff (PT), acabou abrindo essa interpretação, já que o texto prevê atribuições como preservação de vidas, porte de arma e colaboração com órgãos de segurança pública. “O estatuto deu às guardas o poder de polícia, que é um poder político previsto no direito administrativo que confere ao agente público interferir na esfera da vida privada das pessoas em nome do interesse público”, explica. 

No ano passado, porém, o STJ entendeu que as guardas municipais do Brasil não têm direito de agir como polícias, não podendo executar, salvo em casos excepcionais, buscas, apreensões e abordagens, com base no julgamento de um homem que foi preso por tráfico de drogas após um enquadro feito por guardas municipais. O tribunal declarou como ilícitas as provas colhidas pelos agentes públicos e anulou a condenação do réu. Essa é mais uma jurisprudência que serve para contestação de prisões e abordagens na justiça. 

O advogado criminalista e conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Hugo Leonardo, e o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, André Luiz Nicolitt, são categóricos de que a GCM não deve fazer baculejo. 

“Se você tem um evento cultural, esportivo, no âmbito do município que tenha controle de acesso, para que você entre ali e tenha certeza de que as pessoas não estejam portando bebida, instrumentos de corte, arma, alguma coisa assim, a guarda municipal poderia fazer esse controle porque isso vai ocorrer de forma generalizada: todas as pessoas vão ter que se submeter a isso [revista]. É diferente, por exemplo, de um patrulhamento ostensivo em que tem 100, 30, 20 pessoas estão circulando na rua e apenas um indivíduo é abordado”, afirma Nicolitt. 

Já os agentes penitenciários que trabalham com escolta e vigilância dentro das unidades prisionais passaram a ter o status de policiais penais em 2019 após uma emenda constitucional que os incluiu no rol de forças de segurança pública. A eles, a competência é de fazer segurança e também revistas pessoais dentro das prisões. 

Policial de folga pode abordar?

Essa também não é uma questão unânime. Um ponto a ser destacado é que artigo 301 do Código de Processo Penal estabelece que qualquer pessoa, além de autoridades policiais, pode prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Independente se é policial ou se está de folga, qualquer pessoa pode deter alguém nessa circunstância. 

Para ser considerado um flagrante delito, existem as seguintes possibilidades: a pessoa tem que ser flagrada cometendo um crime; a pessoa foi flagrada após cometer um crime; a pessoa é perseguida em situação que se presume ser autora de um crime; ou é encontrada depois com armas, objetos ou papéis que sejam produto ou tenham relação com crime. 

Esse tipo de garantia, contudo, não autoriza emprego de violência como justificativa para a prisão, porque pode se transformar em um linchamento, ou seja, no cometimento de um outro crime. “Se você estiver diante de uma situação que você consiga efetivamente deter o sujeito e você fizer essa detenção dando essa voz de prisão em flagrante, nada daquilo pode virar contra você, desde que essa ação que praticou esteja correta, desde que haja o cometimento de um crime e você não use de uma violência que seja desmedida para única e exclusivamente deter aquele sujeito até que a polícia chegue”, explica Hugo Leonardo. 

Agora, para realizar enquadros, ou seja, as abordagens com base em fundada suspeita, o entendimento para policiais de folga (tanto civis quanto militares e até penais) é controverso. Há setores que entendem que, apesar de não estar em serviço, o policial de folga, também chamado de “à paisana”, pode abordar porque tem poder de polícia e está à serviço da sociedade a qualquer momento. “Quem defende diz que estão agindo em razão da função e em nome do interesse público e isso legitimaria a ação deles”, afirma Adilson Paes de Souza. 

Hugo Leonardo e André Nicolitt sustentam que o policial de folga só é obrigado a agir em caso de flagrante delito e não para realizar enquadros se não está em serviço. “Esses agentes não podem sair por aí pedindo para as pessoas se portarem de determinada forma para serem revistadas na rua. Isso não é poder de polícia. O que o poder de polícia garante é uma abordagem havendo pressupostos objetivos que lhes garante autoridade suficiente para praticar essa abordagem e conduzir esses indivíduos à delegacia”, pontua Leonardo. 

Polícia pode abordar menor de idade?

Sim, desde que o policial tenha a suspeita “de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”, conforme prevê o artigo 244 do CPP. 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei 8.060/1990) considera criança aquela com idade de até 12 anos incompletos. Já o adolescente tem de 12 anos completos até 18 anos incompletos. Nenhuma criança pode ser revistada sem a presença de um responsável, podendo ser um familiar ou um adulto indicado por eles. Na ausência, chama-se o Conselho Tutelar. 

Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

Caso o adolescente seja flagrado cometendo um ato infracional, ele deve ser conduzido à delegacia e os responsáveis devem ser chamados. Na ausência de um responsável, um membro do Conselho Tutelar deve ser acionado para acompanhar a ação. O artigo 178 do ECA também prevê que o adolescente não pode ser “conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade”. 

Já a criança que praticou ato infracional deve ser levada diretamente ao Conselho Tutelar. Ela não deve ser encaminhada à delegacia. 

Polícia pode pedir documentos?

Sim. Não é crime estar sem documentos e uma pessoa também não pode ser detida por isso. Você pode se identificar verbalmente, informando nome, número de RG, CPF ou nome dos pais.

Assim como o policial tem que ter uma justificativa para a abordagem, ele também deve justificar o motivo de estar solicitando a sua identificação ou o documento. Ele também pode revistar seus pertences, como carteira ou mochila, e veículo, se estiver dirigindo. 

Recusar-se a se identificar não é um crime, mas pode ser considerado contravenção penal (artigo 68 da Lei 3.688/1941), ou seja, uma infração menos grave que pode render multa, se você se negar a se identificar após o policial justificar o porquê pediu a identificação ou documentação. 

Não preste informações falsas ou se passe por outra pessoa, pois constitui outro crime. Documentos e itens pessoais não podem ser apreendidos se não têm relação com cometimento de crime.

“Se você [policial] tem algum mandado de prisão contra alguém e você acha que é pessoa que você está abordando e ela não se identificar, você pode conduzir essa pessoa para a delegacia para checar [a identidade] através de um sistema de identificação”, exemplifica o juiz André Nicolitt. “Agora, se não tem mandado e não tem situação de flagrante, o fato de a pessoa não estar portando documento não a obriga de acompanhar o policial até a delegacia.” 

Além disso, as detenções ou prisões para averiguação, que costumavam acontecer no período da ditadura civil-militar (1964-1985), são ilegais desde a Constituição Federal de 1988. No entanto, como a Ponte já noticiou, esse tipo de detenção continua acontecendo e a população mais afetada é, de novo, a negra, pobre e periférica. 

Polícia pode mexer no meu celular?

Não. O policial só pode acessar o conteúdo do seu aparelho se você autorizar ou mediante ordem judicial, conforme artigo 7º do Marco Civil da Internet (Lei12.965/2014) e incisos X e XII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que garante o direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo das comunicações. Contudo, nem sempre o sistema de justiça considera essa presunção de consentimento para acesso a celulares, como apontou pesquisa de 2018 do InternetLab sobre decisões de tribunais de justiça que não questionaram se o acesso de policiais foi legal para a obtenção de provas. 

Além disso, a diferença de tratamento que se dá pelo viés racial e territorial faz com que populações em situação de vulnerabilidade concedam o acesso ao celular pelo medo de violência. 

Pode filmar abordagem policial?

Sim. “O policial é um agente público no exercício de uma função pública em via pública. É uma atividade pública. Então, o que é público não é secreto e qualquer pessoa tem o direito de filmar a atuação do agente policial”, enfatiza Adilson Paes de Souza. 

Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

Ponte ensinou em um guia publicado em 2019 como fazer o registro com segurança, mas destacamos sempre: se você não se sentir seguro, não filme. Antes de ligar a câmera, é importante avaliar todos os riscos para você e para as pessoas que você pretende filmar, analisar o cenário sempre considerando se mais pessoas estão acompanhando a sua ação. 

Policial pode apontar arma em uma abordagem?

Depende da situação. Adilson Paes de Souza explica, no caso da PM de São Paulo, por exemplo, o procedimento inicial é de que o policial pode sacar a arma, mas em posição sul, ou seja, com o cano apontado para baixo. “Se houver algum disparo acidental, a bala vai atingir o chão e não a pessoa”, explica. 

“Os policiais podem vir a progredir no uso da força e apontar uma arma, mas apenas e tão somente se aquela situação caminhar para uma escalada de tensionamento que exija que o policial faça isso”, pondera Hugo Leonardo. 

Os especialistas afirmam que apontar uma arma para a pessoa abordada de antemão, sem que ela ofereça nenhum risco, é uma forma de constrangimento e intimidação. Se o policial apontar uma arma para você em um enquadro, não tente reagir. 

Se o policial me agredir, eu posso revidar?

Não é recomendável fazer isso. Os entrevistados lembram que o artigo 25 do Código Penal prevê a legítima defesa contra uma injusta agressão, mas considerando o contexto de uma abordagem policial, a pessoa agredida pode acabar sofrendo mais violência, além de responder criminalmente pela agressão ao policial se revidar. 

“Estamos falando de um cidadão contra um policial fardado e armado. Então, existe um desequilíbrio nessa correlação de forças”, enfatiza Adilson Paes de Souza. “Se eu faço isso [agredir] contra um policial, virão mais policiais e vou ser mais agredido ainda. Com certeza serei preso por lesão corporal, desacato, desobediência e resistência”, explica. 

“Se o policial te agredir, o que você deve fazer imediatamente é procurar a Corregedoria da polícia, seja civil ou militar [dependendo da corporação do policial], a Ouvidoria das Polícias e o Ministério Público”, complementa Hugo Leonardo. 

Adilson também recomenda a procura de um advogado ou da Defensoria Pública, que presta auxílio jurídico gratuito a pessoas que não têm condições de pagar por um advogado.

 

Citações

Além dos entrevistados e da legislação, a Ponte também consultou documentos produzidos pelas Defensorias Públicas de estados brasileiros, a cartilha Atuação policial na proteção dos direitos humanos de pessoas em situação de vulnerabilidade (2013), do Ministério da Justiça, e o Manual de Atendimento e Abordagem da População LGBTI por Agentes da Segurança Pública (2018), feito pela Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Intersexos (Renosp) e o Guia Prático sobre Abordagem Policial (2022), das ONGs Grupo AdoleScER e Grupo Ruas e Praças.

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